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A grande crise económica de 1929 modifica primeiro fundamentalmente a atitude da burguesia e dos seus ideólogos para com o Estado; modifica em seguida a atitude dessa mesma burguesia para com o futuro do seu próprio regime.
Há alguns anos, teve lugar nos Estados Unidos um processo escandaloso, o processo de Alger Hiss, que tinha sido substituto do ministro dos Negócios Estrangeiros dos Estados Unidos durante a guerra. Nesse processo, um dos amigos mais íntimos de Alger Hiss, um jornalista da Casa Luce, chamado Chambers, tinha apresentado o depoimento-chave contra Hiss acusando-o de ter sido comunista, de ter roubado documentos do departamento de Estado e de os ter passado à União Soviética. Este Chambers, que era um homem um pouco nevrótico, e que, após ter sido comunista durante os dez primeiros anos da sua vida adulta, terminou a sua carreira como redactor da página religiosa do semanário TIME, escreveu um grosso livro intitulado «Witness» («Testemunha»). E nesse livro há uma passagem que diz aproximadamente isto a propósito do período de 1929-1939: «Na Europa, os operários são socialistas e os burgueses são conservadores; na América, as classes médias são conservadoras, os operários são democratas, e os burgueses são comunistas».
É evidentemente absurdo apresentar as coisas desta maneira exagerada. Mas não há dúvida que o ano de 1929 e o período que se seguiu à grande crise de 1929-1932 foram uma experiência traumática para a burguesia americana, burguesia que, de toda a classe capitalista mundial, era a única imbuída duma confiança total, cega, no futuro do regime da «livre empresa». Recebeu um choque terrível durante essa crise de 1929-1932, que foi verdadeiramente para a sociedade americana a tomada de consciência da questão social e a contestação do regime capitalista, e que corresponde em suma ao que se tinha vivido na Europa aquando do nascimento do movimento operário socialista, no período de 1865-1890 do século passado.
Esta contestação do regime por parte da burguesia tomou formas diversas à escala mundial. Tomou a forma da tentativa de consolidar o capitalismo por melo do fascismo e das diferentes experiências autoritárias, em certos países da Europa ocidental, central e meridional. Tomou uma forma menos violenta nos Estados Unidos, e é esta sociedade americana dos anos 1932-1940 que prefigura aquilo a que se chama hoje o neocapitalismo.
Qual é a razão pela qual não foi a experiência fascista estendida e generalizada, mas antes a experiência dum «desanuviamento idílico» das tensões sociais que deu a sua característica fundamental ao neocapitalismo? O regime fascista era um regime de extrema crise social, económica e política, de tensão extrema das relações entre as classes, determinada, em última análise, por um longo período de estagnação da economia, no qual a margem de discussão, de negociação, entre a classe operária e a burguesia estava quase reduzida a zero. O regime capitalista tinha-se tomado incompatível com a sobrevivência dum movimento operário mais ou menos independente.
Na história do capitalismo, distinguimos, ao lado das crises periódicas que se produzem todos os 5, 7 ou 10 anos, ciclos a mais longo prazo, dos quais falou pela primeira vez o economista russo Kondratief, e que se podem chamar vagas a longo prazo de 25 a 30 anos. A uma vaga a longo prazo caracterizada por uma taxa de crescimento elevada sucede muitas vezes uma vaga a longo prazo caracterizada por uma taxa de crescimento mais baixa. Parece-me evidente que o período de 1913 a 1940 era uma destas vagas a longo prazo de estagnação da produção capitalista, na qual todos os ciclos que se sucederam, da crise de 1913 à crise de 1920, da crise de 1920 à crise de 1929, da crise de 1929 à crise de 1938, estavam marcados por depressões particularmente duras, pelo facto de que a tendência a longo prazo era uma tendência à estagnação. O ciclo a longo prazo que começou com a segunda guerra mundial, e no qual ainda nos encontramos – digamos o ciclo de 1940-1965 ou 1940-1970 — tem, pelo contrário, sido caracterizado pela expansão, e em consequência desta expansão a margem de negociação, de discussão entre a burguesia e a classe operária encontra-se alargada. Assim é criada a possibilidade de consolidar o regime na base de concessões feitas aos trabalhadores, política praticada à escala internacional na Europa ocidental e na América do Norte, e amanhã talvez mesmo em vários países da Europa meridional, política neocapitalista baseada numa colaboração bastante estreita entre a burguesia expansiva e as forças conservadoras do movimento operário, e fundada numa elevação tendencial do nível de vida dos trabalhadores.
Contudo, o fundamento de toda esta evolução é a contestação do regime, a dúvida quanto ao futuro do regime capitalista, e nesse plano já não há discussão possível. Em todas as camadas decisivas da burguesia reina agora a convicção profunda de que o automatismo da' própria economia, os «mecanismos do mercado», são incapazes de assegurar a sobrevivência do regime, que não se pode deixar entregue ao funcionamento interno, automático da economia capitalista, e que é preciso uma intervenção consciente cada vez mais sistemática, para salvar esse regime.
Na medida em que a própria burguesia já não tem confiança no mecanismo automático da economia capitalista para manter o seu regime,- é precisa a intervenção duma outra força para salvar esse regime a longo prazo, e essa outra força é o Estado. O neocapitalismo é um capitalismo caracterizado, antes de mais, por uma intervenção crescente dos poderes públicos na vida económica. É aliás também deste ponto de vista que a experiência neocapitalista actual na Europa ocidental não é senão o prolongamento da experiência de Roosevelt nos Estados Unidos.
Para compreender as origens do actual neocolonialismo, é preciso contudo ter também em conta um segundo factor que explica a intervenção crescente do Estado na vida económica, a saber o factor da GUERRA FRIA, ou mais geralmente o desafio que o conjunto das forças anti-capitalistas lançaram ao capitalismo mundial. Esse clima de desafio toma absolutamente Insuportável ao capitalismo a perspectiva duma nova crise económica grave, do tipo da de 1929-1933. Basta imaginar o que se passaria na Alemanha, se na R. F. A. houvesse cinco milhões de desempregados, ao passo que há penúria de mão de obra na R. D. A., para nos apercebermos das razões duma tal impossibilidade do ponto de vista político. E por isso que a intervenção dos poderes públicos na vida económica dos países capitalistas é antes de tudo ANTI-CÍCLICA, ou, se se prefere, ANTI-CRISE.
Detenhamo-nos por um instante neste fenómeno sem o qual o neocapitalismo concreto que conhecemos desde há 15 anos na Europa ocidental não é compreensível, a saber, este fenómeno de expansão a longo prazo.
Para compreender este fenómeno, para compreender as causas desta vaga a longo prazo que começa com a segunda guerra mundial, nos Estados Unidos, é preciso lembrar que na maior parte dos outros ciclos expansivos que conhecemos na história do capitalismo, encontramos ainda e sempre uma mesma constante, a saber, revoluções tecnológicas. Não é por acaso que houve uma vaga de expansão do mesmo género que precedeu o período de estagnação e de crise de 1913-1940. E um período extremamente pacífico na história do capitalismo do fim do século XIX, durante o qual não houve ou quase não houve guerras, fora das guerras coloniais, e no qual toda uma série de pesquisas, de descobertas tecnológicas, que se tinham armazenado durante a fase precedente, começam a ser aplicadas. No período de expansão que conhecemos actualmente, assistimos mesmo a um processo de aceleração do progresso técnico, de verdadeira revolução tecnológica, para a qual mesmo o termo de 2.ª ou de 3.ª revolução industrial não é completamente adequado. Na realidade, encontramo-nos diante de uma transformação quase ininterrupta das técnicas de produção, e este fenómeno é antes um subproduto da corrida permanente aos armamentos, da guerra fria em que estamos instalados desde o fim da segunda guerra mundial...
Com efeito, se examinarmos atentamente a origem de 99% das transformações das técnicas aplicadas à produção, veremos que essa origem é militar, veremos que se trata de subprodutores das novas técnicas que são primeiramente aplicadas no domínio militar e que, em seguida, encontram a mais ou menos longo prazo essa aplicação no plano produtivo, na medida que entram no domínio público.
Este facto é tão verdadeiro que é hoje utilizado em França, como argumento principal, pelos partidários da força de dissuasão francesa, que explicam que, se não se desenvolve essa força de dissuasão, não se conhecerá a técnica que, daqui a 15 ou, 20 anos, determinará uma parte importante dos processos produtivos industriais, todos os subprodutos das técnicas nucleares e das técnicas conjuntas no plano industrial.
Não quero polemicar aqui com esta tese, que considero aliás inaceitável; quero simplesmente sublinhar que ela confirma, mesmo de maneira absolutamente «extremista», que a maioria das revoluções tecnológicas que continuamos a viver no domínio da indústria e da técnica produtiva em geral são subprodutos das revoluções técnicas no domínio militar.
Na medida em que estamos instalados numa guerra fria permanente, que é caracterizada por uma procura permanente duma transformação técnica no domínio dos armamentos, há aí um factor novo, uma fonte por assim dizer extra-económica, que alimenta as transformações constantes da técnica produtiva. No passado, quando não havia esta autonomia da pesquisa tecnológica, quando a pesquisa tecnológica foi essencialmente obra de firmas industriais, havia uma razão maior para determinar uma marcha cíclica dessa pesquisa. Diziam: é preciso afrouxar agora as inovações, porque temos instalações extremamentes custosas, e é preciso começar por amortizar essas instalações. E preciso que elas se tomem rentáveis que os seus encargos de instalação sejam cobertos, antes de nos lançarmos numa nova fase de transformação tecnológica.
A tal ponto isto é verdade, que economistas como por exemplo Schumpeter tomaram mesmo este ritmo cíclico das revoluções técnicas como explicação de base para a sucessão das vagas a longo prazo expansivas, ou das vagas a longo prazo de estagnação.
Hoje em dia esse motivo económico já não funciona da mesma maneira. No plano militar, não há motivos válidos para suspender a pesquisa de novas armas. Há pelo contrário sempre o perigo de que o adversário encontre uma nova arma antes de o próprio a encontrar. Há por conseguinte um verdadeiro estimulante duma pesquisa permanente, sem interrupção e praticamente sem consideração económica (ao menos para os Estados Unidos), o que faz que agora esse rio corra de maneira ininterrupta. O que quer dizer que nós vivemos uma verdadeira época de transformação tecnológica ininterrupta no domínio da produção. Basta que nos lembremos de tudo o que se produziu no decurso dos últimos 10-15 anos, a partir da libertação da energia nuclear, através da automação, do desenvolvimento das máquinas de calcular eletrónicas, da miniaturização, do «LASER», e de toda uma série doutros fenómenos, para registarmos esta transformação, esta revolução tecnológica ininterrupta.
Ora, quem diz revolução tecnológica ininterrupta diz encurtamento, redução do período de renovamento do capital fixo. Isto explica ao mesmo tempo a expansão à escala mundial, que como toda a expansão a longo prazo no regime capitalista é essencialmente determinada pela amplidão dos investimentos fixos, e também a redução da duração do ciclo económico de base, duração que é determinada pela longevidade do capital fixo. Na medida em que este capital fixo se renova agora a um ritmo mais rápido, a duração do ciclo encurta-se também; não temos mais crises todos os 7 ou todos os 10 anos, mas temos recessões todos os 4-5 anos, isto é, entramos numa sucessão de ciclos muito mais rápidos e muito mais breves que os ciclos anteriores ao período de antes da segunda guerra mundial.
Finalmente, para terminar este exame das condições em que se desenvolve o neocapitalismo de hoje, há uma transformação bastante importante, que se produziu à escala mundial, das condições em que existe e se desenvolve o capitalismo.
Por um lado, há a extensão do campo dito socialista, e por outro lado há a revolução colonial. E se o balanço do fortalecimento do campo dito socialista é efectivamente um balanço de perda do ponto de vista do capitalismo mundial – pode dizer-se perda de matérias-primas, perda de campos de investimentos dos capitais, perda de mercados, perdas em todos os planos — o balanço da revolução colonial, por mais paradoxal que isso possa parecer, ainda não se saldou por uma perda de substâncias para o mundo capitalista. Pelo contrário, um dos factores concomitantes que explicam a amplidão da extensão económica dos países imperialistas e que conhecemos nesta fase, é o facto que na medida em que a revolução colonial se mantém no quadro do mercado mundial capitalista (salvo no caso em que faz nascer outros Estados ditos socialistas), essa revolução colonial estimula a produção e a exportação de bens de equipamento, dos produtos da indústria pesada pelos países imperialistas. Quer dizer que a industrialização dos países subdesenvolvidos, o neo-colonialismo, duma nova burguesia nos países coloniais, são um outro suporte, juntamente com a revolução tecnológica, da tendência expansiva a longo prazo nos países capitalistas avançados, visto que têm no fundo os mesmos efeitos, levam também ao aumento de produção das indústrias pesadas e das indústrias de construção mecânica, das indústrias de fabricação das máquinas. Uma parte dessas máquinas servem para o renovamento acelerado do capital fixo dos países capitalistas avançados; uma outra parte serve para a industrialização, para o equipamento dos países coloniais há pouco independentes.
Desta maneira, podemos compreender o fundamento desta experiência neocapitalista que estamos vivendo, o fundamento que é o dum período de expansão
a longo prazo do capitalismo, período que eu creio limitado no tempo, como os períodos análogos do passado (não creio de modo nenhum que este período de expansão vá durar eternamente e que o capitalismo tenha encontrado agora a pedra filosofal que lhe permitiria evitar não somente as crises mais ainda a sucessão de ciclos a longo prazo de expansão e de estagnação relativa), mas que confronta de momento o movimento operário da Europa ocidental com os problemas particulares desta expansão.
Quais são agora as características fundamentais dessa intervenção dos poderes públicos na economia capitalista?
O primeiro fenómeno objectivo que facilita enormemente uma intervenção crescente dos poderes públicos na vida económica dos países capitalistas é precisamente esta permanência da guerra fria e esta permanência da corrida aos armamentos. Porque quem diz permanência da guerra fria, permanência da corrida aos armamentos, permanência dum orçamento militar extremamente elevado, diz também controle pelo Estado duma fracção importante do rendimento nacional. Se se compara a economia de todos os grandes países capitalistas avançados de hoje com a de todos os países capitalistas de antes da primeira guerra mundial, vê-se imediatamente a mudança estrutural extremamente importante que se produziu e que é independente de toda a consideração técnica e de toda a investigação teórica. É o resultado da ampliação desse orçamento militar, no orçamento dos Estados, que, antes de 1914, ocupava 5%, 6%, 4%, 7% do rendimento nacional, ao passo que o orçamento dos Estados capitalistas de hoje representa 15%, 20%, 25% ou mesmo nalguns casos 30% do rendimento nacional.
Já de começo, e independentemente de toda a consideração no plano do intervencionalismo, pelo simples facto do aumento dessas despesas de armamento permanentes, o Estado controla uma parte importante do rendimento nacional.
Eu disse que esta guerra fria seria permanente durante um longo período. Disso estou pessoalmente convencido. Ela é permanente porque é permanente a contradição de classe entre os dois campos em presença à escala mundial, porque não há nenhuma razão lógica que possa deixar prever, a curto ou médio prazo, quer um desarmamento voluntário da burguesia internacional diante dos adversários com os quais se acha confrontada à escala mundial, quer um acordo entre a União Soviética e os Estados Unidos, que permitissem bruscamente reduzir em metade, em 2/3 ou 3/4 essas despesas com armamentos.
Partimos por conseguinte disto: despesas militares permanentes que tendem a elevar-se em volume e importância em relação à receita nacional, ou pelo menos. a estabilizar-se, isto é, a aumentar na medida em que a receita nacional está em extensão constante nesta fase. E de facto mesmo dessa extensão das despesas militares depreende-se o lugar importante dos poderes públicos na vida económica.
Talvez conheçais o artigo que Pierre Naville publicou há alguns anos na «NOUVELLE REVUE MARXISTE». Nele reproduz uma série de números fornecidos pelo relator do Orçamento em 1956, que marcam a importância prática das despesas militares para uma série completa de um ramo industrial. Há numerosos ramos industriais entre os mais importante, daqueles que estão à cabeça do progresso tecnológico, que trabalham essencialmente para encomendas do Estado, e que estariam condenados a morrer a breve trecho se essas encomendas do Estado desaparecessem: a aeronáutica, a electrónica, a construção naval, as telecomunicações e mesmo a engenharia civil, sem esquecer a indústria nuclear. Nos Estados Unidos há uma situação análoga; mas na medida em que esses ramos se encontram ai mais desenvolvidos e em que a economia americana é mais vasta, a economia de regiões inteiras está aí baseada nesses ramos. Pode dizer-se que a Califórnia, que é o Estado mais em expansão, vive em grande parte do orçamento militar dos Estados Unidos. Se esse pais tivesse de se desarmar e de se manter capitalista, seria a catástrofe para o Estado da Califórnia onde estão localizadas a indústria dos foguetões, a indústria da aviação militar, a indústria electrónica. Não é preciso fazer-vos um desenho para explicar as consequências políticas desta situação particular sobre a atitude dos políticos burgueses da Califórnia: não os encontrareis à cabeça da luta pelo desarmamento!
Segundo fenómeno, que à primeira vista parece em contradição com o primeiro: a extensão daquilo a que poderia chamar-se despesas socais, de tudo aquilo 'que está ligado de perto ou de longe aos seguros sociais que estão em alta constante nos orçamentos públicos em geral, e sobretudo na receita nacional enquanto tal, desde há 25-30 anos.
Este crescimento dos seguros sociais resulta de vários fenómenos concomitantes.
Há primeiro a pressão do movimento operário, que visa desde sempre a atenuar uma das características mais marcantes da condição proletária: A INSEGURANÇA DA EXISTÊNCIA. Visto que o valor da força de trabalho não cobre em suma senão as necessidades da sua reconstituição corrente, toda a interrupção da venda desta força de trabalho — isto é, todo o acidente que impeça o operário de trabalhar normalmente: desemprego, doença, invalidez, velhice — projecta o proletário num abismo de miséria. No começo do regime capitalista, só à «caridade», à beneficência privada ou pública é que o operário sem trabalho podia dirigir-se no seu infortúnio, com resultados materiais insignificantes mas ao preço de terríveis feridas na sua dignidade de homem. A pouco e pouco, o movimento operário impôs o princípio dos SEGUROS SOCIAIS, primeiro voluntários, depois obrigatórios, contra esses acidentes da sorte: seguro contra doença, seguro contra o desemprego, seguro contra a velhice. E finalmente esta luta levou ao princípio da SEGURANÇA SOCIAL que deveria em teoria cobrir o assalariado contra TODA a perda de salário corrente.
Há em seguida um certo interesse do Estado. As caixas que recolhem as somas importantes que servem para financiar esta segurança social dispõem muitas vezes de capitais líquidos importantes. Podem colocar esses capitais em fundos do Estado, isto é, emprestá-los ao Estado (em princípio a curto prazo). O regime nazi tinha aplicado esta técnica, que se estendeu em seguida à maioria dos países capitalistas.
A intumescência cada vez mais importante destes fundos de segurança social levou aliás a uma situação particular que põe um problema teórico e prático ao movimento operário. Este considera a justo título que o conjunto dos fundos depositados nas Caixas de Segurança social — quer pelos patrões, quer pelo Estado, quer pelo desconto nos salários dos próprios operários — constitui simplesmente uma parte do salário, um «salário indirecto» ou «salário diferido». É o único ponto de vista razoável, que concorda aliás com a teoria marxista do valor, visto que é efectivamente necessário considerar como preço da força de trabalho O CONJUNTO da retribuição que o operário recebe em troca dela, pouco importando que essa retribuição lhe seja paga imediatamente (salário directo), ou mais tarde (salário diferido). Por esta razão, a gestão «paritária» (sindicatos-patrões, ou sindicatos-Estado) das caixas de segurança ou previdência social deve ser considerada como uma violação dum direito dos trabalhadores. Visto que os fundos dessas pertencem exclusivamente aos operários, toda a ingerência doutras forças sociais afora os sindicatos na sua gestão deve ser rejeitada. Os operários não devem admitir a «gestão paritária» dos seus salários, do mesmo modo que os capitalistas não admitem a «gestão paritária» das suas cotas de banco...
Mas a intumescência dos depósitos na segurança ou previdência social pode criar uma certa «tensão» entre o salário directo e o salário diferido, elevando-se este algumas vezes até 40% do salário total. Numerosos meios sindicais opõem-se a novos aumentos dos «salários diferidos» e quereriam concentrar qualquer nova vantagem só no salário directamente entregue ao operário. É preciso contudo compreender que subjacente ao facto do «salário diferido» e da segurança social, há o princípio da SOLIDARIEDADE DE CLASSE. Com efeito, as caixas de doença, de acidentes, etc., não se fundam no principio da «recuperação individual» (cada qual recebe no fim de contas tudo o que entregou ou o que o patrão ou o Estado entregou por ele), mas no princípio da SEGURANÇA, isto é, da solidariedade: aqueles que não sofrem acidentes pagam para que os que os sofrem possam ser inteiramente cobertos. O princípio subjacente a esta prática é o da SOLIDARIEDADE DE CLASSE, isto é, do interesse para os trabalhadores de evitar a CONSTITUIÇÃO DUM SUB-PROLETARIADO, que não somente enfraqueceria a combatividade da massa laboriosa (pois cada indivíduo recearia ser precipitado tarde ou cedo nesse sub-proletariado), mas ameaçaria ainda fazer-lhe concorrência e pesar nos salários. (Nestas condições, em vez de nos queixarmos da amplidão «excessiva» do salário diferido, deveríamos pôr em evidência a SUA INSUFICIÊNCIA GRITANTE, que faz com que a maioria dos trabalhadores idosos, mesmo nos países capitalistas mais prósperos, conheçam uma terrível queda de nível de vida.
A resposta eficaz ao problema da «tensão» entre salário directo e salário indirecto está em reclamar a substituição do princípio da solidariedade limitada só à classe laboriosa pelo princípio da solidariedade alargada a todos os cidadãos, isto é, a transformação da segurança social em SERVIÇOS NACIONAIS (da Saúde, do Pleno Emprego, da Velhice) FINANCIADOS PELO IMPOSTO PROGRESSIVO SOBRE OS RENDIMENTOS. É só desta maneira que o sistema do «salário diferido» resultará numa verdadeira subida importante dos salários e numa VERDADEIRA REDISTRIBUIÇÃO DO RENDIMENTO NACIONAL a favor dos assalariados.
Há que reconhecer que até aqui isso nunca foi realizado em grande escala em regime capitalista, e é preciso mesmo pôr-se a questão de saber se essa realização é possível sem provocar uma reacção capitalista que acarretaria rapidamente um período de crise revolucionária. É um facto que as experiências mais interessantes de Segurança Social, como a que foi realizada em França após 1944, ou sobretudo o Serviço Nacional de Saúde na Grã-Bretanha após 1945, foram financiadas muito mais por uma TAXAÇÃO DOS PRÓPRIOS TRABALHADORES (sobretudo pelo aumento dos impostos indirectos e pelo agravamento da fiscalidade directa que atingia os salários mesmo modestos, como por exemplo na Bélgica) do que pela taxação da burguesia. É por isso que em regime capitalista, nunca se assistiu a uma verdadeira e radical redistribuição do rendimento nacional pelo imposto, um dos grandes «mitos» do reformismo.
Há ainda um outro aspecto da importância crescente do «salário diferido», dos seguros sociais, no rendimento nacional dos países capitalistas industrializados: é precisamente O SEU CARÁCTER ANTI-CÍCLICO. Encontramos aqui uma outra razão pela qual o Estado burguês, o neocapitalismo, tem interesse em ampliar o volume desse «salário diferido». E que este desempenha o papel de almofada amortecedora que impede uma queda demasiado brusca e demasiado forte do rendimento nacional em caso de crise.
Outrora, quando um operário perdia o emprego, o seu rendimento caía a zero. quando um quarto da mão de obra dum pais estava desempregada, os rendimentos dos assalariados baixavam automaticamente de um quarto. Muitas vezes foram descritas as consequências terríveis desta baixa de rendimentos, desta baixa da «procura total», para o conjunto da economia capitalista o aspecto duma reacção em cadeia que progredia com uma lógica e uma fatalidade terrificantes.
Suponhamos que a crise rebenta no sector que fabrica bens de equipamento, e que este sector é obrigado a fechar empresas e a despedir os seus trabalhadores. A perda de rendimentos que estes sofrem reduz radicalmente as suas compras de bens de consumo. Em consequência disso, há rapidamente superprodução no sector que fabrica bens de consumo, que por seu turno se vê obrigado a fechar empresas e a despedir pessoal. Assim, as vendas de bens de consumo baixarão uma vez mais, e as mercadorias em armazém sem compradores acumular-se-ão. Ao mesmo tempo, as fábricas de bens de consumo ao serem fortemente atingidas, reduzirão ou suprimirão as suas encomendas de bens de
equipamento, o que acarretará o encerramento de novas empresas da indústria pesada, e por conseguinte o despedimento dum grupo suplementar de trabalhadores, e por isso uma nova baixa do poder de compra de bens de consumo, e por conseguinte uma nova acentuação da crise no setor da indústria ligeira, que acarretará por sua vez novos despedimentos, etc.
Mas a partir do momento em que um sistema eficaz de seguro contra o desemprego tiver sido posto em prática, ESTES EFEITOS CUMULATIVOS DA CRISE SÃO AMORTECIDOS: e quanto mais elevado é o abono de desemprego, mais forte será o amortecimento da crise.
Retomemos a descrição do começo da crise. O sector que fabrica bens de equipamento conhece uma superprodução e é obrigado a despedir pessoal. Mas desde o momento em que o abono de desemprego se eleva, suponhamos, a 60% do salário, esse despedimento já não significa a supressão de todos os rendimentos desses desempregados, mas somente a redução desses rendimentos em 40%. Dez por cento de desempregados num país já não significa uma queda da procura total de 10%, mas somente de 4%; 25% de desempregados não dão mais que 10% de redução dos rendimentos. E o efeito cumulativo produzido por esta redução (que na ciência económica académica se calcula aplicando a esta redução da procura, um MULTIPLICADOR), será reduzido proporcionalmente. As vendas de bens de consumo serão por conseguinte muito menos reduzidas; a crise não se estenderá de maneira tão forte ao sector dos bens de consumo; este despedirá por consequência muito menos pessoal; poderá manter uma parte das suas encomendas de bens de equipamento, etc. Em resumo: a crise deixa de se alargar em forma de espiral; é «travada» a meio caminho. O que hoje se chama «recessão» não é outra coisa senão uma crise capitalista clássica «amortecida» sob o efeito especialmente dos seguros sociais:
No meu «Tratado de Economia Marxista» cito unia série de dados referentes às últimas recessões americanas que confirmam empiricamente esta análise teórica. De facto, segundo esses números, parece que o começo das recessões de 1953 e de 1957 foi fulgurante e duma amplidão em todos os pontos comparável à das crises capitalistas mais graves do passado (1929 e 1938). Mas, ao contrário dessas crises de antes da segunda guerra mundial, a recessão de 1953 e de 1957 cessava de se ampliar a partir dum certo número de meses. Foi por conseguinte travada a meio caminho, e depois começou a se reabsorver. Compreendemos agora uma das causas fundamentais desta transformação das crises em recessões.
Do ponto de vista da distribuição do rendimento nacional entre Capital e Trabalho, a intrumescência do orçamento militar tem um efeito oposto ao da intrumescência do «salário diferido», visto que em todo o caso uma parte deste salário provém sempre de pagamentos suplementares da burguesia. Mas do ponto de vista dos seus EFEITOS ANTI-CÍCLICOS, intrumescência do orçamento militar (das despesas públicas em geral) e intrumescência dos seguros sociais desempenham um papel idêntico para «amortecer» a violência das crises e dar ao neocapitalismo um dos seus aspectos particulares.
A procura total pode dividir-se em duas categorias: procura de bens de consumo e procura de bens de investimento (de bens de equipamento). A intrumescência dos fundos de seguros sociais permite evitar uma queda brutal das despesas (da procura) em bens de consumo, após o começo da crise. A intrumescência das despesas públicas (sobretudo das despesas militares) permite evitar uma queda brutal das despesas (da procura) em bens de equipamento. Assim, nos dois sectores, estes traços distintos do neocapitalismo operam não para suprimir as contradições do capitalismo — as crises rebentam como dantes, o capitalismo não encontrou meio de assegurar um crescimento ininterrupto, mais ou menos harmonioso — mas para as reduzir (ao menos temporariamente, no quadro dum período a longo prazo de crescimento acelerado e a preço duma inflação permanente) a sua amplidão e gravidade.
Uma das consequências de todos os fenómenos de que acabamos de falar, e que têm efeitos anti-cíclicos, é o que se poderia chamar a tendência à inflação permanente, que se manifesta de maneira evidente no mundo capitalista desde 1940, desde o começo ou vésperas da segunda guerra mundial.
A causa fundamental desta inflação permanente é a importância do sector militar, do sector do armamento na economia da maior parte dos grandes países capitalistas. É que a produção de armamentos tem a característica particular de criar um poder de compra, exactamente da mesma maneira que a produção de bens de consumo ou a produção de bens de produção — nas fábricas em que se constroem tanques ou mísseis, pagam-se salários como em fábricas de máquinas ou de produtos têxteis, e os capitalistas proprietários dessas fábricas embolsam um lucro exactamente como os capitalistas proprietários das fábricas siderúrgicas ou das fábricas têxteis — mas em compensação desse poder suplementar de compra, não há mercadorias suplementares que sejam lançadas no mercado. Paralelamente à criação de poder de compra nos dois sectores de base da economia clássica — o sector dos bens de consumo e o sector dos bens de produção — aparecem também no mercado uma massa de mercadorias que podem reabsorver esse poder de compra. Pelo contrário, a criação de poder de compra no sector de armamentos não é compensado pelo aumento da massa das mercadorias, quer de bens de consumo, quer de bens de produção, cuja venda poderia reabsorver o poder de compra assim criado.
A única situação em que as despesas militares não criariam inflação seria aquela em que as mesmas fossem pagas integralmente pelo imposto, e isto em proporções que deixassem subsistir exactamente as proporções entre o poder de compra dos trabalhadores e dos capitalistas por um lado, e entre o valor dos bens de consumo e o dos bens de produção por outro lado.(1) Esta situação não existe em nenhum país, nem mesmo nos países em que a pressão fiscal é mais levada. Nos Estados Unidos, especialmente, o conjunto das despesas militares não é coberto pela fiscalidade, pela redução do poder de compra suplementar, e daí a tendência para a inflação permanente.
Há igualmente um fenómeno de natureza estrutural, na economia capitalista na época dos monopólios, que tem o mesmo efeito, a saber, a rigidez dos preços no sentido da baixa.
O facto de que os grandes «trusts» monopolísticos exercem um controle elevado, senão total, sobre toda uma série de mercados, especialmente sobre os mercados de bens de produção e dos bens de consumo duráveis, traduz-se pela ausência de concorrência nos preços no sentido clássico do termo. Cada vez que a oferta é inferior à procura, os preços aumentam, ao passo que todas as vezes que a oferta supera a procura, os preços, em vez de baixar, permanecem estáveis, ou baixam somente de maneira imperceptível.
Si um fenómeno que se verifica na indústria pesada e na indústria de bens de consumo duráveis, desde há quase 25 anos. Si um fenómeno aliás tendencialmente ligado àquela fase de extensão a longo prazo de que falávamos atrás, porque, devemos reconhecê-lo honestamente, não podemos predizer a evolução dos preços dos bens de consumo duráveis quando esse período de expansão a longo prazo chegar ao fim.
Não se exclui que, quando na indústria automóvel a capacidade de produção excedentária se ampliar, isso levará a uma nova luta de concorrência nos preços e a baixas espectaculares. Poder-se-ia defender a tese de que a famosa crise do automóvel que se espera na segunda metade dos anos 60 (1965, 1966, 1967) poderia ser reabsorvida de maneira relativamente fácil na Europa ocidental, se o preço de venda dos carros pequenos fosse baixado em metade, isto é, no dia em que um 4 CV ou um 2 CV fossem vendidos por 200.000 ou 250.000 antigos francos. Haveria então uma tal extensão da procura que, provavelmente, essa capacidade excedentária desapareceria normalmente. No quadro dos acordos actuais isso não parece impossível; mas se se passar por um longo período de 5-6 anos de luta de concorrência desenfreada (coisa que é Inteiramente possível na indústria automóvel na Europa) é uma eventualidade que se não deve excluir. Acrescentamos desde já que há uma eventualidade mais provável, a da capacidade de produção excedentária ser suprimida pelo encerramento e desaparição de toda uma série de firmas, impedindo então o desaparecimento dessa capacidade excedentária toda a baixa importante dos preços. Essa é a reacção normal diante de semelhante situação no regime capitalista dos monopólios. Não deve excluir-se totalmente a outra reacção, mas de momento ainda não conhecemos isso em nenhum domínio; e por exemplo, para o petróleo, há um fenómeno de superprodução potencial que dura desde há 6 anos, mas as baixas de preço consentidas pelos grandes «trusts». que fazem taxas de lucros de 100% e de 150% são absolutamente anódinas. São baixas de preço de 5% ou 6%. quando eles podiam reduzir o preço da gasolina em metade que se o quisessem.
A outra face da medalha do neocapitalismo é o conjunto dos fenómenos que foram sumariamente resumidos sob a etiqueta de «economia concertada», «programação económica», ou ainda «planificação indicativa». E uma outra forma de intervenção consciente na economia, contrária ao espírito clássico do capitalismo, mas uma intervenção que se caracteriza pelo facto de que já não é essencialmente obra dos poderes públicos, mas antes resulta duma colaboração, duma integração entre poderes públicos por um lado e agrupamentos capitalistas por outro.
Como explicar essa tendência geral à «planificação indicativa», à «programação económica» ou à «economia concertada»?
Deve partir-se duma necessidade real do grande capital, necessidade que decorre precisamente do fenómeno que descrevemos na primeira parte da nossa exposição. Aí falamos da aceleração do ritmo de renovação das instalações mecânicas, em consequência duma revolução tecnológica, mais ou menos permanente. Mas quem diz aceleração do ritmo de renovação do capital fixo, diz necessidade de amortizar despesas de investimento num período de tempo cada vez mais curto. É certo que esta amortização deve ser planificada, calculada de maneira tão exacta quanto possível, a fim de preservar a economia contra flutuações a curto a prazo que ameaçam lançar uma incrível desordem em conjuntos que trabalham com biliões de francos. É neste facto fundamental que reside a causa da programação económica capitalistas, do impulso para a economia concertada.
O capitalismo dos grandes monopólios de hoje acumula dezenas de biliões em investimentos e que devem ser rapidamente amortizados. Não pode continuar a permitir-se o luxo de correr o risco de amplas flutuações periódicas. Há por conseguinte necessidade de garantir a resolução destas despesas de amortização, de estar seguro desses lucros ao menos durante esses períodos do meio termo, que correspondem mais ou menos à duração de amortização do capital fixo, isto é dos períodos que se estendem agora por 4 a 5 anos.
O fenómeno veio aliás do interior mesmo da empresa capitalista, onde a complexidade cada vez maior do processo de produção implica trabalhos de PLANNING cada vez mais exactos para que o conjunto possa avançar. A programação capitalista não é em última análise outra coisa senão a extensão, ou mais exactamente a coordenação, à escala da nação, daquilo que já se fazia dantes à escala da grande empresa capitalista ou do grupo capitalista, do «trust», do cartel, envolvendo uma série de empresas.
Qual é a característica fundamental desta planificação indicativa? Ao contrário da planificação socialista que é de natureza essencialmente diferente, NÃO SE TRATA PROPRIAMENTE DE FIXAR UMA SÉRIE DE OBJECTIVOS EM NÚMERO DE PRODUÇÃO, E ASSEGURAR QUE ESSES OBJECTIVOS
SEJAM EFECTIVAMENTE ALCANÇADOS, mas sim de coordenar os planos de investimento já elaborados pelas empresas privadas, e efectuar essa coordenação necessária propondo quando muito alguns objectivos considerados como prioritários à escala dos poderes públicos, isto é, que correspondam ao Interesse global da classe burguesa.
Num pais como a Bélgica ou a Grã-Bretanha, a operação é feita de maneira bastante crua. Na França, onde tudo se passa a um nível intelectual muito mais refinado, e onde se põe em acção multo disfarce, a natureza de classe do mecanismo é menos aparente. Nem por isso deixa de ser idêntica à da profunda economia dos outras países capitalistas. Quanto ao essencial, a actividade das «comissões do Plano», dos «Gabinetes do Plano», dos «Gabinetes de Programação», consiste em consultar os representantes dos diferentes grupos patronais, em compulsar os seus projectos de investimento e previsões do mercado, e em pôr em consonância essas previsões por sector, esforçando-se por evitar os «goulots»[gargalos] de estrangulamento ou dulros empregos[duplicações].
Gilbert Mathieu publicou três bons artigos sobre esse assunto em «Le Monde» (2, 3, e 6 de Março de 1962), nos quais indica que contra 280 sindicatos que participaram nos trabalhos das diferentes comissões e sub-comissões do plano, houve 1280 dirigentes de empresa ou representantes dos sindicatos patronais. «Praticamente, pensa Francois Perroux, o plano francês é muitas vezes edificado e realizamos sob a influência preponderante das grandes empresas e dos grandes organismos financeiros». E Le Brun, que contudo era dos mais moderados dirigentes sindicais, afirmou que a planificação francesa «é essencialmente combinada entre grandes comissários do capital e grandes comissários do Estado, tendo os primeiros muito naturalmente mais peso que os segundos».
Aliás, esta confrontação e coordenação das decisões das empresas é extremamente útil para os empresários capitalistas. Constitui uma espécie de sondagem do mercado à escala nacional, combinada a longo prazo, coisa que é muito difícil de fazer com a técnica corrente. Mas a base de todos os estudos, de todos os cálculos, continuam a ser números avançados como previsões pelo patronato.
Há por seguinte dois aspectos fundamentais característicos deste género de programação ou de «planificação indicativa».
Por outro lado, essa programação continua a ser baseada muito fortemente aos interesses dos patrões que são o elemento de partida do cálculo.
E quando se fala de patrões, não é bem de todos os patrões que se trata, mas sim das camadas dominantes da classe burguesa, isto é dos monopólios, dos «trusts». Na medida em que algumas vezes, pode haver conflito de interesses entre monopólios muito poderosos (lembremo-nos do conflito que opôs o ano passado na América, a propósito do preço do aço, «trusts» produtores e «trusts» consumidores de aço) há um certo papel de arbitragem que é desempenhado pelos poderes públicos a favor de tal ou tal grupo capitalista. É de certa maneira o conselho de administração da classe burguesa que age a favor do conjunto dos accionários, do conjunto dos membros da classe burguesa, no interesse do grupo predominante, e não no interesse da democracia e da minoria.
Por outro lado, há a incerteza que «e mantém na base de todos estes cálculos, incerteza que resulta do carácter de pura previsão da programação, e do facto que não há instrumentos de realização nas mãos dos poderes públicos, nem aliás nas mãos dos interesses privados, para poder realizar efectivamente o que é previsto.
Em 1956-60, tanto os «programadores» da C. E. C. A. como os do Ministério belga dos Assuntos Económicos, enfiaram por duas vezes o dedo no olho até ao cotovelo no que respeita às suas previsões do consumo de carvão na Europa ocidental e em particular na Bélgica. Uma primeira vez, nas vésperas e durante a crise de abastecimento provocada pela crise do Suez, tinham previsto para 1960 um forte aumento do consumo e por conseguinte da produção de carvão, devendo a produção belga passar de 30 milhões de toneladas de carvão por ano a cerca de 40 milhões de toneladas. Ora, na realidade, a produção caiu em 1960 de 30 para 20 milhões de toneladas. Os «programadores» haviam pois cometido um erro de um para dois, o que não é pouco. Mas no momento em que este erro era registado, cometeram um segundo erro em sentido inverso. Estando em curso o movimento de baixa do consumo de carvão, eles predisseram que o mesmo ia continuar e afirmaram que era preciso prosseguir com os encerramentos de hulheiras. Ora deu-se precisamente o contrário entre 1960 e 1963: o consumo belga de carvão passou de 20 a 25 milhões de toneladas por ano, o que fez com que, após a supressão de um terço da capacidade de produção carbonífera belga, houvesse penúria aguda de carvão, especialmente durante o inverno de 1962-63, tendo sido necessário importar carvão a toda a pressa, inclusive do Vietnam!
Um outro aspecto desta «economia concentrada», que acentua o seu carácter perigoso para o movimento operário, é que a ideia de «programação social» ou de «política dos rendimentos» está implicitamente contida na ideia de «programação económica». Não se pode assegurar aos «trusts» a estabilidade das suas despesas e dos seus rendimentos, durante um período de 5 anos, até que todas as novas instalações tenham sido amortizadas, sem assegurar igualmente a estabilidade das despesas salariais. Não se pode «planificar os custos», se não se «planificam» ao mesmo tempo os «custos de mão de obra», isto é, se não se preveem taxas fixas de aumento dos salários, procurando ater-se a elas rigidamente.
Patronato e governos procuraram impor esta tendência aos sindicatos em todos os países da Europa ocidental, e tais esforços exprimem-se especialmente pelo prolongamento da duração dos contratos, por legislações que tornam mais difíceis as greves-surpresa ou proíbem «greves selvagens», por toda uma algazarra de propaganda a favor duma «política dos rendimentos», que aparece como a «única garantia» contra as «ameaças de inflação».
A ideia de que é preciso orientar-se para esta «política dos rendimentos», de que se «possa calcular exactamente as taxas de aumento dos salários e de que se possa evitar assim as despesas acidentais das greves «que não” rendem nada a ninguém, nem aos operários nem à nação», essa ideia começa também a espalhar-se cada vez mais em França e implica a ideia de integração profunda do sindicalismo no regime capitalista. No fundo, nesta óptica, o sindicalismo deixa de ser um instrumento de combate para os trabalhadores MODIFICARAM a repartição do rendimento nacional, e tomasse uma garantia de «paz social», uma garantia para os patrões da estabilidade do processo contínuo e ininterrupto do trabalho e da reprodução do capital, uma garantia da amortização do capital fixo durante todo o período da sua renovação.
É, bem entendido, uma armadilha para os trabalhadores e para o movimento operário, por muitas razões sobre as quais não posso estender-me, mas essencialmente por uma razão que decorre da própria natureza da economia capitalista, da economia de mercado em geral, e que o Sr. Massé, actual dirigente do Plano francês, admitiu aliás, por ocasião de uma conferência recentemente pronunciada em Bruxelas.
Em regime capitalista, o salário é o preço da força de trabalho. Este preço oscila à volta do valor desta força de trabalho segundo as leis da oferta e da procura. Ora, qual é normalmente, na economia capitalista, a evolução das relações de força, do jogo da oferta e da procura de mão de obra, no decurso do ciclo? Durante o período de recessão e de recuperação, há um desemprego que pesa sobre os salários, e por conseguinte dificuldades muito grandes para os trabalhadores lutarem por aumentos consideráveis de salários.
E qual é a fase do ciclo que é mais favorável à luta pelo aumento dos salários? E evidentemente a fase durante a qual há pleno emprego ou mesmo penúria de mão de obra, isto é, a fase última do «Boom», da alta conjuntura «sobreaquecida».
É nesta fase que a greve pelo aumento dos salários é mais fácil e os patrões têm mais tendência a conceder aumento de salários, mesmo sem greves sob a pressão da penúria de mão de obra. Mas todos os técnicos capitalistas da conjuntura vos dirão que é precisamente durante esta fase que, do ponto de vista da «estabilidade», E UMA VEZ QUE NÃO SE PONHA EM QUESTÃO A TAXA D!E LUCRO CAPITALISTA (porque isto está sempre subentendido neste género de raciocínio!) é precisamente então que é mais «perigoso» desencadear greves e fazer aumentar os salários; porque, se se aumenta a procura total precisamente quando há pleno emprego de todos os «factores de produção», a procura suplementar toma-se automaticamente inflacionária. Noutros termos: toda a lógica da economia concertada é precisamente procurar evitar as greves e os movimentos reivindicativos SÓ DURANTE AQUELA FASE DO CICLO EM QUE AS RELAÇÕES DE FORÇA ENTRE AS CLASSES JOGAM A FAVOR DA CLASSE OPERARIA, isto é, só durante aquela fase do ciclo em que a procura de mão de obra ultrapassa largamente a oferta, só durante aquela fase do ciclo em que os salários poderiam dar um salto em frente e em que a tendência à deterioração da receita nacional entre salários e lucros à custa dos assalariados poderia ser modificada.
O que quer dizer que há acordo para impedir os aumentos ditos inflacionários, durante esta fase precisa do ciclo, e que se acaba simplesmente por reduzir a taxa global de aumento dos salários sobre o conjunto do ciclo, isto é, por obter um ciclo no qual a parte relativa dos assalariados no rendimento nacional terá tendência a baixar permanentemente. Ela já tem tendência a baixar durante o período de recuperação económica, porque é por definição um período de alta da taxa de lucro (senão, não haveria recuperação!); e se durante o período de alta conjuntura e de pleno emprego se impedem os operários de corrigir esta tendência, isso quer dizer que a' tendência à deterioração da repartição do rendimento nacional se perpetua. Existe aliás uma demonstração prática das consequências duma política dos rendimentos absolutamente rígida e controlada pelo Estado com a colaboração de sindicatos. Essa política foi posta em prática na Holanda desde 1945, e aí temos os resultados: uma impressionante deterioração da parte relativa dos salários no rendimento nacional, sem igual em toda a Europa inclusive na Alemanha ocidental.
Num plano puramente «técnico», há aliás dois argumentos peremptórios a opor aos partidários da «política dos rendimentos»:
Aliás, isto não significa que devamos aceitar a argumentação técnica dos economistas burgueses; porque é absolutamente falso dizer que o aumento dos salários superior ao aumento da produtividade é automaticamente inflacionário nos períodos de pleno emprego. Não o é senão na medida em que se deixa estável e intacta a taxa de lucro. Se se quer reduzir a taxa de lucro, como diz o «Manifesto Comunista», graças a uma intervenção tirânica contra a propriedade privada, não há nenhuma inflação. Tira-se simplesmente um poder de compra aos capitalistas para o dar aos trabalhadores. A única coisa que se pode objectar é que isso ameaça refrear os investimentos. Mas pode voltar-se a técnica capitalista contra os seus próprios autores, dizendo-lhes que não é coisa assim tão má reduzir os investimentos nos períodos de pleno emprego e de «boom» sobreaquecido. Antes pelo contrário, essa redução dos investimentos já está a chegar neste mesmo momento, e de ponto de vista da política anticíclica é mais inteligente reduzir os lucros, aumentar os salários, permitindo que a procura dos assalariados, dos consumidores, substitua os investimentos para manter alta a conjuntura, ameaçada pela tendência inevitável dos investimentos produtivos a conhecerem uma certa queda a partir dum certo momento.
De tudo isso podemos tirar a seguinte conclusão: a intervenção dos poderes públicos na vida económica, a economia concertada, a programação económica, a planificação indicativa, não são de modo nenhum neutras do ponto de vista social. São instrumentos de intervenção na economia postos nas mãos da classe burguesa ou dos grupos dominantes da classe burguesa, e de modo nenhum árbitros entre a burguesia e o proletariado. A única arbitragem real efectuada pelos poderes públicos capitalistas é uma arbitragem entre diversos grupos capitalistas no interior da classe capitalista.
A natureza real do neocapitalismo, da intervenção crescente dos poderes públicos na vida económica, pode resumir-se nesta fórmula: cada vez mais, num sistema capitalista que, abandonado ao seu próprio automatismo económico, sofre a ameaça de correr rapidamente para a sua própria perda, O ESTADO DEVE TORNAR-SE A GARANTIA DO LUCRO CAPITALISTA, a garantia do lucro das camadas monopolísticas dominantes da burguesia. Garante-o na medida em que reduz, a amplitude das flutuações cíclicas. Garante-o por encomenda do Estado, militares ou paramilitares, cada vez mais importantes. Garante-o também por meio de técnicas AD HOC que fazem a sua aparição precisamente no quadro da economia concertada, tais como os «quase-contratos» na França, que são explicitamente garantias de lucro para desenvolvimento, quer seja desequilíbrio regional, quer seja desequilíbrio entre os ramos. O Estado diz aos capitalistas: «Se investirdes os vossos capitais em tal ou tal região, ou em tal ou tal ramo, está-vos garantido 6% ou 7% sobre o vosso capital aconteça o que acontecer, mesmo se a vossa bugiganga é invendável, mesmo se se precipitarem para o malogro.» É a forma suprema e mais nítida desta garantia estatal do lucro monopolista que os técnicos franceses do plano nem sequer chegaram a inventar, pois os senhores Shacht, Frank e Goering a tinham já aplicado no quadro da economia de armamento nazi e do plano quadrianual de rearmamento.
Esta garantia estatal do lucro, do mesmo modo que todas as técnicas anticíclicas verdadeiramente eficazes em regime capitalista, representa em última análise uma redistribuição do rendimento nacional em proveito dos grupos monopolistas dirigentes por via duma manipulação estadual pela distribuição dos subsídios, pela redução dos impostos, pela oferta de crédito a juros reduzidos, técnicas, de que resulta sempre em última análise uma subida da taxa do lucro, o que no quadro duma economia capitalista funcionando normalmente, sobretudo numa fase de expansão a longo prazo, estimula evidentemente os investimentos' e actua no sentido previsto pelos autores daqueles projectos.
Ou nos colocamos de um modo completamente lógico e coerente no quadro do regime capitalista, e então será. preciso que exista apenas um meio de assegurar um aumento constante dos investimentos, um reajustamento industrial baseado no aumento dos investimentos privados, o que significará o aumento da taxa de lucro.
Ou então recusamo-nos, como socialistas, a actuar no sentido do aumento da taxa de lucro, e, então, não existe senão um processo de se sair daqui, que será o desenvolvimento dum poderoso sector público na indústria, ao lado do sector privado, ou na prática sair do quadro capitalista e da lógica capitalista e passar ao que entre nós se chama reforma de estruturas anticapitalistas.
Na história do movimento operário belga nos últimos anos, nós presenciamos este conflito de orientação que vos espera em França nos anos próximos, no momento em que sentiram uma primeira amostra de desemprego.
Alguns dirigentes socialistas dos quais em nada quero pôr em dúvida a honestidade pessoal, foram ao ponto de dizer duma maneira tão brutal e tão cínica como o fiz há um instante: «Se quiserem extinguir o desemprego a curto prazo no quadro do regime existente, não existe outro processo de o fazer senão aumentando a taxa de lucro.» Eles não acrescentaram, mas é como se o tivessem dito, que isso implica uma redistribuição do rendimento nacional à custa dos assalariados. Quer isto dizer que não podemos, sem enganar as pessoas, defender ao mesmo tempo uma expansão económica mais rápida, que em regime capitalista implica uma subida dos investimentos privados, e uma redistribuição do rendimento nacional em proveito dos assalariados. No regime capitalista, estes dois objectivos são absolutamente incompatíveis, pelo menos a curto e médio prazo.
O movimento operário encontra-se pois em face da oposição fundamental entre uma política de reformas de estrutura NEOCAPITALISTAS, o que implica a integração dos sindicatos no regime capitalista, e a sua transformação em polícias, em prol da manutenção da paz social durante a fase de amortização do capital fixo, e uma política fundamental ANTICAPITALISTA com o desenvolvimento
de um programa de reformas de estruturas anticapitalistas a médio prazo, que tem por fim essencial tirar as rédeas do comando da economia aos grupos financeiros, aos «trusts» e aos monopólios para os pôr nas mãos da nação, de criar um sector público de peso decisivo no crédito, na indústria e nos transportes e de apoiar o todo no controle operário, quer dizer, a aparição duma dualidade de poder na empresa e na economia no seu conjunto, que levará rapidamente a uma dualidade de poder político.
Notas de rodapé:
(1) A fórmula não é totalmente exacta. Por preocupação de simplicidade, não tomamos em conta a fracção do poder de compra dos capitalistas destinada primeiro ao consumo próprio dos capitalistas; segundo ao consumo dos operários suplementares admitidos graças aos investimentos capitalistas. (retornar ao texto)