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Primeira Edição: O original encontra-se em "L'Ernesto. Rivista comunista" , número de Setembro/Outubro de 2007, pp. 59-61. A tradução em francês encontra-se em http://www.legrandsoir.info/article.php3?id_article=5807 . Tradução do francês para português de RM.
Fonte: Resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Quando me chegaram as primeiras informações acerca do convite de Alberto Asor Rosa(1) para boicotar os Jogos Olímpicos, pensei que fossem os Jogos de Londres de 2012 que estivessem na mira. Com efeito, o seu apelo é também atribuível a um país que se distingue há vários anos pela violação da Carta da ONU e que acabou por se tornar responsável, ao lado dos Estados Unidos, pela agressão ao Iraque. A catástrofe que daí resultou está à vista de todos: as vítimas civis contam-se às dezenas ou centenas de milhares, os refugiados aos milhões; repugnante é o insulto aos direitos do Homem que está em curso em Abu Ghraib; há décadas discriminado, o país arrisca agora o desmembramento.
E isto não acaba aqui. Ainda no Oriente, a sombra ameaçadora de invasão ou de bombardeamentos paira agora sobre a Síria e o Irão, enquanto o espectro de uma "terceira guerra mundial", com recurso a armamento nuclear mais ou menos "táctico": tudo graças à política não apenas de Washington mas também de Londres. Será mesmo necessário recompensar com um convite à realização dos Jogos, que deveriam ser sinónimos de convivência pacífica entre nações, uma capital que se distingue pela sua arrogância imperial e a sua política de guerra?
De seguida, li o artigo publicado em La Repubblica de 16 de Outubro: não, Asor Rosa volta-se apenas contra os Jogos de Pequim, e ameaça o seu boicote repetindo todos os lugares comuns da ideologia dominante. O extraordinário esforço de um país, que num curto espaço de tempo assegurou o direito à vida a centenas de milhões de homens, é desdenhosamente liquidado como a "máquina do desenvolvimento e da exploração económica" posta em marcha pela sua "estrutura centralista e autoritária". Sem se aperceber, Asor Rosa torna-se apologista enfático do sistema político que ele pensa no entanto condenar: seria difícil legitimar a "estrutura centralista e autoritária", se esta fosse suficiente por si só para salvar a massa imensa de homens que ainda sofrem de fome e morrem, no Terceiro Mundo. Na verdade, as coisas são bem diferentes. A "estrutura centralista e autoritária" não está certamente ausente de um país como o Egipto, que, no entanto, continua a esperar e a depender da farinha americana: para a obter, Murabak tem de se submeter à política de guerra e de opressão que os Estados Unidos e Israel conduzem no Médio Oriente. O caso da China é bem diferente pois, ao sair do subdesenvolvimento, leva simultaneamente a bom termo o plano económico e a independência política obtida no seguimento de uma luta de libertação nacional épica.
É por essa razão que está em curso uma espécie de cruzada contra o grande país asiático, cruzada à qual se associa também Asor Rosa. Ei-lo listando uma série de "valores absolutos" e de "direitos universais" (liberdade de expressão, de culto, de associação, etc.), todos, ao que parece, sistematicamente violados por Pequim.
As "liberdades sindicais" também seriam reprimidas. E a desenvoltura que caracteriza o artigo no seu todo torna-se aqui mais evidente do que nunca. Foi justamente na China que o líder mundial da grande distribuição (Walt Mart) foi obrigado a reconhecer aos seus assalariados o direito à associação sindical que ele continua a recusar no mundo inteiro e nos Estados Unidos em primeiro lugar. Sim, objectar-se-á, mas nas lojas chinesas apenas o sindicato oficial é tolerado e geralmente é acusado de pouco actuar na luta por aumentos salariais. Mas será esta acusação convincente?
No grande país asiático, todos os anos, entre 10 e 15 milhões de habitantes abandonam o campo (superpovoado e ainda atrasado) para se instalarem na cidade (incluindo essas novas cidades que emergem do nada): nessas condições, mesmo a CGIL (a maior central sindical italiana) do grande Di Vittorio teria posto a tónica nos postos de trabalho e, consequentemente, na expansão da economia. E no entanto — lamenta-se o Wall Street Journal-Europe de 6 de Junho de 2007 — "desde há vários anos que os salários chineses aumentam sem interrupção a um ritmo anual de 10%". A taxa de crescimento conheceria uma aceleração ulterior: também por causa da melhoria das condições de vida nos campos, os emigrados, actualmente, "aspiram a salários 16% mais elevados do que no ano anterior" e exigem e conseguem arrancar também alguns benefícios e melhorias ulteriores.
Mais impressionantes ainda são os dados publicados pelo semanário alemão Die Zeit de 18 de Outubro, num artigo de Georg Blume:
"Neste momento, os salários mais baixos aumentam 30% por ano, enquanto a receita média progride para 14%, logo, mais rapidamente que uma economia que no entanto se desenvolve de maneira muito dinâmica".
É verdade, o custo do trabalho aumenta mais lentamente, mas apenas por causa do desenvolvimento rápido da produtividade. Bem vistas as coisas, apesar de todos os seus limites e atrasos, o sindicato oficial chinês revela-se claramente mais maduro que os seus críticos (inclusive os de "esquerda"): ele apela à classe trabalhadora para que não se feche dentro de um corporativismo estreito, para ser, ao contrário, a protagonista do processo de industrialização e de modernização do gigantesco país asiático na sua totalidade; protagonista da luta nacional para a aquisição das tecnologias mais avançadas, de modo a não reforçar apenas a independência da China mas também a romper com o monopólio detido até agora nesse domínio pelo Ocidente. É igualmente graças à deterioração desse monopólio e à possibilidade de aceder a produtos cada vez mais sofisticados e à tecnologia em rápido desenvolvimento da República Popular da China, que países como Cuba e a Venezuela conseguem resistir à política de estrangulamento económico posta em marcha por Washington. Eles sabem bem disso, os círculos imperialistas largamente implicados na política de isolamento do gigante asiático: é através desse isolamento que passa a reafirmação da doutrina Monroe na América Latina e a imposição da hegemonia estado-unidense no mundo.
Asor Rosa sobrevoa tudo isto de muito alto. Entre os "valores absolutos" e os "direitos universais" que ele enumera, não figuram nem o direito à paz nem o direito de as nações beneficiarem da democracia nas relações internacionais e não terem de se sujeitar à lei do mais forte. São assim ignorados ou afastados os "valores absolutos" e os "direitos universais" apagados pelos aspirantes a patrões do mundo, os quais, graças precisamente a esse apagamento, podem atribuir-se a missão de exportar a democracia para o mundo inteiro, tendo recurso a todos os meios, incluindo embargos económicos, ameaças de todo o tipo e agressões militares reais.
Despreocupado com tudo isso, Asor Rosa convida a Itália (e indirectamente o "Ocidente democrata capitalista") a lançar um ultimato: se no dia da abertura dos Jogos, "todos os órgãos da imprensa e televisão chineses" não tornarem público "um documento a favor dos direitos universais de expressão e de associação", os Jogos Olímpicos de Pequim serão boicotados. Uma visão singular da democracia torna-se clara aqui: não apenas os dirigentes do Comité Olímpico internacional, mas também o secretário-geral da ONU, eleito pelos representantes dos países do mundo inteiro, se pronunciaram repetidamente e com força contra a ideia do boicote. Asor Rosa, ao contrário, atribui em última análise às ex-potências o direito soberano de julgar e punir um país outrora por eles atingido, através de agressões militares repetidas e infames. É uma atitude ainda mais assombrosa que esse mesmo Asor Rosa reconheça que na China apenas uma "minoria da população" pense como ele; e, no entanto, em nome do "valor absoluto" da democracia, a maioria dos habitantes do país mais populoso do mundo é chamada a inclinar-se perante a vontade das grandes potências ocidentais (e do grande intelectual romano)!
Mas concentremo-nos nos "direitos universais de expressão e de associação", em nome dos quais é lançado o ultimato. Por um lado, Asor Rosa ignora os notáveis progressos realizados pela China, em condições difíceis, nesse domínio. Nos anos 70 do século XX, Deng Xiaoping sublinhava a importância do governo da lei; ao contrário, a "nova esquerda" italiana e ocidental continuava a celebrar a Revolução Cultural que, neste aspecto, juntamente com o socialismo realista, olhava as liberdades e garantias "formais" com um desprezo soberano. Entretanto, a tutela dos direitos do Homem foi inserida na Constituição chinesa. Não se trata de um gesto "formal" ou de um caso isolado: no país está em curso a tradução sistemática dos grandes textos da cultura ocidental, inclusive os comprometidos em larga medida com a teorização dos direitos do Homem, problemática que tende a adquirir a dignidade de disciplina universitária. De forma cada vez mais geral, vê-se crescer rapidamente o número de organizações não governamentais, de jornais, de universidades, de estudantes e diplomados que estudam no Ocidente, e de professores ocidentais chamados a ensinar nas universidades chinesas. Claro que o caminho a percorrer ainda é longo, e o grande país asiático não se quer abrir imediatamente à "democracia" da mesma forma que o fizeram a Jugoslávia e a Rússia: países que sofreram uma catástrofe económica, social, nacional e humanitária, com um Ocidente sem escrúpulos pronto a tirar lucros a fim de alargar a sua esfera de influência e de domínio.
Mas enquanto ignora, por um lado, os progressos feitos pela China mesmo no âmbito dos "direitos universais de expressão e de associação", por outro lado Asor Rosa embeleza o comportamento da Itália e do Ocidente "democrático e capitalista". Mas quem é que, na Primavera de 1999, assassinou com bombardeamentos aéreos os jornalistas jugoslavos culpados de não partilhar da opinião das cimeiras e dos ideólogos da NATO e de se obstinar a condenar a agressão sofrida pelo seu país? E quantos jornalistas foram "acidentalmente" mortos pelas forças de ocupação no Iraque ou na Palestina? Será que os habitantes de Gaza beneficiam dos "direitos universais de expressão e de associação", os quais, depois de terem votado no Hamas no decurso de eleições livres, se vêem agora condenados ao boicote, ao estrangulamento económico e ao embargo? Para terminar: os árabes e os muçulmanos que nos Estados Unidos ousem contribuir com uma subscrição a favor da população da Gaza e do Hamas arriscam-se a ser perseguidos e condenados como "terroristas".
Clinton, ao pronunciar o discurso que inaugurava o seu primeiro mandato presidencial, exaltava os Estados Unidos como sendo a mais antiga democracia do mundo e portanto como o país chamado a "conduzir o mundo" na via da liberdade, no quadro de uma missão "sem prazo", Naturalmente, o presidente estado-unidense não fazia referência nem ao aniquilamento dos peles vermelhas, nem ao regime de escravatura e de opressão racial infligida durante séculos aos negros, nem à repressão impiedosa e às práticas de genocídio postas em prática pelos Estados Unidos nas suas verdadeiras colónias (Filipinas) e nas suas semi-colónias na América Latina. Asor Rosa argumenta da mesma maneira. Quando ele propõe, em matéria de "direitos universais de expressão e de associação" erigir um tribunal, no âmbito do qual a China é acusada e a Itália e o Ocidente "democrático e capitalista" são os juízes, ele suprime do quadro as infâmias antidemocráticas que ainda hoje mancham o Ocidente quando se trata de dobrar a resistência dos países e dos povos que ele entende poder submeter ao seu domínio.
É um traço característico da falsa consciência do Ocidente abstrair-se da sorte reservada às suas vítimas para se poder autocelebrar como lugar de liberdade; e é a partir dessa falsa consciência que o Ocidente pode fazer passar as suas guerras de contrabando como uma contribuição para a difusão da democracia. Asor Rosa faria bem em reflectir sobre tudo isto. Seria triste ver um prestigiado intelectual de esquerda enveredar pelo caminho da tradição cultural pró-colonialista e pró-imperialista, e tornar-se um ideólogo da guerra (quer seja fria ou quente)!
Notas de rodapé:
(1) Alberto Asor Rosa : professor de literatura na La Sapienza, em Roma, é escritor e crítico literário. (retornar ao texto)
Inclusão | 23/08/2018 |