Introdução à Política I

Fernando Luso Soares


VII — Natureza e Funções do Estado


capa

No capítulo dedicado ao «objecto da ciência política» o programa oficial individualiza as seguintes questões: a natureza e as funções do Estado, e as condições e formas de exercício do poder político.

Tal enunciado tem, para já, uma vantagem sobre aquele outro que, no domínio do Estado Novo, se apresentava ao estudante da então chamada «Organização Política e Administrativa da Nação». Vantagem que se resume muito simplesmente no facto de que, naquele enganatório programa e ao contrário do que no actual verificamos, não se punha sequer a questão da natureza do Estado. Isso acontecia, não por qualquer lapso involuntário, antes sim por deliberado artifício. Com efeito, enquanto se pretende procurar, cientificamente, qual possa ser a resposta a esta questão, não se encontra outra senão uma: — a que resulta do que viemos de fazer no capítulo 4.° deste livro, que teve por tema «O Homem, a Sociedade e o Estado».

Ali chegáramos, através da análise sobre as origens históricas do Estado, à sintética definição de Lenine:

— «O Estado é uma máquina destinada a manter a dominação de uma classe sobre outra».

Eis afinal a verdade que aos próceres do regime fascista não convinha que fosse dita pelos motivos e razões que mais adiante veremos.

Por outro lado, ainda que se possa acusar de repetitivo o meu esquema (ver, quanto a tal matéria, o que ficou escrito no capítulo 4.°), parece ser altura de procedermos a uma espécie de retorno, transcrevendo mais algumas palavras de Lenine, do citado ensaio sobre «O Estado». Trata-se de um trecho verdadeiramente educativo, advertente e exemplar.

«Para abordar este assunto de maneira científica — escreveu Lenine — convém relancear os olhos pela História, mesmo rapidamente, no que respeita às origens e evolução do Estado. O método seguro em qualquer questão importante da ciência social, indispensável para efectivamente adquirirmos o hábito de examinar com correcção o problema, não nos perdendo numa massa de pormenores ou na extrema variedade de opiniões, enfim, a condição mais considerável num estudo científico reside em termos presente o encadeamento histórico fundamental, atendendo cada assunto do ponto de vista seguinte: — ver como tal fenómeno apareceu na História, quais as etapas principais do seu desenvolvimento, e depois encarar, dè um ângulo desse mesmo desenvolvimento, aquilo em que ele hoje resultou.

«Espero — recomendava Lenine — que acerca deste problema leiam a obra de Engels «A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado». Eis uma das obras-primas do socialismo, texto da maior confiança em cada frase, na certeza de que nenhuma foi escrita por acaso, pois antes se apoia em vasta documentação histórica e política (...) É uma obra que começa por traçar a súmula histórica da origem do Estado. Porém, para se versar convenientemente tal assunto, como aliás outro qualquer (por exemplo: o nascimento do capitalismo e da exploração do homem pelo homem, o socialismo e a sua origem, as condições que o produziram), para abordar, repito, mas seriamente e com segurança, qualquer assunto deste género, é preciso fazer de início um relance muito geral sobre a evolução histórica. E no caso do Estado deve verificar-se, antes de mais, que ele nem sempre existiu. Houve, com efeito, uma época em que não havia Estado. Este só apareceu no momento em que se dá a divisão da sociedade em classes, quando se diferenciam os exploradores e os explorados.

«Antes de surgir a primeira forma de exploração do homem pelo homem, a primeira forma de divisão em classes — proprietários de escravos e escravos — existia a família patriarcal, ou, como lhe chama por vezes, o clã (a palavra «clã» significa geração ou descendência, na época em que os homens viviam ligados por laços de sangue), e bastantes vestígios destas épocas antigas subsistiam nos hábitos de inúmeros povos primitivos; e se consultardes uma obra qualquer sobre as civilizações primitivas encontrareis sempre descrições, indicações, testemunhos mais ou menos precisos a atestar q.ue houve uma época tanto ou quanto parecida com um comunismo primitivo, já que a sociedade não se encontrava dividida em proprietários de escravos e escravos. Então não existia Estado — não havia qualquer aparelho especial para se usar sistematicamente a violência e obrigar os homens a submeterem-se a ele. Pois é a este aparelho que se chama Estado».

O leitor já compreende, sem equívoco, o motivo determinante da transcrição que acabo de fazer. E também a causa por força da qual o velho e falso programa de «Organização Política e Administrativa da Nação» não abordava a natureza do Estado. Este traduz na essência, como revelou a investigação histórica, um aparelho (uma máquina) de repressão, e nada mais. A repressão de uma classe qualquer sobre outra — seja, em termos do nosso tempo, da classe burguesa-capitalista sobre a classe trabalhadora ou, contrariamente, seja desta sobre aquela.

Visto assim o problema, encontramo-nos claramente habilitados a colocar em termos correctos a segunda questão deste capítulo. Trata-se agora de entendermos o que são as funções do Estado, coisa só seriamente possível uma vez deslindado o ponto teórico anterior, que vimos ser o da natureza classista da organização estatal.

O Estado é, portanto, uma máquina e, como tal, um conjunto de órgãos. E como todas as máquinas existem para desenvolver determinadas actividades, e a actividade do Estado equivale ao funcionamento dos seus órgãos, fácil é concluirmos que — como dizem os dicionários — a função representa o trabalho de cada órgão. O problema das funções do Estado traduz-se, consequentemente, no da realização dos seus fins através dos órgãos que o constituem. Daqui não há que fugir, abrindo-se-nos as portas para uma análise correcta, aquela que vamos efectuar a partir da crítica de dois preceitos da Constituição Política de 1933. Antes, porém, afigura-se-me indispensável recordarmos em duas palavras a sequência dos vários tipos de formação económico-social que o mundo historicamente viu.

Na primeira formação económico-social com carácter estadual (a da sociedade esclavagista) o Estado assegura, com o seu funcionamento, a exploração económica do escravo. Depois, com a segunda formação (aquela que caracteriza e constitui o regime da servidão feudal) o Estado promove a exploração dos servos adstritos à gleba, pelos respectivos senhores feudais. Por fim, na terceira formação (a do regime capitalista) o Estado intensifica a segurança dos patrões na exploração dos trabalhadores. Existe, porém, uma semelhança muito curiosa entre o que aconteceu no regime feudal e o que acontece no regime capitalista, rasgo característico de ambos, ao mesmo tempo oposto àquilo que se tinha verificado no regime esclavagista. Digamos que este foi menos hipócrita, ou muito mais sincero, mais brutalmente óbvio no seu estatuto de exploração económica. Isto é o que vamos tentar que fique suficientemente enunciado nas linhas seguintes.

Na generalidade dos regimes esclavagistas da Antiguidade o escravo era juridicamente uma coisa, não uma pessoa. Como tal, integrava-se nos bens patrimoniais do seu dono. Esta completa sujeição não alimentava nem consentia disfarces. O escravo era isso mesmo — uma coisa e só uma coisa. Mas no regime feudal já a coloração é diferente: — está-se no domínio pleno do cristianismo, situação a que os exploradores não podem fugir e que portanto procuram desenhar ao sabor das suas conveniências de classe.

Durante os séculos IX e X vemos o servo «ascender» à condição de colono adscrito. No decurso do século XI define-se a sua adscrição à gleba, jamais a podendo abandonar, pelo que ela se transmite de geração em geração. E no século XIII o adscrito transforma-se em colono livre (colono dito livre), facto que ocorreu em virtude de três factores sócio-económicos:

  1. as lutas contra os mouros (na reconquista cristã) requeriam soldados e a condição destes bom era que aparentasse a de homens livres, isto é, de homens não coagidos;
  2. o trabalho livre era mais qualificado em rentabilidade;
  3. além de que os concelhos concediam liberdade civil a todos os foragidos com culpa delitual, desde que fossem cristãos. Quer isto dizer que os escravos mouros mantiveram então um estatuto análogo ao dos servi (escravos) romanos, sendo significativo encontrarmos nas leis promulgadas em 1211 por Afonso II os derradeiros sinais de constrangimento pessoal sobre cristãos.

Finda porém a adscrição forçada, continuou a exploração do «trabalho livre» na medida em que os adscritos (considerados agora pessoas civis) passaram a formar a classe dos juniores, que cultivava o solo mas não o possuía. »

Talvez tenhamos ido longe. Mas é necessário não esquecermos que estamos em busca de um disfarce comum ao feudalismo e ao capitalismo, disfarce que (por este aspecto) opõe estas duas formações sociais ao regime declaradamente brutal do esclavagismo.

Neste sentido, torna-se necessário ver o que significou o feudalismo. Só que antes, num curtíssimo parêntesis, eu queria alertar o estudioso para a questão que vem de Herculano, Gama Barros e Paulo Merêa, historiadores que assentaram na tese negativa quanto ao problema da existência desse feudalismo em Portugal (Alexandre Herculano, «Da existência ou não existência do feudalismo nos reinos de Leão, Castela e Portugal», no tomo 5.° dos «Opúsculos»; Gama Barros, «História da Administração Pública em Portugal nos séculos XII a XV», tomo L° da 2.° edição; e Paulo Merêa, «Introdução ao problema do feudalismo em Portugal» e «Organização social e administração pública», no 2.° volume da «História de Portugal», de Barcelos. Limitar-me-ei a prevenir que uma revisão do problema à luz do materialismo histórico— com a noção de que o feudalismo, como formação económico-social, haverá de ter tido formas específicas, diferenciadas segundo as condições concretas de cada país e lugar — poderá conduzir à rejeição da tese negativa de Herculano, Gama Barros e Merêa. Há então que rever segundo critérios económico-sociais (e não segundo critérios histórico-jurídicos) o significado da instituição do Condado Portucalense; o do prestimónio de vassalagem de Afonso Henriques a Afonso VII no Tratado de Tui, de 1137; o das doações (feitas a colonos francos) de Vila Verde e Vila Franca em 1160 e 1200, nos quais o próprio Herculano chegou, na sua «História de Portugal», a descobrir «verdadeiros caracteres da concessão dos feudos»; o da doação de Afonso III a seu filho segundo, infante D. Afonso, dos castelos e vilas de Marvão, Portalegre e Arronches; e muito especialmente ainda o significado das duas concessões que, em 1317 e 1319, o rei D. Dinis fez ao almirante genovês Manoel Pessanha, onde os característicos feudais são mais evidentes, particularmente na do castelo e vila de Odemira.

Paulo Merêa, é certo, observava que «para afirmar que o nosso país e os de mais estados ocidentais da Península conheceram o feudalismo é preciso ligar a esta palavra um sentido demasiadamente vago» (sublinhado meu). Mas é evidente que tal sentido, que se pretendeu vago, não passa de ser a definição geral de uma formação económico-social que teve, na Península Ibérica, feições estritamente particularizadas, conformes com o meio concreto em que se geraram.

Seja como for, esclareçamos que Paulo Mêrea distinguiu entre feudo e senhorio — «institutos diversos, com origens diversas, se bem que embrenhadas» (sic). O primeiro filia-se sobretudo em duas práticas antigas — o benefício e o patronato — que, depois fundidas, deram o «feudo». O segundo, o senhorio, e uma «terra» no significado predominantemente económico que o termo implica. E feita esta distinção (dos dois elementos reconhecidamente embrenhados), é-nos fácil surpreendermos a tal «hipocrisia» do feudalismo: — ele aparece instituído juridicamente como um benefício, mas na base vale antes como exploração do servo «beneficiado». E aí está,,portanto, o analogado da hipocrisia capitalista, enquanto esta última organização social constantemente procura fazer crer que o Estado burguês promove, não o domínio da classe exploradora sobre a classe explorada, antes sim a harmonia pouco menos que celestial das duas classes.

Quem não terá esquecido já, que páginas atrás anunciávamos que a questão das funções do Estado a estudaríamos também, do ponto de vista crítico, a partir da lei «constitucional» de 1933?... E quem não terá compreendido ainda que este roteiro de novo efectuado pela História se destinou a esclarecer a mesma questão?... Pois não é verdade que as funções do Estado esclavagista (o funcionamento do Estado esclavagista) se traduziu num processo jurídico-político de domínio dos escravos explorados até à morte pelos seus donos?... E que as funções do Estado feudal valeram um processo jurídico-político do domínio dos servos e dos colonos, explorados pelos senhores feudais?... E que as funções do Estado capitalista se representam na segurança com que os patrões querem continuar a explorar os trabalhadores, os verdadeiros produtores da riqueza?...

Antes de irmos, finalmente, olhar os art.°s 6.° e 35.° da Constituição Política de 1933, assentemos em que a classe dos patrões e a classe dos trabalhadores são classes antagónicas. Isto é: — classes com interesses antagónicos, inconciliáveis. O interesse do capitalista está em continuar acumulando capital à custa da exploração da mão-de-obra e do trabalho dos operários; o interesse dos operários é, contrariamente, o de eliminar esta exploração que o vitima, facto que só terá consumação com a abolição das classes sociais. Ora iremos ver que os art.°s 6.° e 35.° da lei fundamental fascista mistificam hipocritamente o problema das relações essencialmente antagónicas entre estas duas classes.

O que nos diz, então, o art.° 35.° da Constituição Política de 1933?

Ocultando ou ignorando o antagonismo das classes, este preceito mascara efectivamente a realidade com uma refalsada declaração de solidariedade social:

— «A propriedade, o capital e o trabalho desempenham uma função social — reza esta norma dita constitucional —, em regime de cooperação económica e solidariedade, podendo a lei determinar as condições do seu emprego ou exploração conformes com a finalidade colectiva».

Este logro de uma solidariedade impossível destina-se obviamente a assegurar a exploração do trabalho pelo capital. Mas ele agrava-se ainda no art.° 6.° da mesma Constituição, lugar onde semelhante diploma define as várias funções do Estado, entre elas as de

«coordenar, impulsionar e dirigir todas as actividades sociais, fazendo prevalecer uma justa harmonia de interesses (?) dentro da legítima subordinação do particular ao geral» (n.° 2 do art.° 6.°) e as de «zelar pela melhoria das condições das classes sociais mais desfavorecidas, procurando assegurar-lhes um nível de vida compatível com a dignidade humana» (n.° 3, idem).

Basta que o leitor reflicta directamente sobre a forma como a ditadura do 28 de Maio tratou, social e economicamente, a classe trabalhadora, para descortinarmos toda a ardilosa latitude do chamado Estado Novo. Onde estará a «justa harmonia de interesses» entre as classes antagónicas de capitalistas e trabalhadores? Alguma vez será ela possível? E o que são os equivalentes concretos de uma frase tão abstracta como esta — «legítima subordinação do particular ao geral» — se não a exploradora subordinação dos trabalhadores ao capital? E ainda, finalmente, o que vale o falso paternalismo zelador(?) da «melhoria das condições das classes sociais mais desfavorecidas», se um texto constitucional não enuncia (constitucionalmente, está visto) a razão última desse mesmo des- favorecimento?

O objectivo do Estado corporativo fascista — portanto, as funções desse Estado — foi o de encobrir, na Constituição e nas leis, a ditadura do capital monopolista, conferindo à sua organização política e administrativa a aparência de uma «colaboração de classes», de uma «harmonia de interesses» realizável no seio das «corporações». No entanto, uma vez aconteceu que fugiu para a verdade a boca do legislador fascista. Nesse momento ele pôs a nú o âmago da sua hipocrisia e esventrou a realidade — a realidade da exploração do trabalho pelo capital. Foi no art.° 16.° do Estatuto do Trabalho Nacional, publicado também em 1933. Aí, com efeito, o regime fascista preceituou assim:

«O direito de conservação ou amortização do capital das empresas e do seu justo rendimento são condicionados pela natureza das coisas, não podendo prevalecer contra ele os interesses ou os direitos do trabalho».

Este preceito é, clarissimamente, uma formulação jurídica destinada a transformar em «direito» o carácter de classe do Estado e a segurança da exploração do capital sobre o trabalho, na medida em que a este último não são reconhecidos direitos de oposição ao «justo rendimento» (?!) do mesmo capital!... E fala ainda este art.° 16.° na «natureza das coisas» — expressão obviamente abstracta, idealista e mistificadora da realidade. Porque a realidade é a de que as funções do Estado dependem da natureza do mesmo Estado — como máquina (como organização ou aparelhagem) de domínio de uma classe sobre outra. E, por isso, o problema das funções do Estado resume-se necessariamente nesta dupla de posições antagónicas:

  1. a máquina estadual capitalista desempenha funções conformes com o domínio da classe do capital sobre a classe dos trabalhadores, assegurando a exploração desta por aquela;
  2. a máquina estadual proletária desempenhará funções conformes com o domínio da classe trabalhadora sobre a classe do capital, assegurando a instauração da sociedade sem classes (isto é, sem a diferenciação de exploradores e explorados).

Esta é a nudez da verdade que se opõe à demagogia burguesa enquanto ela nos fala em justas harmonias de interesses, em solidariedade social e em cooperação entre as classes, um canto de sereia na glosa de falsos e anticientíficos princípios. É, enfim, a verdade oposta à teoria idealista de um Hegel (por exemplo), segundo o qual o Estado é um ser ético, um ser moral — «a ideia moralizada da realidade».

Como ideólogo da burguesia, ao descobrir as contradições da sociedade capitalista Hegel não tirou (como, ao contrário, irão tirar Marx e Engels) quaisquer conclusões a favor do proletariado. O filósofo do mais influente idealismo germânico, chegaria a manifestar-se no sentido de que as consequências resultantes das contradições sociais unicamente poderão eliminar-se por meio da função ética (reguladora e moralizadora) do Estado burguês. Para Hegel:

«o Estado é a realidade da ideia ética» («Filosofia do Direito» §§ 244-247). Ou:

«O Estado, como realidade moral, como compenetração do substancial e do particular, implica que as minhas obrigações perante a realidade substancial são, ao mesmo tempo, a minha liberdade particular — isto é: que, nele, direito e dever são reunidos numa única e mesma relação» (idem, §§ 260-267).

E ainda:

«Os membros do Governo e os funcionários do Estado constituem a parte principal da classe média, onde reside a inteligência cultivada e a consciência jurídica da massa de um povo» (idem, § 290).

O Estado, em suma, no pensamento hegeliano, representa o cúmulo racional da moralidade (da eticidade) burguesa. O Estado — para Hegel — como árbitro ou moderador ético de todas as funções sociais, ocupa então o mais alto posto de entre todas as categorias políticas.

Assente, porém e ao contrário, que o Estado é sempre um Estado de classe e que as classes (antagónicas) são as opostas dos exploradores e dos economicamente explorados, torna-se evidente que a teoria do Estado ético não passa de um instrumento posto ao serviço da classe burguesa. E porque para Hegel o fenómeno social é coerente e homogéneo, não se vendo o antagonismo económico na base do antagonismo social, o escritor político romeno Constantín J. Gulián, escreveria a propósito — no último capítulo do seu livro de 1963, «Metoda si Sistema La Hegel» — estas palavras que me parecem óbvias: — «Hegel apresenta o Estado como expressão dos interesses do povo não dividido em exploradores e explorados.

Traçando, em linhas gerais, o curso da História universal, Hegel só vê contradições entre os povos, jamais no interior dos mesmos».

Quando a doutrina do Estado ético passa às mãos da hipocrisia fascista dá, como se viu, preceitos da natureza dos art.° 6.° e 35.°, e ainda do art.° 4.° da Constituição Política de 1933. Este último declarararia expressamente que o Estado português, sendo soberano, no entanto «reconhece como limites, na ordem interna, a moral e o direito...» Mas repito:—todos sabem no que resultou, em aplicação prática, este condicionamento «moral» do Estado fascista!... E então, quando a doutrina do Estado ético saía da cabeça dos «docentes» daquele regime, era assim como se tivessem aberto as torneiras da estupidez e da baixa propaganda. Veja-se, a título de exemplo, este pobre e caricato trecho onde J. Estevão Pinto, e José da Silva, autores de um livro de «Organização Política e Administrativa da Nação» (2.° edição, da Livravia Francisco Franco, de Lisboa, págs. 22-23) opunham o «seu» Estado ético àquele outro por eles definido como Estado totalitário.

«Para cumprir a sua missão — escreviam estes submissos e serventuários «docentes»—, o Estado ético subordina-se à moral e ao direito, procurando coordenar as actividades individuais e colectivas, no sentido do bem comum. O Estado ético possui uma doutrina política, económica, social e moral que pretende realizar no seio da Nação una. Neste Estado ético, as três funções do Estado são consideradas independentes, mas devendo harmonizar-se de modo a alcançar o maior bem colectivo».

Depois, estes «educadores» recadeiros opunham o «seu» Estado ético ao Estado não-ético ao Estado imoral, sem limites, que era evidentemente o Estado comunista:

«O Estado comunista ou Estado totalitário — escreviam eles — fundamenta-se nas doutrinas comunistas, que representam uma atitude extrema do socialismo. O Estado monopoliza todos os direitos sobre os indivíduos e sobre todas as fontes de riqueza e de trabalho; não admite a constituição de famílias e todas as crianças pertencem ao Estado, que as educa e lhes fixa a actividade; é um Estado materialista, que aniquila toda a concepção religiosa; todos os indivíduos pertencem ao Estado, não são livres e aceitarão a doutrina estabelecida, sendo eliminados os que pretendem substituí-la ou alterá-la, de qualquer modo que seja».

Mas após este rasgo do mais idiota dos anticomunismos, verdadeiro atentado à inteligência crítica do estudante, ainda os mesmos serviçais autores «mostravam» como o corporativismo, esse sim, era naturalmente o filho dilecto da Moral:

«Das doutrinas intervencionistas derivou o corporativismo e do Estado ético resultou o Estado corporativo, que é uma modalidade daquele. O corporativismo, fundamentado nas corporações medievais e na acção social da Igrejade que trataremos oportunamentecaracteriza-se pela associação dos indivíduos, segundo as suas actividades, em organismos corporativos ou corporações. Nestas ideias se apoiou o Estado corporativo português, cujos princípios se encontram expressos na Constituição de 1933. (...) Daqui se conclui que o Estado corporativo tem por fim substituir a concorrência pela cooperação entre os homens, e, para o conseguir, cuida da junção destes nos organismos corporativos morais, culturais e económicos, aos quais compete não só defender os interesses dos-seus membros como participar na feitura e aplicação das leis. No Estado corporativo, como no ético, as funções do Estado são médias, pois reconhece a separação dos três poderes, mas devendo cooperar intimamente no respectivo exercício; ora, nesses poderes há interferência dos organismos corporativos e só quando estes colaboram no governo da Nação é que o Estado é corporativo».

Aqui fica a anedota, onde só faltou dizer que no inferno dos Estados socialistas comem criancinhas e que o Estado Novo era uma espécie de purgatório com porta aberta para as delícias do Céu. Eis, enfim, a miséria a que, do ponto de vista formativo e educativo, chegavam a escola e o ensino no regime fascista, verdadeiros antros de embrutecimento intelectual e de substituição da teorização (qualquer que ela seja) pela louvaminha sabuja e fétida.

No começo deste capítulo, cumpre recordar voltando às coisas sérias, chamava-se a atenção do leitor para o facto de os próceres do regime deposto em 25 de Abril, como aliás acontece com a generalidade dos corifeus do pensamento burguês, escamotearem sempre o problema da natureza do Estado. É que este situa-se, por força, na base do problema das suas funções e não permite fantasias. Marta Harnecker, por exemplo, no n.° 5 do 7.° capítulo da sua excelente obra de vulgarização, «Os Conceitos Elementares do Materialismo Histórico», coloca este escamoteamento em meia dúzia de palavras que não resisto a transcrever.

«Assim como o tipo de Estado — escreve Marta Harnecker — depende da estrutura económica da sociedade, isto é, da natureza de classe do Estado, as formas de governo dependem das condições históricas concretas. Toda a pessoa ou grupo que se mova dentro das margens estreitas da ideologia dominante, numa sociedade capitalista, tenderá a substituirá problema da natureza do Estado pelo das formas de governo, e deste modo se oculta a natureza de classe do Estado, que é problema essencial e decisivo».

Vamos agora examinar com que aparelhos a máquina estadual exerce as suas funções.

continua>>>


Inclusão 15/12/2014