Mundo Vive Luta Contra a Nova Contra-Revolução Colonial

Domenico Losurdo

31 de Março de 2017


Primeira Edição: Entrevista a Pedro Marin e André Ortega.

Fonte: Revista Ópera

Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.

Direitos de Reprodução: Licença Creative Commons licenciado sob uma Licença Creative Commons.


Revista Opera: Bem, gostaríamos de lhe agradecer por tomar seu tempo para nos conceder esta entrevista. Gostaríamos também que você começasse falando do livro que está sendo lançado no Brasil pela Boitempo, “Guerra e Revolução”.

Domenico Losurdo: Esse livro está sendo lançado não somente no Brasil, e ele é uma interpretação do século 20. O título em inglês é “War and the Revolution — Rethinking the Twentieth Century”. Eu só posso dizer algumas coisas do conteúdo, porque o livro é muito grande [risos]. Mas eu posso dizer que o conteúdo fundamental do século 20 foi a luta entre o colonialismo e anticolonialismo. É claro que os partidos anticoloniais eram dirigidos pelo Partido Comunista, mas nós não podemos entender o conteúdo do século 20 se não considerarmos esta luta entre o colonialismo e o anticolonialismo.

Nós vimos, após a Revolução de Outubro, não somente o desenvolvimento da revolução anticolonial mundial… antes da Revolução de Outubro, todo o mundo era propriedade de alguns poucos poderes capitalistas e imperialistas. A África era uma colônia, a Índia era uma colônia, a China uma semicolônia, Indonésia era uma colônia, a América Latina era uma semicolônia graças à Doutrina Monroe, e esse mundo foi mudado radicalmente em consequência da Revolução de Outubro e da revolução anticolonial mundial, que nasce da Revolução de Outubro.

Mas, eu digo que o conteúdo fundamental é a luta entre o colonialismo e o anticolonialismo em um sentido mais profundo; se nós considerarmos a história da União Soviética e da Rússia Soviética, Hitler se esforçou para executar a realização das “Índias Alemãs” no Leste Europeu, Hitler disse: “Nós teremos o nosso extremo oeste [far-west, faroeste] alemão no Leste Europeu”, ou seja, o clássico faroeste norte-americano, onde os brancos dizimaram os nativos, e onde os que sobreviveram estavam destinados a se tornarem escravos a serviço da classe de senhores, e portanto no Leste Europeu os bolcheviques, identificados com os judeus, estavam destinados a serem exterminados. Esse era o programa de Hitler.

Eu cito frequentemente [Heinrich] Himmler, que era um dos líderes do Terceiro Reich, e temos as conversas secretas dos nazistas, fechadas ao público, onde Himmler diz: “Agora que falo somente com nazistas, posso falar livremente. A Alemanha precisa de escravos” — no sentido literal da palavra — e diz que eles achariam seus escravos no Leste Europeu e, particularmente, na União Soviética. Ou seja, a luta da União Soviética foi até mesmo uma luta contra a tentativa de colonizar e escravizar os povos da União Soviética.

A essência do Terceiro Reich foi a ambição de desenvolver, radicalizar e expandir a tradição colonial. Portanto, a falha de Hitler de construir no Leste Europeu as “Índias Alemãs” foi o começo da libertação das Índias Inglesas, também. Mais tarde temos a Revolução Chinesa, que podemos considerar, talvez, a maior revolução anticolonial na história do mundo. E agora, a conclusão breve; a primeira contra-revolução colonial, a contra-revolução colonial de Hitler, é derrotada. Agora nós vemos outra tentativa de desenvolver uma contra-revolução colonial, imediatamente após a conclusão da Guerra Fria, nós vemos, por exemplo, o filósofo Carl Popper, que era o filósofo oficial da chamada “Open Society”, que disse abertamente que o ocidente “cometeu o erro de libertar esses povos muito cedo”, que os povos coloniais não estavam maduros o suficiente para serem livres.

E agora o perigo de uma grande guerra é o perigo provocado pela tentativa, por parte dos Estados Unidos, de bloquear a revolução anticolonial e de construir uma nova contra-revolução colonial, e o perigo da guerra, que é EUA contra a China, mas podemos até considerar a posição da Rússia… Em meus livros, eu insisto em um ponto que é, talvez, negligenciado: a história da Rússia em geral — não da Rússia Soviética, mas da Rússia em geral — é, de um lado, que a Rússia era, de fato, um poder imperialista, expansionista, mas que há só um aspecto da realidade histórica: por muito tempo a Rússia perigava de se tornar uma colônia.

Todos sabem da invasão de Hitler, de Napoleão, de Charles XII, dos mongóis. Por exemplo: se considerarmos o começo do século 17, em Moscou o poder era exercido pelos poloneses. Imediatamente após a 1ª Guerra Mundial, ou seja, após a derrota da Rússia Czarista, a Rússia estava em perigo de ser balcanizada, de se transformar em uma colônia, e eu cito em muitas vezes Stálin, que disse que para o ocidente a Rússia era como a África Central, e que o ocidente tentava fazer a Rússia entrar naquela guerra em nome do capitalismo e imperialismo ocidental.

Imediatamente após a conclusão da Guerra Fria, que foi um triunfo para o ocidente e para os EUA, a Rússia estava em perigo de se tornar uma colônia, porque a massiva privatização da colônia não era só uma traição contra as classes trabalhadores da União Soviética e da Rússia, mas também uma traição contra a nação russa, porque a perspectiva era de que o ocidente queria possuir imensos recursos energéticos no país. Os EUA estava a ponto de possuir esses recursos energéticos imensos.

Yeltsin foi o “grande campeão” dessa colonização da Rússia pelo ocidente. Putin, é claro, não é um comunista, mas ele queria evitar essa colonização e buscou reafirmar o poder russo sobre esses recursos energéticos. Ou seja, neste contexto, podemos falar de uma luta contra a nova contra-revolução colonial, podemos falar de uma luta entre os poderes imperialistas e colonialistas, principalmente os EUA, de um lado, e de outro lado nós vemos a China, o terceiro mundo. E desse grande terceiro mundo a Rússia é uma parte integral, porque estava em perigo de se tornar uma colônia do ocidente. Essa é minha filosofia da história mundial, a dizer. E eu peço desculpas pelo meu inglês [risos].

Revista Opera: Seu inglês é perfeito, professor, perfeito. Como dissemos, seria melhor que nós falássemos italiano ao invés de usar inglês, mas você fala desta contra-revolução colonial no momento…

Domenico Losurdo: É a segunda, talvez a terceira contra-revolução colonial…

Revista Opera: Como você descreveria a posição do imperialismo na política global de hoje? Essa luta contra a contra-revolução colonial é uma luta fundamental, porque temos até alguns pensadores e acadêmicos de esquerda que se dizem “pós-colonialistas”, que não dão este tipo de atenção à questão do imperialismo, porque para eles é algo ultrapassado.

Domenico Losurdo: Primeiro, podemos citar Lênin, que com uma visão muito clara fez uma distinção entre o colonialismo clássico e o neocolonialismo. Ele disse, no começo do século 20, que o colonialismo, no sentido clássico do termo, é a anexação política, ou seja, que um país ou um povo não tem independência política, que é não considerado digno para ser independente. Esse é o colonialismo clássico, com a anexação política de um país ou de um povo por um poder imperialista, colonialista e capitalista.

No entanto, Lênin disse também que há um outro tipo de anexação, que é a anexação econômica. E esse é o neocolonialismo. Hoje nós temos um exemplo do colonialismo clássico, que é a situação da Palestina. Lá vemos o colonialismo clássico. É claro, vemos Israel expandindo seus assentamentos, expandindo o território israelense, e vemos que o povo palestino como os índios no faroeste; eles são expropriados, deportados e, algumas vezes, mortos. Este é o colonialismo clássico.

Mas existe outra forma de colonialismo; o neocolonialismo. E nestes dias eu gosto de fazer duas citações; Mao [Tsé Tung], após conquistar o poder, que disse: “Se nós, os chineses, continuarmos dependentes da farinha americana para o nosso pão, nós seremos uma semicolônia dos EUA”, ou seja, a independência política será somente formal, não substancial. E eu cito outro clássico da revolução anticolonial, Frantz Fanon, que foi um grande campeão da revolução anticolonial da Argélia, e que disse algo muito importante: “Quando um poder colonialista e imperialista é compelido a dar a independência para um povo, este poder imperialista diz: ‘você quer é a independência? Então tome e morra de fome.” Porque os imperialistas continuam a ter o poder econômico, podem condenar o povo à fome, por meio de bloqueios, embargos ou pelo subdesenvolvimento.

Ou seja, Mao e Fanon são personalidades muito diferentes, mas os dois entenderam que a revolução anticolonial tem dois estágios; o primeiro, o estágio da rebelião militar, da revolução militar. O segundo; o desenvolvimento econômico. A chamada “esquerda” que não entendeu este segundo estágio não está em condição de entender a revolução anticolonial. O que vemos agora é o desenvolvimento do terceiro mundo, e esse desenvolvimento não é só um evento econômico, mas um grande evento político. A tentativa da China, hoje, de quebrar o monopólio ocidental da alta tecnologia é a continuação da revolução anticolonial.

E eu acredito, no sentido de que concordo totalmente com você, que essa esquerda conseguiu entender a revolução anticolonial quando os Estados Unidos bombardearam o Vietnã, mas não consegue entender a pretensão do imperialismo de exercer o poder econômico no mundo todo, e essa esquerda não consegue entender o segundo estágio da revolução anticolonial, que é feito por meio do desenvolvimento econômico e tecnológico.

Revista Opera: Também no que se refere ao imperialismo, alguns argumentam que a eleição de Donald Trump, nos EUA, representa uma virada na natureza do imperialismo norte-americano. Qual é a sua opinião?

Domenico Losurdo: Uma certa “esquerda” fala de Trump como uma mudança, mas essa esquerda dá a impressão de que considera Hillary Clinton uma representante da esquerda, ou da paz; isso é completamente errado. Hillary Clinton não é melhor que Trump e, talvez, seja pior. Ou seja, Trump, ao menos nas palavras, expressa sua intenção de melhorar as relações com a Rússia, e, no sentindo contrário, Hillary Clinton queria tensionar com a China e Rússia.

Para entender a profunda divisão na classe dominante e no imperialismo, talvez devamos seguir uma outra análise. Nos EUA há um debate: os Estados Unidos estão em condição de lutar, ao mesmo tempo, contra a Rússia e a China? É melhor para os EUA dividir a frente China-Rússia? Como podemos dividir essa frente? Talvez possamos — e essa é a posição de Trump — fazer as pazes com a Rússia para lutar melhor contra a China.

Outros têm a esperança — e talvez a ilusão — de que os EUA poderão realizar uma mudança de regime (regime-change) na Rússia e, se o fizessem, a China ficaria totalmente isolada. Ou seja, há estratégias imperialistas diferentes, não se trata de uma diferença entre “esquerda” e “direita”, ou a guerra, Trump, e a paz, Hillary. Isso é totalmente ridículo — Hillary Clinton é a pessoa que fez guerras cruéis nos EUA. Por exemplo, contra a Líbia, ela se disse muito feliz pela morte de Kaddafi, apesar do fato de que sua morte foi contra os direitos humanos, foi uma tortura terrível. Mas eu acredito que Hillary Clinton talvez seja a pior.

De qualquer forma, não podemos ter nenhuma ilusão no que se refere ao imperialismo americano, nós temos diferenças, mesmo grandes diferenças, em relação à estratégia, mas infelizmente até o momento eu não vejo um grande movimento pela paz nos EUA. Uma pequena demonstração: Trump tem sido criticado por tudo, tem sido criticado e condenado por sua tentativa de melhorar as relações com a Rússia, mas ninguém o criticou ou condenou pelo grande aumento no orçamento militar. Ou seja, eu acredito que, infelizmente, neste momento, o imperialismo norte-americano tem um grande consenso.

Revista Opera: E quanto à Europa, professor? O futuro político da Europa. Agora temos a crise de imigração, a ascensão da chamada extrema-direita, qual é a sua visão no que se refere a uma saída à esquerda para a Europa?

Domenico Losurdo: Talvez seja melhor deixar certos conceitos mais claros. Eu polemizo contra uma certa esquerda… Se nós considerarmos a 1ª Guerra Mundial e a 2ª Guerra Mundial, nós veremos uma grande diferença. É claro que em ambos os casos o imperialismo teve uma responsabilidade muito grande. No entanto, Lênin descreveu a 1ª Guerra Mundial como a luta entre os donos de escravos coloniais e os escravos coloniais. E os escravos coloniais, durante a 1ª Guerra Mundial, foram passivos.

A 2ª Guerra Mundial foi muito diferente. Durante a Segunda Guerra os escravos coloniais tiveram um papel muito importante, até decisivo. Nós não podemos entender o resultado da 2ª Guerra Mundial sem considerarmos, primeiro, a Grande Guerra Patriótica da União Soviética, que foi a luta do povo soviético, que se recusou a se tornar escravo do Terceiro Reich. Foi uma guerra anticolonial também, dirigida pelo Partido Comunista.

E o que Hitler tentou fazer no Leste Europeu foi o que o imperialismo japonês tentou fazer na Ásia. O imperialismo japonês tentou colonizar e escravizar a China — e a Coreia, também, mas particularmente a China — e o que houve na Ásia foi a guerra de resistência do povo chinês contra a invasão japonesa. Essas foram duas guerras coloniais, mas, é claro, mais tarde vimos o Vietnã, Cuba, Argélia; ou seja, após a derrota do Terceiro Reich nós testemunhamos a revolução global anticolonial.

Infelizmente, imediatamente após a Segunda Guerra, os trotskistas disseram: “Todos são imperialistas.” Ou seja, [argumentaram] que nenhuma guerra nacional é possível [risos], eles não entenderam que o Terceiro Reich e a Itália fascista, bem como o imperialismo japonês, representavam a tentativa de radicalizar a tradição colonial.

Agora, há algumas pessoas que dizem que sim, os americanos são imperialistas — há até alguns idiotas que dizem que a China é imperialista, também… no entanto não falarei da China. Na minha opinião a China, dirigida por um grande Partido Comunista, tem um papel muito importante na luta contra o imperialismo, mas agora não falarei da China.

Europa. A Europa não é o mesmo que os EUA. Nós não podemos esquecer que na Alemanha e na Itália existem bases militares norte-americanas. A Itália não é um estado completamente soberano, existem bases militares, e estas bases, que têm até armas atômicas, são completamente controladas por Washington. Ou seja, para um país como a Itália — e o mesmo se aplica à Alemanha -, existe o perigo deste país ser jogado na guerra por meio de uma decisão de Washington. É claro, se víssemos agora, na Europa, uma guerra contra a Rússia, e os EUA bombardeassem Moscou, a Rússia responderia. E agora falo como um italiano: eu não gosto da ideia de ser bucha de canhão do imperialismo norte-americano.

Qual é o perigo de uma Terceira Guerra Mundial? Precisamos pensar de maneira concreta. O perigo não é de que Merkel faça uma guerra contra Washington, ou que a Itália o faça. O grande perigo é que os EUA declare guerra à Rússia, ou à China — ou a ambos, e o perigo é que os EUA tente colocar a Alemanha, a Itália, a França e outros países europeus contra a China e a Rússia. Ou seja, na Europa é necessário realizar a luta pela paz não só porque a paz é uma grande causa, mas porque devemos defender a independência da Itália, da Alemanha, contra o imperialismo norte-americano.

Eu escrevi um ensaio, que foi traduzido pelo PCdoB, sobre [Palmiro] Togliatti, que durante a Guerra Fria argumentou que a luta contra os perigos da guerra fria, o perigo da Terceira Guerra, era, ao mesmo tempo, uma luta pela independência nacional contra o imperialismo norte-americano. Hoje a situação é muito diferente do passado, no passado, por exemplo, imediatamente após a Primeira Guerra, e mesmo após a Segunda Guerra, haviam diferentes alianças militares opositoras, hoje só há a OTAN, que quer se expandir.

No passado, essas alianças militares criticavam-se mutuamente, acusando umas as outras de aumentar seus exércitos. Hoje é o contrário, os EUA criticam a Alemanha, a Itália, e outros países da Europa por gastarem pouco. Washington quer pressionar a Europa a aumentar sua capacidade militar contra a Rússia e a China. Ou seja, nós devemos dizer que o principal inimigo é, obviamente, os EUA, e eu cito o grande líder comunista italiano Palmiro Togliatti, que disse que a primeira qualidade de um Partido Comunista é identificar o principal inimigo e concentrar toda sua força contra ele. Essa é a situação hoje; o principal inimigo é os EUA, e nós podemos até separar a Europa dos EUA. A Europa não está destinada a seguir os EUA, há muitas forças na Europa que, talvez, iriam preferir seguir um caminho independente em sua política exterior.

Agora, no que se refere à esquerda e à direita na Europa; há uma certa esquerda que diz: “Marine Le Pen é de direita” — ora, é claro, ela não é de esquerda. Mas Hollande é mais de esquerda que Marine Le Pen? Eu tenho algumas dúvidas. Porque a direita é a guerra e, nesse caso, Hollande é mais favorável à guerra na Síria do que Marine Le Pen. Ou seja; eu não serei um seguidor de Le Pen, mas eu também não vejo razão para seguir Hollande. E nós podemos fazer considerações similares no que se refere à Itália; se nós vamos tentar distinguir a “direita” e a “esquerda”, devemos considerar dois grandes problemas: a posição da austeridade neoliberal, a destruição do estado de bem-estar social — esse é um ponto — o outro ponto é a questão do perigo de uma grande guerra, da guerra neocolonial, como a guerra contra a Líbia, Iraque, Iugoslávia, Síria; todas são guerras neocoloniais. E se um partido defende estas guerras, ele não pode ser de esquerda, é de direita.

Revista Opera: Durante uma entrevista à revista “Princípios”, em 2015, o Sr. disse que uma volta da direita ao poder, no Brasil, representaria uma tragédia. E hoje temos amplos ataques aos direitos dos trabalhadores sob o governo de Michel Temer. Qual é a sua visão desta questão, e também do “ressurgimento da direita” na América Latina, com Macri na Argentina, por exemplo?

Domenico Losurdo: Sim, bem, creio que já falei sobre a segunda contra-revolução colonial mundial, a primeira foi a levada a cabo por Hitler. E a segunda contra-revolução colonial não é levada a cabo somente no Oriente Médio, mas na América Latina também, com o objetivo de reinstalar a Doutrina Monroe. É claro, houve o movimento de esquerda em países como Brasil, Argentina, Venezuela, etc. e agora vemos a nova ofensiva dos EUA, e essa ofensiva é uma parte integral da segunda contra-revolução colonial.

Os EUA nunca renunciaram oficialmente à Doutrina Monroe, é claro que em certos períodos não foram capazes de impulsioná-la. Eu creio que agora eles estão tentando reinstalar a Doutrina Monroe.

Revista Opera: Nós falamos desta “certa esquerda”, dessa “outra esquerda”, e eu gostaria de pontuar algumas coisas. Porque aqui no Brasil temos um professor da Universidade de São Paulo que escreveu um artigo sobre você onde ele diz que Losurdo é um “stalinista recauchutado”, por conta do seu foco na questão colonial, que ele diz ser um foco na “questão do estado.” Então gostaria que você falasse desse tipo de pensamento na esquerda, sobre a questão do micropoder, das relações de micropoder, e do papel que esse tipo de pensamento cumpre na esquerda nos anos recentes. Porque do outro lado temos essa onda das chamadas “revoluções democráticas”, você falou por exemplo de Popper, mas nós conhecemos também o bilionário George Soros, que também se apresenta como um filósofo, gosta de Popper e de Kant, apresenta-se como um Kantiano, e tem sido uma figura importante nas chamadas “revoluções democráticas”, como na Ucrânia, onde estas bandeiras foram usadas para expandir o poder da OTAN na Ucrânia. O que o senhor pensa disso? Da chamada “onda pós-moderna.”

Domenico Losurdo: Primeiro nós devemos considerar, de maneira bem séria, a questão democrática. No entanto, nós temos de considerar essa questão sob uma ótica correta.

Por exemplo: se lemos o discurso inaugural de Bill Clinton, quando eleito presidente dos EUA, ele diz o que é senso comum na ideologia hegemônica, que os EUA foram a primeira democracia do mundo e, portanto, os norte-americanos estariam destinados a reger o mundo. “A nossa missão é eterna”, essa é a palavra de Bill Clinton. Nós devemos responder: não consideramos a questão democrática uma questão sem importância, pelo contrário, devemos dizer que quando Bill Clinton fala que os EUA foi a primeira democracia, ele diz que a “primeira democracia” é um lugar onde os negros eram escravizados e os nativos exterminados, ou seja, devemos dizer que Bill Clinton é um racista, porque ele considera que o destino do povo negro e dos nativos é algo que pode ser negligenciado. Considera que não é importante. Isso é supremacismo branco, supremacismo ocidental. Ou seja, é o contrário da democracia. Eu repito: o contrário.

E a primeira coisa que devemos levar a cabo se considerarmos o problema da democracia de maneira séria é a democratização das relações internacionais. Se um país ou um grupo de países declara e decide que têm o direito de provocar uma guerra; ou pior, uma guerra mundial, sem a autorização do Conselho de Segurança [da ONU], eles estão desenvolvendo uma teoria na qual o ocidente tem o direito de exercer o despotismo contra o resto da humanidade. É o despotismo aberto; os EUA e o ocidente declaram, abertamente, que têm o direito de intervir militarmente em todos os cantos do mundo. Isso é despotismo. Peguemos, por exemplo, a Síria; muitos falam da guerra na Síria, mas a chamada “revolução neoconservadora” nos EUA já disse, no começo do século, que Assad deveria ser derrubado. Diziam que deviam levar a cabo uma mudança de regime na Síria porque Assad é contra Israel, contra o ocidente, etc. Isso é despotismo, e aqueles que lutam contra tal despotismo são os reais defensores da democracia.

Mesmo no que se refere às relações pessoais; se considerarmos o Oriente Médio: onde os EUA provocaram guerras? Não em países como a Arábia Saudita ou nas monarquias do Golfo, os alvos dos EUA sempre foram países que tiveram uma revolução anticolonial e antifeudal. Iraque, Líbia, Síria — é claro que podemos criticar um aspecto ou outro — mas qual é a diferença destes países em relação à Arábia Saudita e as monarquias do Golfo? Na Arábia Saudita e nas monarquias do Golfo não houve nem uma revolução anticolonial, nem uma revolução antifeudal. E qual é o resultado das guerras neocoloniais dos EUA e do ocidente? — Não somente a destruição do estado e a criação de uma massa de refugiados desesperados que, muitas vezes, morrem durante a fuga. Mas peguemos por exemplo a situação das mulheres no Oriente Médio; essa situação foi melhorada ou piorada? Todos podem ler, mesmo na imprensa ocidental, que há agora no Oriente Médio a reintrodução da escravidão das mulheres. Após a derrubada de Kaddafi há agora na Líbia a poligamia — talvez a reintrodução da poligamia seja uma conquista pós moderna [risos]. Nós temos a reintrodução do poder marital ditatorial sobre as mulheres; ou seja, o imperialismo significou, na prática, o agravamento da condição das mulheres, um agravamento terrível.

Nós precisamos considerar o problema da democracia em todos estes aspectos. Eu cito Hegel; a verdade está na totalidade. Bill Clinton, quando falou dos EUA como o primeiro país democrático, não considerou a totalidade, somente a situação da comunidade branca. “Israel é a única democracia no Oriente Médio” — esse é o senso comum — mas Israel também é, por outro lado, o despotismo contra o povo palestino. Onde está a lei para os palestinos? Os palestinos podem ser presos, expropriados e mortos sem haver intervenção do judiciário, os militares podem decidir o destino de todos os palestinos. Ou seja, o imperialismo é o maior inimigo da causa da democracia, se considerarmos a democracia em todos estes aspectos.

Revista Opera: Em “Hipocondria da Antipolítica” temos um tema fundamental, que é a questão da posição política do intelectual, de como apesar do intelectual ter uma posição política, ele frequentemente foge desta posição, tenta ser neutro, antipolítico, etc. E você tem em todo o seu trabalho um elemento gramsciano forte… então gostaria de perguntar: Como você vê essa questão do papel do intelectual e, por quê não, do jornalista?

Domenico Losurdo: Nós precisamos distinguir os intelectuais entre si. Há muitos intelectuais que são, digamos, manipuladores profissionais. Algumas vezes são comprados pelo imperialismo, há mesmo livros que explicam que muitos jornalistas são pagos. Esse é um aspecto, mas este aspecto não é tão importante no sentido de que sempre há intelectuais pagos pela classe dominante. Mas, talvez, o aspecto mais interessante seja outro. Nós temos muitos intelectuais que têm aspirações de superar a ordem existente, muitos intelectuais que não se identificam com a sociedade capitalista, que querem um mundo melhor, uma sociedade melhor. No entanto, muitos destes intelectuais não entendem o que é a ação política, e no livro que você citou eu estudei Hegel, e ele é o primeiro grande filósofo que buscou explicar o que é a política.

Em “Hipocondria da Antipolítica” eu faço uma comparação entre Hegel e Lênin; ambos lutaram contra a fraseologia. O que é a fraseologia nesse sentido? É a afirmação que é somente a expressão de sentimentos, mas que não é um esforço para estudar a situação concreta. Nós temos a grande frase de Lênin: “Marxismo é a análise concreta de uma situação concreta.” Não há muitos intelectuais que podem fazer a análise concreta da situação concreta. Expliquei, por exemplo, a diferença entre a Primeira e a Segunda Guerra, e do perigo de uma Terceira Guerra; nós devemos fazer a análise concreta da situação concreta. E ser a favor da revolução não é somente um sentimento, você não pode fazer uma transformação concreta da realidade somente com sentimentos.

E no que se refere ao Gramsci, hoje todos gostam de falar de Gramsci

Revista Opera: Até os stalinistas [risos]

Domenico Losurdo: [risos] mas Gramsci é um filósofo e um militante revolucionário que falava da importância da questão nacional. Não há hegemonia se não considerarmos a questão nacional, somente o Partido que considerar a questão nacional é capaz de desenvolver hegemonia. Primeiro, Marx e Engels. Sim, eles falaram da revolução proletária, mas se nós olharmos as obras de Marx e Engels, há em muitos destes trabalhos a questão nacional, na Polônia, na Irlanda, ou em outros países, no mundo colonial. Por quê? Foi uma distração deles? Não! A revolução concreta deve considerar a situação concreta, e as situações concretas são as diferentes situações nacionais.

E, no que se refere a Gramsci, ele escreveu muitas e muitas páginas sobre o “ressurgimento italiano”, por exemplo, porque se vamos exercer a hegemonia devemos considerar a situação concreta. Mas podemos resumir o pensamento de Gramsci com um episódio, que cito em meu livro sobre Gramsci; quando ele foi condenado pelo tribunal militar, ele disse: “Vocês estão provocando a destruição da nação italiana e nós, os comunistas, vamos reconstruí-la.” E, neste caso, Gramsci foi profético, porque Mussolini tinha a tentação de criar um “novo império romano”, ele levou a cabo a guerra na Etiópia com a palavra de ordem do “reaparecimento do império nas colinas de Roma”, ou seja, temos um novo império em Roma. Essa era a grande ambição de Mussolini. É claro, isso era uma loucura, mas qual é a conclusão? que a Itália, no fim da Segunda Guerra, foi ocupada pelo exército do Terceiro Reich. Se tornou uma colônia do Terceiro Reich, e para reconquistar a independência nacional era necessária a resistência antifascista, e que o Partido Comunista liderasse essa resistência. Gramsci viu a situação de forma muito clara, e nesse sentido o Partido Comunista na Itália, que tinha grande hegemonia no mundo intelectual, era o partido da maior parte dos grandes intelectuais e, ao mesmo tempo, dos trabalhadores…

Revista Opera: E por que eles não tomaram o poder nos anos 50? Tendo as armas, grande popularidade… Sabemos que as primeiras eleições da Itália após a guerra foram compradas pela CIA, que deu dinheiro aos democratas-cristãos…

Domenico Losurdo: Não somente dinheiro [risos]. Agora que temos os documentos da CIA liberados, sabemos que se os comunistas tivessem ganhado a eleição a CIA teria declarado a independência de Sardenha e da Sicília, contra o estado italiano. É claro, Togliatti tentou evitar a terrível guerra que foi provocada na Grécia. Ele conhecia a situação e, ao invés de provocar uma guerra em que estavam destinados a perder, já que na Itália haviam tantos soldados americanos, Togliatti buscou desenvolver outra estratégia, e essa estratégia só foi derrotada por conta da derrota do campo socialista.

Revista Opera: Então o compromisso histórico não foi exatamente um erro, você diria?

Domenico Losurdo: O compromisso histórico foi pensado por Berlinguer depois do golpe de estado no Chile, no qual sabemos, é claro, o papel que teve a CIA. O golpe no Chile foi a demonstração, para Berlinguer, que não é suficiente ter uma pequena maioria, de que sim, com uma pequena maioria se pode ganhar as eleições e construir um governo, mas que a CIA é capaz de fazer uma contra-revolução sangrenta. E Berlinguer tentou evitar esta situação. Mais tarde, vimos a crise, a capitulação de Gorbachev na União Soviética, e a situação do mundo era totalmente diferente.


Inclusão 11/07/2018