“Idealismo” e “Materialismo”

Errico Malatesta

15 de janeiro de 1924


Primeira Edição: Extraído de «Anarquismo: Roteiro da libertação social», de Edgar Leuenroth, 2ª edição –CCS-SP/achiamé. Originalmente publicado com o título ‘Idealismo’ e ‘Materialismo’ em Pensiero e Volontà (Roma) 1, no. 2 (15 de janeiro de 1924).

Fonte: https://ultimabarricada.wordpress.com/idealismo-e-materialismo/

HTML: Fernando Araújo.


Tem sido constatado que os homens, antes de alcançarem a verdade, ou aquela porção de verdade relativa alcançável nas várias etapas de seu desenvolvimento intelectual e social, expõem-se a incorrer em erros de toda a natureza, encarando as coisas ora de uma forma ora de outra, passando de um exagero a outro oposto. É um fenómeno desse género, estreitamente ligado à vida social contemporânea, que dá motivo a este trabalho.

Houve uma época – algumas décadas atrás – em que constituía preocupação para os indivíduos o apresentarem-se como materialistas. Em nome de uma ciência, quase sempre baseada na dogmatização de rebuscados princípios gerais ou de incompletos conhecimentos positivos, pretendia-se explicar toda a psicologia humana e toda a agitada história da Humanidade através das necessidades materiais mais comuns e mais imediatas. O “fator económico” tudo explicava – o passado, o presente e o futuro. Todas as manifestações do pensamento, todas as preocupações da vida – amor e ódio, boas e más paixões, a situação da mulher, ambições, ciúmes, orgulho de raça, relações de toda a natureza entre os indivíduos e entre os povos, guerra e paz, submissão e revolta de massas, modalidades várias na constituição da família e da sociedade, regimes políticos, religiões, a moral, a arte e a ciência – tudo não passava de mera consequência do sistema de produção e distribuição da riqueza e do aparelhamento do trabalho predominante em cada época. E aqueles que manifestassem conceção mais ampla e menos simplista da natureza humana e da História, eram considerados, tanto pelos conservadores como entre certos elementos de princípios sociais avançados, como gente atrasada e desconhecedora dos mais elementares princípios científicos.

Este critério influía, naturalmente, na atuação das organizações partidárias e contribuía para que os mais nobres ideais fossem sacrificados pelos interesses materiais e por motivos económicos quase sempre de pouca importância.

Depois, a moda mudou. Aparecer como idealista passou a ser a preocupação de muita gente que se julgava a isso obrigada, para não ser considerada retrógrada… Entre essas pessoas, encontrava-se quem procurava apresentar desprezo pelo estômago e que pretendia encarar o homem como entidade puramente espiritual, para o qual comer, vestir, satisfazer, enfim, as necessidades fisiológicas eram coisas dispensáveis e a que não se devia prestar atenção, sob pena de se dar demonstração de decadência moral.

Naturalmente, não me ocupo, neste trabalho, dos sinistros mistificadores para os quais o idealismo não passa de mera manifestação de hipocrisia e de um instrumento de engano; dos capitalistas que pregam aos trabalhadores o sentimento do dever e o espírito de sacrifício, para amortecer-lhes as energias e poderem continuar pacificamente acumulando fortunas à custa de seu trabalho e de sua miséria; dos “patriotas” que, cheios de fervor pelo amor à pátria e dominados pelo espírito nacionalista, vivem explorando por todos os modos o próprio país e, quando podem, procedem da mesma forma quanto às pátrias alheias; dos militantes que, pela glória da pátria e honra da sua bandeira, atacam outros povos, maltratando-os e oprimindo-os.

Dirijo-me à gente sincera, e, especialmente, aos militantes do movimento social libertário que se mostram preocupados por verificarem que a atividade para a obtenção de melhoramentos económicos imediatos acabou por absorver toda a energia da organização operária, a ponto de anular a tendência para a luta em prol da transformação social; dirijo-me aos companheiros impressionados com o facto de boa parte do proletariado, deixando-se embair pelas promessas de ilusórias melhorias feitas por políticos e pelo patronato permitem passivamente que lhes vão roubando os últimos resquícios de liberdade e ainda se mostram satisfeitos com a vã esperança de conseguir trabalho permanente e salários mais remuneradores; sim, é mormente a esses companheiros que me dirijo, isto é, àqueles a quem o desvirtuamento da atividade da classe trabalhadora envolveu na tendência para o abandono das preocupações e da luta de caráter económico, campo da educação e da luta propriamente revolucionária tendente à transformação libertária da sociedade.

O problema principal, a necessidade fundamental é a da liberdade, dizem esses companheiros e acrescentam que a liberdade não se conquista e não se conserva senão à custa de ativas e permanentes lutas e grandes sacrifícios. Torna-se, portanto, necessário que os militantes do movimento libertário deixem de dar importância às pequenas questões de melhoramentos económicos, passando a combater o egoísmo dominante nas massas, propagando o espírito de sacrifício e, ao contrário de prometerem a fartura, inculcando na multidão o orgulho de ser capaz de sofrer por uma nobre causa.

Perfeitamente de acordo – mas não exageremos. A liberdade, a liberdade ampla e completa é, certamente, a conquista essencial, porque ela é a consagração da dignidade humana e constitui o único meio pelo qual poderemos e deveremos resolver os problemas sociais com benefício para todos. Mas a liberdade é uma palavra vazia se não for amparada pelos meios que lhe facultem a possibilidade de exercer livremente a própria atividade. É sempre verdadeiro o provérbio que diz “quem é escravo é ou torna-se pobre porque perde todos os melhores característicos da personalidade humana”.

As necessidades materiais, as exigências da vida vegetativa são, de fato, coisas de ordem inferior e mesmo despresíveis, mas são a base necessária de toda a vida superior, moral e intelectual. Mil motivos de natureza diversa movem o homem e determinam o curso da História; mas é preciso comer. “Primeiro comer e depois filosofar”.

Um pedaço de tela, um pouco de óleo, um punhado de terra colorida, que constituem os elementos materiais para a fabricação das tintas e dos quadros, são coisas bem insignificantes para o nosso senso estético diante de um quadro de Rafael; mas, sem essas coisas materiais e relativamente sem valor, Rafael não poderia realizar o seu sonho de arte e de beleza.

Devo admitir que os idealistas são pessoas que comem todos os dias e têm sempre a natural certeza de poderem comer no dia seguinte. E é natural que assim seja, porque, para pensar, para poder aspirar a coisas mais elevadas, é indispensável dispor, pelo menos, de pequena soma, ainda que mínima, de bem-estar material.

Existiram em outras épocas – e existem ainda hoje – homens que se elevaram aos mais altos fastígios do espírito de sacrifício, homens que afrontaram serenamente a fome e a tortura e continuaram a lutar heroicamente por suas ideias, sujeitando-se aos mais terríveis sofrimentos; mas são homens que se desenvolveram em condições relativamente favoráveis e puderam, por isso, acumular uma soma de energias latentes que agem quando se torna necessário. Pelo menos, esta é a regra geral.

Em minha vida de militante libertário, tive oportunidade de, durante muitos anos, frequantar organizações operárias, grupos revolucionários e sociedades educativas, e sempre verifiquei que os elementos mais ativos, os mais dedicados, os que sempre estavam dispostos às mais duras tarefas, contribuindo não apenas com a sua atividade, mas ainda com recursos retirados de seus ganhos, não eram os mais necessitados, mas, ao contrário, justamente os de melhor situação – e que se sentiam impelidos à luta não tanto pelas próprias necessidades, mas pelo desejo de cooperar em prol de uma boa obra e sentirem-se nobilitados por um ideal. Os elementos de situação mais miserável, aqueles que, em virtude de suas penosas condições de vida deveriam ser os mais direta e imediatamente interessados na mudança das coisas, conservam-se ausentes, ou participam apenas quando a isso são levados por um interesse imediato e, assim mesmo, como parte passiva, beneficiando-se dos esforços dos demais.

Recordo-me bem como era difícil e, às vezes, estéril a propaganda em certas regiões da Itália, há 50 ou 60 anos passados, quando os trabalhadores do campo e boa parte dos operários de muitas cidades viviam em condições verdadeiramente animalescas – condições essas que, quero crer, jamais possam voltar. Lembro-me também de movimentos populares provocados pela fome cessarem prontamente com a distribuição de um prato de sopa ou de alguns quilos de géneros alimentícios.

De tudo isto conluo que, primordialmente, está a ideia, que deve animar a vontade, mas que são necessárias certas condições para que a ideia possa surgir e entrar em ação. Fica, portanto, reconfirmado o velho programa anarquista que proclama a indissolubilidade da emancipação moral, política e económica e a necessidade de colocar a massa popular em condições materiais capazes de permitirem o desenvolvimento dos imperativos ideológicos.

O que nos cabe, pois, é lutar pela emancipação integral do homem – enquanto aguardamos e preparamos o advento do dia em que a vitória desse desiderato seja possível – tratemos de ir arrancando, pela ação direta, dos capitalistas e dos governantes, todos os melhoramentos politico-sociais e económicos que possam criar um ambiente cada vez mais favorável para o desenvolvimento da luta libertária e permitir o aumento do número daqueles que, conscientemente, se lançam nessa luta. É preciso, entretanto, que os meios empregados para a obtenção dessas melhorias não estejam em contradição com a sua finalidade, isto é, que não impliquem, nem indiretamente, o reconhecimento da presente ordem de coisas por nós condenada e possam preparar a estrada do futuro.

Cabe-nos propagar o sentimento do dever e o espírito de sacrifício, mas não nos esqueçamos de que o exemplo é a melhor das propagandas e que não se pode pretender dos demais aquilo que nós mesmos não fazemos.


Inclusão: 19/01/2022