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Se o nosso tema é agora o da «organização da sociedade», parece-me compreensível que comecemos por ver o que em geral significa uma organização.
O que é organização?
Que realidade traduz, exprime ou evoca esta palavra?
Diz-se que alguma coisa se encontra organizada (ou bem organizada) quando tem as suas partes componentes dispostas (adequadamente ou correctamente dispostas) para realizar os seus próprios fins. Uma equipa de futebol diz-se organizada ou desorganizada conforme esteja apta ou não para disputar um campeonato ou um jogo. Uma equipa científica, se dotada ou não de laboratórios e técnicos. Um partido político, se montados os respectivos quadros dirigentes, definido o seu programa, abertas delegações por todo o território. E o mesmo se diz até de um motor, porque a errada montagem das suas peças componentes decerto lhe impedirá ou prejudicará o funcionamento. De tal sorte, podemos definir «organização» como o estado ou de um corpo ou de um ser mecânico estruturado para determinado fim, de tal modo que a disposição dos seus elementos integrantes permite o respectivo funcionamento. Resulta que a cada um dos elementos integrantes de um corpo organizado nós podemos chamar, e usualmente chamamos, órgãos. Toda a organização se traduz pois, necessariamente, num conjunto devidamente coordenado de órgãos.
Se agora, por exemplo, reflectirmos sobre um grupo de cavalos selvagens — onde há um chefe que se impõe aos outros e comanda as deslocações da colectividade — não nos será difícil compreender que aí já se realizou um encontro entre a ideia de «organização», que estamos a tactear, e a de «sociedade», que nos ocupou no capítulo anterior. Estamos então perante uma organização social — ainda que se trate de uma organização social não-humana. Estamos em face, afinal, de uma organização muito elementar de seres dotados de «vontade», em que as estruturas do poder se limitam a um órgão (o cavalo-chefe), não a um complexo de órgãos.
Coisa semelhante, aliás, há quem sustente que se passou no momento em que a transformação das comunidades primitivas gerou, por força da divisão do trabalho, o Estado e instituiu o poder nas mãos do chefe do clã ou da tribo. Teoria que, porém, é manifestamente errada pois o agrupamento dos homens na sociedade pré-estadual (isto é, na sociedade primitiva sem classes) constituía já um tipo de organização política e aí, decerto, já o chefe do clã (o mais forte, o mais arguto que se impunha aos outros) constituía um órgão inteligente do poder.
Mas definida esta ideia do que seja toda e qualquer organização (de coisas, de animais ou de pessoas), vamos ao encontro daquilo que em Política nos importa: — a organização social (humana) consiste na coordenação e articulação de todas as estruturas sociais, das instituições, das forças e das relações entre as pessoas e as coisas, de modo a permitir o funcionamento eficaz da sociedade. Paralelamente ao facto de a ideia de organização em geral implicar a coordenação ou montagem das peças integrantes — órgãos do corpo organizado — também a organização social implica a convivência articulada de uma pluralidade de órgãos sociais. As organizações sociais, ao contrário do que aconteceu ao nível das comunidades primitivas, não se podem limitar à existência de um chefe ou condutor. A própria divisão do trabalho se reflecte e implica o desembocar num complexo de órgãos diferenciados, tantos quantos as funções específicas que o agrupamento humano precisa de realizar para satisfação das necessidades dos seus membros. Como entre os elementos componentes da sociedade existem contradições e se verificam conflitos de concepções e interesses, a organização social exige a instituição de um poder político, o qual assegura e comanda o funcionamento da sociedade. Semelhante poder exerce-se por meio de um conjunto diferenciado de órgãos políticos a que usualmente se dá o nome de órgãos públicos.
Qualquer dicionário ou manual elementar de Política nos dá um conceito claro. «Órgão público» é a pessoa ou o conjunto de pessoas que executa uma função especial para que tem competência na estrutura complexa e variada do Estado. E dito isto assim, parece tudo. Mas não podemos alhear-mo-nos do que é, na realidade, o Estado — máquina de opressão de uma classe sobre outra.
O Estado é sempre o domínio de uma classe que detém o poder, logo, de uma classe que define e estrutura os órgãos públicos. Por isso, o órgão público (o chefe do Estado, o governo, o parlamento, os tribunais, a polícia) ou se separa do povo, como nas organizações das sociedades burguesas ou capitalistas na medida em que defende os interesses de uma classe dominante minoritária, ou se aproxima dele quando este conquista o poder através dos seus elementos de vanguarda revolucionária. Nos tempos modernos, actuais, constatamos que efectivamente, neste sentido, existem dois tipos fundamentais — diametralmente opostos — de organização política da sociedade. Existem, por um lado, organizações sociais onde o poder se encontra mais liberal ou mais ferozmente nas mãos da burguesia, a qual institui os órgãos públicos e forma a burocracia que lhe convem como classe (trata-se do tipo de organização social a que chamaremos ditadura da burguesia: — ditadura porque a classe burguesa exerce, através dos seus órgãos públicos, a opressão da classe dominada, operária e trabalhadora, e se configura em vários modelos que vão, desde a democracia burguesa, parlamentar, jacobina, até ao terrorismo fascista); e existe, por outro, a organização social em que o poder se encontra nas mãos do proletariado, a qual consiste, também através dos seus órgãos públicos, no exercício da chamada ditadura do proletariado.
Ocorre-nos agora uma pergunta muito comum, cujas respostas são susceptíveis de causar uma certa gama de equívocos: — a organização social realiza-se espontaneamente ou historicamente? A organização social é espontânea ou histórica?... Mas esta contraposição assim apresentada entre «espontânea» e «histórica» é verdadeira ou não conforme o que entendermos por espontaneidade.
Existe, com efeito, uma concepção idealista da espontaneidade querendo significar que um facto ou um acontecimento são espontâneos enquanto se realizam ou verificam com independência do mundo objectivo, como produto do livre alvedrio indeterminado do homem. Porém, tal conceito teórico (contrário, por simples evidência, à História enquanto ciência que tem as suas leis objectivas) é inconsistente e não concorda com os dados científicos da realidade. Por isso, temos de nos virar para uma outra ideia de espontaneidade, vendo-a como característica dos processos provocados, não por influxos exteriores, mas por causas interiores. Recordarei que a passagem da comunidade primitiva à fase do Estado — como descobriria Engels na sequência dos trabalhos de Lewis Morgan sobre «A Sociedade Primitiva», de 1877 — se verificou, não por causas exteriores ao grupo social, mas por forças engendradas espontaneamente no seu próprio seio. Quer para o materialismo dialéctico, quer para o materialismo histórico, a espontaneidade concebe-se como uma propriedade específica da matéria em geral, e da organização social humana em particular, como manifestação do seu automovimento. Segundo o ponto de vista de Lenine (tomo 38.° das suas «Obras Completas», págs. 358 da edição soviética) a condição para apreendermos todos os processos do mundo em seu «automovimento», no seu descobrimento espontâneo, na sua vida, assenta em conhecê-los como «unidade de contrários». Aqui reside a ideia fulcral do que é a espontaneidade. E por este modo se demonstra que, por força das suas contradições internas, o corpo social se transforma como organização em cada momento do processo histórico.
Mas se acaso fica, assim, evidenciada a convergência do «espontâneo» e do «histórico» na formação das organizações sociais, é preciso não esquecer que a ideia de processo histórico põe em causa todas as coisas e pessoas existentes em cada instante, fazendo com que, dialecticamente, a espontaneidade ou automovimento do ser A funcione, relativamente aos seres B, C, D e F como influxo exterior. Toda a espontaneidade (como movimento que parte do interior de uma coisa ou de uma pessoa) opera, age, influencia, actua exteriormente sobre (ou contra) outra coisa ou pessoa. Portanto, reconhecer a espontaneidade do movimento de todos os seres, segundo as suas próprias leis objectivas, não exclui a necessidade de se ter em conta os influxos exteriores sobre as coisas, as pessoas ou as sociedades em desenvolvimento, dada a conexão recíproca, dialéctica, com todos os objectos do mundo.
Dito isto, porque é necessário termos presente que estamos a tratar de política, permito-me agora restringir a ideia de espontaneidade em contraposição à de consciência do homem.
Vimos que, no plano do materialismo dialéctico a espontaneidade é uma propriedade específica da matéria, manifestação do seu automovimento. Mas no que concerne à evolução e ao desenvolvimento das sociedades humanas, já sabemos que a existência social vai elevando, clarificando, sublimando o nível da consciência do homem. Daí resulta que no plano do materialismo histórico se entenda por «espontaneidade» uma categoria diferente da categoria «consciência». Espontaneidade e consciência são, na verdade, categorias do materialismo histórico que caracterizam a relação entre a lei histórica objectiva e a actividade do homem dirigida para um determinado fim. Por espontaneidade entende-se então, o modo de desenvolvimento social segundo o qual o homem não tem consciência das leis objectivas desse desenvolvimento, não se orienta por elas e actua ao acaso, sujeito a resultados de surpresa, inesperados. Opostamente, fala-se em consciência na actividade histórica quando as pessoas actuam apoiando-se em leis objectivas do desenvolvimento social, que conhecem e o orientam de maneira sistemática até à consecução de fins determinados. Seria um erro considerar o automovimento social como uma evolução que se desenvolve automaticamente, sem a intervenção activa dos homens, das massas populares, dos partidos, etc.
Em conclusão:
Um estudo, ainda que breve, do que seja a «organização da sociedade» não se pode dizer satisfatoriamente delineado se não abordar, ainda que sumariamente, o conceito de formação económico-social. Este conceito, fundamental para a política, foi exposto por Karl Marx no prefácio do «O Capital», encontrando-se no entanto esboçado até já em obras anteriores. Lenine retomá-lo-á com um significado metodológico e teórico.
Como já foi recomendado (ver, por exemplo, «O Pensamento de Lenine», de Henri Lefebvre, tradução portuguesa, Morais, 1969, págs. 188-189) cada um dos termos desta sequência vocabular «formação económico-social» deve ser tomado em toda a sua força significante: — formação — na medida em que se refere a uma realidade que se forma, reforma e transforma, que evolui e por isso muda de maneira histórica; — económico-social no sentido de que se trata de uma formação com dois aspectos que não podemos separar nem confundir — o económico (forças produtivas, relações práticas dos grupos humanos com a natureza) e o social (relações humanas, relações de produção, classes sociais).
A organização da sociedade é assim correspondente, em cada momento histórico, a uma determinada formação económico-social. E como escreverá Lenine em «O Imperialismo, Estádio Supremo do Capitalismo» («Oeuvres Choisies», Moscovo, 1948, tomo I, págs. 841) cada formação económico-social tem as suas leis específicas, particulares, que no entanto se subordinam às leis gerais da formação económico-social. Esquecer as diferenças específicas — acrescentaria Lenine — tem graves consequências, como esta muita grosseira de se comparar, por exemplo, o imperialismo romano com o imperialismo moderno.
No fluir histórico — é evidente isto, por força de tudo quanto vem sendo dito — cada organização social está geneticamente ligada às suas antecedentes e explicará as subsequentes. A História não se processo por zonas estanques e desvinculadas. Repito: — cada formação económico-social é específica por si própria, mas enquadra-se numa teoria geral da formação económico-social. Marx notaria esta verdade científica bem antes de «O Capital». Eis uma significativa passagem da sua «Introdução à Crítica da Economia Política»:
— «A sociedade burguesa é a organização histórica mais desenvolvida e mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem as suas condições, a compreensão da organização que lhe é própria, tornam-na apta a compreender a organização e as relações de produção de todas as sociedades desaparecidas, pois as ruínas e os elementos destas sociedades foram a base em que se edificou a sociedade capitalista, e cujos vestígios, não superados nela, ainda se arrastam, enquanto o que estava simplesmente indicado nas sociedades passadas se desenvolveu e tomou todo o seu significado na sociedade burguesa moderna».
O leitor já verificou que, a um nível de organização (qualquer que ela seja no espaço geográfico, ou no tempo histórico) aparecem com frequência conceitos que se distribuem por vários campos. O programa oficial da «Introdução à Política», estabelece, neste sentido, uma distinção entre «os vários domínios da organização da sociedade — o económico, o social, o jurídico e o político — e entre as várias ciências que o estudam: a economia, a sociologia, o direito e a ciência política» (sic).
Salvo o devido respeito, o critério que se seguiu é errado. Chega a roçar os vícios da teoria sociológica (burguesa) da estratificação social a que aludo no capítulo seguinte. Por um lado, nem o factor «económico» corresponde (como domínio) exactamente e só à economia, nem o «social» exactamente e só à sociologia. E por outro, o «jurídico» (que não respeita directamente à realidade, mas ao mundo normativo) não passa de constituir um reflexo do «económico» e do «social».
Esboçada esta crítica, busquemos determinar quais são verdadeiramente os vários domínios da organização social. Isto levar-nos-á a falar de estrutura (básica) da sociedade» e de «superestrutura» — condição primeira, sine qua non, de uma determinação o mais correcta dos referidos «vários domínios da organização da sociedade».
Mas deixamos esta matéria para o próximo capítulo.
Inclusão | 15/12/2014 |