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Primeira Edição: International Internal Discussion Bulletin, Volume XVI, Nº 9, Outubro 1979, pp. 3–20.
Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/moreno-mandel?fbclid=IwAR3hxiK846uTiZM7dFws8EFTk3aIK64L_rsrGgMG3JPC0V-K49-EIeRs2xk
Tradução: Roberto F. a partir da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/mandel/1979/06/moreno.html
Colaboração: Gabriel Lecznieski Kanaan
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
O camarada Moreno achou inteligente enviar um livro de 249 páginas intitulado “a ditadura revolucionária do proletariado” para a discussão preparatória do décimo primeiro congresso mundial da Quarta Internacional. Esse procedimento é altamente irregular, antidemocrático e contrário à necessidade de “proletarizar” a organização, ideia pela qual o camarada Moreno tem tanta empatia.
Esse livro se propõe a ser uma resposta ao rascunho de resolução Democracia socialista e Ditadura do Proletariado, que está disponível para os militantes da Quarta há dois anos. Contrapor um livro à resolução, poucos meses antes da data de encerramento da discussão pré-congressual, significa, no mínimo, três coisas: que o camarada está pedindo um tratamento preferencial, um privilégio, visto que, obviamente, nenhum militante, líder ou até tendência da Internacional tem a possibilidade de responder o livro do camarada Moreno com um documento que tenha tamanho minimamente semelhante; que se reduz seriamente a chance da Fração Bolchevique de ter sua tese fundamental ouvida; que se faz impossível para milhares de militantes examinar, antes do congresso mundial, a contribuição mais importante à discussão de um dos pontos mais relevantes do cronograma (já que ninguém acredita de verdade que eles lerão um livro de 249 páginas em tão pouco tempo, ou que debates sérios de visões opostas serão organizados sobre o livro em nossas seções), ou seja, se aplica um golpe aos seus direitos democráticos.
Como a maior parte dos escritos do camarada Moreno, esse texto não objetiva principalmente convencer os membros da Internacional e, menos ainda, elucidar uma questão teórica e política de suma importância. O foco principal é homogeneizar e fanatizar os membros de sua fração, na qual o livro foi estudado e discutido meses antes de ser enviado para a apreciação internacional, tudo sem que a liderança da Internacional tivesse possibilidade de ter uma resposta aos argumentos do camarada Moreno que foram apreciados pela sua fração. Isso também é um fato relevante, não apartado da estranha concepção do camarada Moreno de construir o partido revolucionário, que ele confunde com construir uma fração, e de sua mais estranha ainda concepção de construção de um Estado operário [workers state], que ele identifica com a gestão deste por uma fração minoritária do proletariado.
Para tentar corrigir o máximo possível do dano causado pelo lançamento do polêmico livro do camarada Moreno, nós apresentamos o primeiro rascunho de resposta concentrado em aspectos essenciais e deixando de lado centenas de erros políticos e teóricos presentes no trabalho do camarada Moreno. Quando a oportunidade e a necessidade se apresentarem, nós nos reservaremos o direito de complementar essa primeira e curta resposta com um anexo mais detalhado.
A essência do livro do camarada Moreno combina quatro elementos:
1 - Deformações sistemáticas da posição do Secretariado Unificado [SU], ao ponto da explícita calúnia e falsificação
2 - Um início de revisão do programa da Quarta Internacional sobre a ditadura do proletariado, como está descrito, mais notavelmente, nas Teses e nas resoluções programáticas dos primeiros quatro congressos da Internacional Comunista, no Programa de Transição, e nas obras teóricas fundamentais de Marx, Lenin e Trotsky sobre o tema.
3 - Concessões políticas e teóricas à ideologia da burocracia dos trabalhadores, sobretudo as estalinistas, social-democrata e sindical-nacionalista de países anti-coloniais.
4 - Uma falha no entendimento de determinados problemas relevantes do período de transição entre capitalismo e socialismo, ou seja, a época histórica da ditadura do proletariado.
Um exame cuidadoso desses componentes da tese do camarada Moreno (nós estamos tentados a dizer: de sua doutrina), que recebem a distinção de uma inegável coerência interna, vai possibilitar que nós definamos as principais diferenças que separam as posições do camarada Moreno daquela da maioria da liderança da Quarta Internacional em relação à ditadura do proletariado e de sua relação com a democracia dos trabalhadores. Essas diferenças, deve-se dizer de antemão, não dizem respeito às questões nas quais o camarada Moreno gostaria que nós acreditássemos.
O aspecto mais gritante do texto do camarada Moreno é que a maior parte de sua argumentação — uma rápida estimativa nos diria que a metade dela — é baseada em uma deformação sistemática e deliberada das posições com as quais ele polemiza. Em alguns momentos, essa deformação toma uma forma tão ultrajante e caluniosa que beira o grotesco, privando o autor de toda a sua credibilidade.
O exemplo mais nítido dessa deformação está na afirmação de que a resolução do SU evita as questões da insurreição e da guerra civil. Camarada Moreno argumenta que o SU defende a posição de:
“irrestrita liberdade política para Somoza, Pinochet e para o xá do Irã até o dia em que eles lancem insurreições armadas contra a ditadura do proletariado, sem que haja a possibilidade de julgá-los pelos seus crimes” (página 7).
Por isso, o capítulo 1 é intitulado “Um programa de ‘liberdade política ilimitada’ para o Xá, ou um programa para depô-lo impiedosamente?” (na página 33, nós lemos até que o SU deveria, logicamente, (!) lutar pela “libertação incondicional do Xá e de seus assassinos das prisões da ditadura do proletariado”).
Na realidade, a resolução Democracia socialista e Ditadura do Proletariado coloca, de forma inequívoca, que a liberdade para organizar partidos representados nos sovietes, sem nenhuma restrição ideológica, não se aplica a uma situação insurrecional (quando a ditadura do proletariado não existe) nem a uma guerra civil, mas a uma situação de poder dos trabalhadores consolidado, depois da completa expropriação e desarmamento da burguesia e das outras classes proprietárias. E também se exclui a provisão de liberdade para todos aqueles que tentem derrubar o poder dos sovietes. É descaradamente óbvio que a resolução nada tem a ver com as situações atuais do Chile, Nicarágua ou Irã, onde, infelizmente, a ditadura do proletariado nem existe, muito menos está consolidada de forma séria.
Se quiséssemos jogar o jogo polêmico do camarada Moreno, conseguiríamos, facilmente, virar seu argumento contra ele e responder: para que possamos usar Somoza, Pinochet e o Xá do Irã como provas de revisionismo do SU, o camarada Moreno supõe que seja possível expropriar e desarmar as burguesias nicaraguense, chilena e iraniana; destruir o aparato de Estado burguês, a polícia e o exército dessas ditaduras; estabelecer o poder dos sovietes nesses países e consolidar a ditadura do proletariado sem tocar um fio de cabelo de Somoza, Pinochet ou do xá do Irã. Mais do que isso, ele supõe que vão existir milhares de trabalhadores, nesses países, burros o suficiente para eleger tais tiranos sanguinários para os sovietes e que esses carrascos estarão contentes em viver pacificamente nesses países sob um regime de ditadura do proletariado, sem temer pelas suas vidas ou pela segurança, meramente escrevendo suas “memórias” e fazendo contra-propostas “ideológicas” nos conselhos de trabalhadores, sem tramar para destruir o poder operário. Só nessa situação, com todos esses pré-requisitos atendidos, o SU poderia ser “culpado” de dar-lhes “liberdade” (uma liberdade que os trabalhadores de tais países teriam sido tolos o suficiente para garantir antes que o SU pudesse, ao elegê-los ou eleger seus amigos para os sovietes).
Precisamos dizer que tudo isso não tem nada — nem remotamente — a ver com as teses do SU?
Nós testemunhamos outra rude deformação das posições do SU, quando o camarada Moreno escreve, calmamente, que o SU “gostaria de colocar a revolução e a guerra civil sob as regras do código penal” (p.30). Na verdade, a resolução do SU, literalmente, diz o contrário. Todas as “normas jurídicas” que discutimos — e teremos chance de voltar à sua importância — não se aplicam, nem a uma situação revolucionária/insurrecional, nem a uma guerra civil, mas a uma situação de ditadura do proletariado consolidada. Portanto, lidamos com óbvias falsificações de nossas posições.
Outra amostra da lista de deformações grosseiras das posições do SU é a afirmação do camarada Moreno de que:
“A maioria do SU adota o mesmo programa, para a ditadura do proletariado, que os eurocomunistas adotaram para o socialismo e para o regime capitalista. Nós precisamos ser totalmente nítidos sobre esse ponto.”
E ainda mais explicitamente:
“O SU cometeu um genuíno crime político, teórico e histórico quando colocou, para a ditadura do proletariado, um programa 90% similar ao eurocomunista e diametralmente oposto ao de nossos mestres”.
Sim, você leu corretamente: um programa 90% similar (ou seja, praticamente idêntico) ao dos eurocomunistas! Em outras palavras, de acordo com o camarada Moreno, a questão de ser contra ou a favor da ditadura do proletariado; contra ou a favor da destruição do aparato de Estado burguês; contra ou a favor de desarmar e expropriar a burguesia numa crise revolucionária; contra ou a favor de armar o proletariado; contra ou a favor da criação de um novo tipo de Estado, um Estado de sovietes baseado na organização do proletariado; contra ou a favor do gradualismo, “as vias parlamentares e pacíficas ao socialismo”; contra ou a favor de radicalizar e generalizar mobilizações de massa ao ponto de uma confrontação final com a burguesia; tudo isso separa política, estratégica e teoricamente a Quarta Internacional dos eurocomunistas, tudo isso separa os leninistas dos reformistas de todos os tipos — tudo isso não vale nada (ou vale por mínimos 10%…). Não, o que é decisivo mesmo é o pluralismo de partidos políticos, os avisos de que os leninistas serão “impiedosos” com os “inimigos da ditadura do proletariado”, incluindo aqueles que são parte do proletariado, e a projeção de décadas de guerra civil. Tudo isso é a terra da fantasia.
Alguém consegue nomear UMA revolução socialista que tenha falhado, em qualquer país em que o proletariado urbano constituía a maior parte dos lutadores, por causa do pluralismo partidário? Essas revoluções que falharam, começando pela alemã de 1918–1919 até a chilena e a portuguesa, não obtiveram esse resultado por causa das traições perpetradas por suas direções— e por causa do nível inadequado de compreensão da maior parte dos trabalhadores — em relação às questões que nós acabamos de enumerar?
Não é óbvio que, em todas essas questões — ou seja, em 90% ou até 95% das questões teóricas, políticas, estratégicas e táticas concretas que decidem o destino de revoluções proletárias, ou ao menos o resultado de lutas correntes —, existe uma oposição irredutível, não uma identidade ou similaridade, entre as posições do SU da Quarta Internacional por um lado e as dos eurocomunistas de outro, apesar das enganosas declarações do camarada Moreno dizendo o contrário?
Por razões que continuam obscuras, nos últimos vários anos, o camarada Moreno tem se prestado a atacar de forma caluniosa e teimosa um particular membro do SU, o camarada Mandel. Ele lança outro desses ataques no seu livro. Primeiro, faz-me uma longa acusação — que dura um capítulo inteiro! — de alegar que Trotsky, conforme se aproximava do fim de sua vida, alterou sua posição em algum ponto dos problemas que estamos discutindo e, então, afirma que essa alteração não ocorreu. Aqui, mais uma vez, estamos lidando com uma falsificação grosseira.
O próprio Moreno indica que me refiro à autocrítica de Trotsky sobre a questão do banimento de frações no partido Bolchevique e a uma possível autocrítica (somente implícita) da questão do banimento dos partidos dos sovietes em 1921; mas, tendo dito isso, ele prossegue… e muda de assunto. Fala sobre a guerra civil, Kronstadt, posições de Trotsky de 1924, 1928, 1930, o debate com os Urbahns e a necessidade do papel de direção do partido revolucionário tanto na revolução quanto na ditadura do proletariado.
Entretanto, eu não levantei nenhum desses pontos. Moreno nada diz sobre o que Trotsky escreveu no fim de sua vida sobre as conexões entre o banimento dos outros partidos dos sovietes, o banimento das frações no partido Bolchevique e a ascensão da ditadura totalitária da burocracia. O fato é que, nesses pontos específicos, a posição de Trotsky depois de 1933–34 (que ele não defendera antes dessas datas), era inequívoca. Quatro citações serão suficientes:
Em 1934, Trotsky escreveu um artigo intitulado “Se a América se tornasse comunista”:
“com a gente [na Rússia - N.T.], os sovietes foram burocratizados como resultado do monopólio político de um partido único, que se tornou uma burocracia. Essa situação resultou das dificuldades excepcionais do pioneirismo socialista em um país atrasado e pobre” (Writings of Leon Trotsky 1934–35, New York: Pathfinder Press, 1971, p. 79)
Em 1936, em “A Revolução Traída”, Trotsky afirmou de forma mais explícita:
“a proibição de partidos de oposição trouxe atrás de si a proibição de frações [no partido]. A proibição de frações resultou na proibição de pensar de forma diferente dos líderes infalíveis. O monolitismo, manufaturado de forma policialesca, do partido resultou numa impunidade burocrática que se tornou a fonte de todas as formas de arbitrariedade e de corrupção” (Writings of Leon Trotsky 1934–35, New York: Pathfinder Press, 1971, p. 79)
Em 1937, em “Estalinismo e bolchevismo”, Trotsky diz de forma ainda mais peremptória:
“é absolutamente indiscutível que a dominação de um partido único serviu como ponto de partida jurídico para o sistema totalitário estalinista” (Trotsky, Stalinism and Bolshevism, New York: Merit, 1970, p. 22)
E, finalmente, em 1939, no seu artigo “Trotskismo e o PSOP”, Trotsky torna nítido e generaliza seus pensamentos sobre o assunto:
“é verdade que o partido bolchevique proibiu frações no décimo congresso do partido, em março de 1921, um tempo de perigo mortal. Pode-se discutir se isso foi ou não correto. O curso subsequente do desenvolvimento [da URSS] provou, de um jeito ou de outro, que a proibição serviu como um dos pontos de partida da degeneração do partido. A burocracia fez, do conceito de fração, um bicho-papão, de forma a não permitir que o partido respire ou pense. Portanto, foi formado o regime totalitário que matou o bolchevismo.” (Leon Trotsky on France, New York: Monad Press, 1979, p. 231) [Grifos de Ernest Mandel]
Então, um aviso perspicaz:
“Quem proíbe frações acaba liquidando a democracia do partido e dá o primeiro passo rumo a um regime totalitário”. (Ibid., p. 228 — Trotsky grifou toda a frase.)
Obviamente, essas citações vêm sempre antes ou depois da refutação das teorias que afirmam que o sistema de partido único ou o banimento de frações do partido Bolchevique causaram a degeneração do Estado operário. Para um Marxista, materialista, é certo que causa principal está na situação de atraso do país, na fraqueza relativa do proletariado russo, na derrota da revolução mundial, que deixou a revolução [soviética] isolada nessas condições de atraso. Contudo, a essas causas principais, Trotsky agora adiciona as medidas políticas adotadas em 1920–21 como facilitadoras da degeneração. Isso é uma decorrência indubitável das quatro citações que acabamos de reproduzir. Por isso, devemos escolher uma das duas interpretações possíveis. Ou se pensa que, entre 1933 e 1940, Trotsky — repentinamente tornou-se fatalista e “objetivista” — acreditava que não existia forma de evitar que se facilitasse a criação de um regime totalitário à época de 1920–1921; ou se rejeita essa tese, que contradiz todo o pensamento e todo o significado da luta da Oposição de Esquerda, que se baseou precisamente na possibilidade de contrapor, ao curso rumo à degeneração burocrática, uma alternativa para evitá-la. Nesse caso, a autocrítica implícita nas três primeiras citações — e explícita na última — é inegável.
Sobre a falsificação caluniosa das minhas posições sobre a crise revolucionária no Chile, que atribui a mim a ideia de que o proletariado chileno poderia ter triunfado sobre a ameaça de golpe de Pinochet por uma via inteiramente pacífica confiando (sic) que o governo da Unidade Popular “purgaria o exército e eliminaria o aparato repressivo”, sem uma palavra (sic, de novo) sobre a necessidade de uma mobilização armada do proletariado, ocupando pacificamente as fábricas e estabelecendo cordões industriais: isso é ridículo demais para merecer uma resposta. Alguém só precisa se referir ao que eu escrevi sobre o tema no “Em defesa do leninismo, em defesa da IV Internacional” ou no rascunho de resolução política do IMT para o qual eu fui relator no décimo congresso mundial [da Quarta]. Esse tipo de calúnia costuma retornar, como um bumerangue, contra seu autor. Melhor o Camarada Moreno mudar sua abordagem.
Acreditamos que não tem por que continuar. Cinco exemplos são suficientes. Uma boa parte do livro do camarada Moreno é feito de polêmicas contra posições que não estão nas resoluções do SU, ou seja, polêmicas completamente inúteis, que gastam tempo e energia, exercícios estilísticos por propósitos puramente fracionais. Não há nada de “proletário” ou de “bolchevique” neles. Eles não contribuem em nada para a formação de um verdadeiro partido revolucionário dos trabalhadores.
A polêmica se torna mais séria — tanto no seu propósito declarado, quanto na sua objetiva significância — quando ela lida com questões chaves do programa marxista revolucionário acerca da ditadura do proletariado. Aqui, nós somos compelidos a reparar que, nesses pontos chaves, o camarada Moreno está iniciando uma revisão do programa da IV Internacional, que foi o programa da III Internacional à época de Lenin, e que foi a tradição criada pelos escritos teóricos fundamentais de Marx, Engels e Lenin sobre o assunto, acima de tudo a “Guerra civil na França”, de Marx e o “Estado e a Revolução”, de Lenin.
Incidentalmente, não é acidente que, em um livro de 250 páginas sobre a ditadura do proletariado, camarada Moreno não se refira uma vez às teses do primeiro e do segundo congressos da III Internacional sobre essa questão, ou às outras obras teóricas fundamentais que acabamos de citar… exceto para fazer críticas indiretas a elas, ou até para atacá-las abertamente. Justamente porque a resolução Democracia socialista e Ditadura do Proletariado” está, em relação ao programa, em completa continuidade com esses documentos e 99% dela pode ser achada neles. O camarada Moreno prefere polêmicas conjunturais ou panfletos sobre esses documentos programáticos, trabalhos escritos para circunstâncias específicas, que não podem, de jeito nenhum, se sobrepor às tão consideradas formulações teóricas dos mestres do marxismo revolucionário.
Consideremos o exemplo mais claro e impressionante. O Programa de Transição — que, precisamos admitir, tem valor programático muito maior que uma polêmica ocasional do camarada Trotsky com algum militante ou ideólogo revisionista — afirma claramente:
“A luta pela liberdade dos sindicatos e dos comitês de fábrica, pelo direito de assembleia, por liberdade de imprensa, vai se desenrolar na luta pela regeneração e pelo desenvolvimento da democracia soviética… Democratização dos sovietes é impossível sem a legalização dos partidos soviéticos. Os trabalhadores e camponeses vão indicar, de sua própria vontade, por meio de seu livre voto, quais partidos eles reconhecem como partidos soviéticos”. (Pathfinder, 1977, pp. 145–146)
O camarada Moreno revisa o Programa de Transição quando dá, à frase “liberdade para os partidos soviéticos”, o significado de “liberdade para os partidos que apoiam a revolução”. Se isso fosse assim, a segunda frase perderia boa parte de seu conteúdo. Os trabalhadores (para não falar dos camponeses) não mais seriam livres para eleger os deputados que quisessem para os sovietes. Não teriam mais o direito de eleger social-democratas, stalinistas, eurocomunistas, peronistas, componentes do “partido do congresso” da Índia, PRIstas do México, isso para não dizer anarquistas e vários outros tipos de representantes, caso os partidos aos quais são filiados não mudassem sua atitude ideológica fundamental frente à revolução.
O camarada Moreno busca refúgio em uma linha de defesa pré-estabelecida quando afirma que será a maior parte dos deputados dos sovietes que decidirão se legalizarão ou não um partido. Entendemos essa interpretação do texto do programa como discutível [não comprovada, unwarrant]. O programa não diz que os trabalhadores e camponeses decidirão por maioria quais partidos serão legalizados. Ele diz clara e argutamente que eles [os trabalhadores] mostrarão (a versão em inglês diz: indicarão, o que é ainda mais explícito) pelo voto livre, ao eleger esse ou aquele deputado que pertence a algum partido, quais partidos são partidos soviéticos.
Entretanto, mesmo se aceitássemos a reinterpretação discutível do texto do Programa de Transição realizada pelo camarada Moreno, ela voaria na cara de sua visão. Justamente porque, se, por um grande infortúnio, a maioria dos trabalhadores botasse para legalizar todos esses partidos “ideologicamente contrarrevolucionários”, o camarada Moreno, como um papa da Igreja Neo-Bolchevique, apoiada por um braço secular que não é difícil de visualizar, repreendê-los-ia indignadamente: “em minha sabedoria infinita, eu, Moreno, os proíbo de decidir legalizar partidos contrarrevolucionários. E, se vocês não me acatarem, chamarei vocês mesmos de contrarrevolucionários, declararei seus sovietes contrarrevolucionários, dissolvê-los-ei e governarei, se necessário, contra vocês”, ainda confiando em seu braço secular, obviamente.
Em outras palavras, na verdade, o tema da polêmica não é a questão grotesca das liberdades garantidas a Somoza, Pinochet ou ao xá do Irã, menos ainda a bastante marginal questão das liberdades políticas e ideológicas garantidas aos grandes burgueses e camponeses ricos (depois de expropriá-los e desarmá-los e após a consolidação da ditadura do proletariado). Não, o tema verdadeiro da polêmica é as graves restrições à democracia dos trabalhadores, à democracia dos sovietes, aos direitos e liberdades políticas da classe trabalhadora, implicados no “sistema” do camarada Moreno.
Sejamos claros. Como o camarada Trotsky explicou em diversas ocasiões, é difícil imaginar uma vitória da ditadura do proletariado na Grã-Bretanha, na Alemanha, na França, na Argentina, no Brasil, no México ou na Índia, a menos que uma grande parte da classe trabalhadora — que, hoje, ainda segue as direções tradicionais (reformista, stalinista, eurocomunista, nacionalista-burguesa) — esteja ganha, ao menos nas questões decisivas — que foram enumeradas acima — pelo partido revolucionário.
Todavia, tudo isso, em primeiro lugar, não implica necessariamente que essa maioria do proletariado vai romper em todas as questões com sua direção tradicional, especialmente quando ela tem raízes históricas profundas na história desse dado proletariado nacional e quando está incorporada em partidos que predominaram sobre esse proletariado por, aproximadamente, meio ou até mesmo um século. Em segundo lugar, o fato de que uma maioria assuma essa posição não significa de forma alguma que não se possam formar grandes minorias que continuarão a defender posições mais retrógradas.
Nós já dissemos uma vez e diremos de novo: é uma absoluta utopia supor que, imediatamente após a socialização do poder, menos ainda no período posterior imediato à consolidação da ditadura do proletariado (quando não há mais o perigo imediato de um levante armado pela burguesia), não haverá 10000 partidários do Labour entre os 25 milhões de proletários britânicos; que não haverá 10000 social-democratas na Alemanha; que não haverá 10000 stalinistas entre os 3 milhões de proletários portugueses; que não haverá 10000 trabalhadores eurocomunistas na Itália; que não haverá 10000 trabalhadores ligados o trabalhismo no Brasil; que não haverá 10000 partidários do PRI no México; 10000 trabalhadores “congressistas” na Índia, etc., etc. Na realidade, nós devemos multiplicar por dez — ou por cem — essas estimativas na maior parte dos países mencionados.
Portanto, a questão real é se a ditadura do proletariado implica graves restrições nas liberdades democráticas para milhões de trabalhadores, para um segmento importante do proletariado. A questão é quais formas concretas de poder (de governo, de coerção, de violência) o camarada Moreno defende, não contra o inimigo de classe, mas contra grandes seções de sua própria classe (sejam elas minoria, para não mencionar os casos em que se tornem maioria).
A questão é se Lenin estava grosseiramente equivocado — e se Marx estava grosseiramente equivocado — quando eles revisaram a doutrina do camarada Moreno e afirmaram que a ditadura do proletariado não necessitaria de um aparato repressivo muito poderoso, visto que seria a ditadura da imensa maioria sobre uma minúscula minoria:
“Ainda é necessário reprimir a burguesia e esmagar sua resistência. Isso foi particularmente necessário para a Comuna; e uma das razões para a sua derrota foi que ela não o fez com determinação suficiente. Entretanto o órgão de repressão é, agora, a imensa maioria da população e não uma minoria, como foi sempre o caso sob a escravidão, a servidão e o assalariamento. E, no momento em que a maior parte do povo reprimir, por si mesmos, seus opressores, uma “força especial” de repressão não será mais necessária. Nesse sentido, o Estado começa a desaparecer [perder vigor — N.T]. Em vez de instituições especiais de uma minoria privilegiada (oficialato privilegiado, líderes do exército), a maioria pode, por si, executar essas funções diretamente; e, quanto mais as funções do poder de Estado são devolvidas para o povo diretamente, menos é necessária a existência desse poder” (Lênin, O estado e a revolução”)
Em vez dessa doutrina “revisionista” Lenin e Marx, nós devemos estabelecer como regra programática que a ditadura do proletariado vai necessitar de um poderoso aparato coercitivo consistindo de 55% da população contra 45% dela, incluso nos países industrializados, ou, melhor ainda, vai necessitar de uma minoria de “proletários conscientes” (por definição esses, e só esses, que concordam com o camarada Moreno em tudo) contra a maioria da população, incluindo a maior parte dos trabalhadores?
O camarada Moreno tenta se contorcer para sair dessa dificuldade ao realizar uma distinção sutil entre “o direito de eleger um representante” (digamos, um social-democrata) e o direito desses deputados organizarem um partido. Contudo, ao fazê-lo, ele se enrola ainda mais na teia de suas próprias contradições. Ele é forçado a reconhecer que a “quase absoluta” liberdade de imprensa — esse é um dos raros exemplos em que o camarada Moreno reflete, ele mesmo, a “pressão dos preconceitos democráticos dos proletários ocidentais” — seria útil à ditadura do proletariado:
“A quase absoluta liberdade de imprensa e de opinião que a ditadura do proletariado deve manter é útil em esclarecer a força das diferentes correntes de opinião e em explicitar que a ditadura está informada objetivamente dos problemas existentes, mas está condicionada ao mais absoluto monopólio do poder político pela classe trabalhadora industrial e pelas massas revolucionárias. Isso quer dizer que a liberdade de imprensa, acima de tudo artística e científica, não implica automaticamente liberdade de organização e de atividade para todos os partidos contrarrevolucionários” (págs. 85–86)
Nós deixaremos de lado problemas secundários como o de determinar se a liberdade de imprensa na época de transição pode ser “acima de tudo artística e científica” (o camarada Moreno parece esquecer que comer vem antes de filosofar e que problemas sociais e econômicos — para não mencionar os políticos — vão aparecer muito mais para as amplas massas do que problemas artísticos e científicos). Nós não nos incomodaremos nem com a fórmula ridícula “todos” os partidos revolucionários (ninguém está defendendo liberdade para os fascistas; e é bem provável que “partidos contrarrevolucionários” que não tenham raízes tradicionais no proletariado não elejam ninguém para os sovietes. A questão de sua liberdade de organização não será, portanto, colocada nesses termos).
Porém, o camarada Moreno não parece perceber que a liberdade de imprensa e de opinião “quase absoluta” (essa fórmula é de sua criação) implica, em particular, liberdade para fazer propaganda via panfletos, jornais e panfletos pela liberdade desta ou daquela organização, pela liberdade dos representantes eleitos para sovietes se organizarem em partidos como quiserem, pela liberdade para apelar para os trabalhadores pela reversão do voto de maioria de um congresso dos sovietes proibindo essa ou aquela fração de se organizar num partido, etc., etc.…
Ou o camarada Moreno está pronto para aceitar isso — e aí todas as suas palavras “duras” e “cheias de princípios” sobre restrições a partidos legalizados nos sovietes não passam de ar quente, porque é absolutamente certo que grandes segmentos do proletariado vão usar a sua liberdade de imprensa e a sua liberdade de opinião para ganhar a legalização de suas frações e partidos; ou o camarada Moreno acredita que essa legalização é tão desastrosa para a ditadura do proletariado (veremos o porquê depois) que ele teria que restringir gravemente a liberdade de imprensa e de opinião, generalizar a censura prévia e barrar milhões de proletários de acessar estações de imprensa, televisão e rádio. Visto que muitos desses trabalhadores vão levar sua “impertinência objetivamente contrarrevolucionária” ao ponto de responder com disparates às proibições do camarada Moreno e de seus decretos e de dizer, publicar e disseminar o que eles pensam dessas proibições (o que será bem difícil para o camarada Moreno, deixamos essa gentil advertência previamente), o famoso “braço secular” será necessário de novo, a saber, um enorme aparato policial para impor essas restrições à liberdade do proletariado.
O que sobrará da “quase absoluta liberdade de imprensa e de opinião” sob essas condições? O que sobrará da liberdade dos trabalhadores elegerem quem quer que eles queiram para os sovietes? O que restará do poder da maioria do proletariado em sovietes livremente eleitos? Definitivamente, não pode ser por acaso que o camarada Moreno conclui seu livro com essa nota tipicamente paternalista (para não usar termo mais duro):
“Uma ditadura do proletariado Trotskista (sic) … concederá (sic, de novo) amplas liberdades para cientistas e artistas, da mesma forma que para revolucionários” (p.253)
Para artistas, cientistas e revolucionários. Mas não para o proletariado, ao menos para a sua grande maioria. Entendemos sua mensagem.
A última linha de retirada do camarada Moreno consiste em dizer: ok os novos partidos soviéticos aparecerão na ditadura do proletariado — como último recurso, que seja. Porém Trotsky nunca disse que isso implicaria a legalização de partidos que existiam antes da revolução e cuja natureza contrarrevolucionária tem sido claramente demonstrada de fato, como social-democratas, estalinistas, etc.… Moreno, de sua parte, defende bani-los (p.123). A resolução do SU “evita” esse problema (p.15). Mais uma vez, o camarada Moreno está enganado. Trotsky tinha uma posição clara sobre essa questão:
“No Estado proletário, os meios técnicos de imprensa serão colocados à disposição de grupos de cidadãos em acordo com a sua real importância numérica. Como isso deve ser feito? [Bom, o senhor Hugenberg vai ter que se restringir um tanto, junto com os outros capitalistas monopolistas que fazem negócios com a imprensa. Não tem outro caminho]. A social-democracia receberá um número de gráficas correspondente ao seu número de apoiadores” (Trotsky, a luta contra o fascismo na Alemanha, A frente única de defesa: uma carta para um trabalhador social democrata (fevereiro 23, 1933).
Uma ideia idêntica é colocada em um artigo sobre os Estados Unidos citado acima, datado de 1934. Deixem-nos lembrar que, na república de Weimar, Hugenberg, ao mesmo tempo em que era o principal barão da imprensa, era o líder de um partido de extrema direita aliado aos nazistas. Apesar disso, nem nesse caso Trotsky previu o banimento de seu jornal, mas meramente a restrição — radical, é claro — de seu acesso às gráficas em proporção ao número de membros que ele manteria nas condições de uma ditadura do proletariado consolidada! (Incidentalmente, isso mostra quão errado está o camarada Moreno quando ele afirma (p.87) que, no que tange à liberdade de imprensa, nós podemos nos basear em somente um artigo de Trotsky, o de 1938.)
Deixem-nos repetir: nada disso se aplica em uma situação de guerra civil, obviamente, somente à uma ditadura do proletariado consolidada. Quando você está tomando tiros, você não deixa os assassinos justificarem seu crime. Os anarquistas mais libertários e os social-democratas não apoiavam a liberdade de imprensa para os Falangistas após julho de 1936 em Barcelona, até onde sabemos.
Entretanto, nosso debate não é exatamente sobre essas condições excepcionais (essa palavra aparece dúzias de vezes nos escritos de Trotsky), que pedem por medidas excepcionais. A questão real é se a época de transição do capitalismo ao socialismo, ou seja, a época da ditadura do proletariado, durando meio ou um século, é dominada por essas “condições excepcionais”, se existem, explicitamente, “condições de guerra civil” hoje na URSS, na Polônia, na Tchecoslováquia, na RDA, ou se essas condições já não existem lá por décadas e, portanto, se as restrições de liberdade de imprensa não podem, de jeito algum ser explicadas pela necessidade de uma “guerra civil”, mas por uma ditadura totalitária da burocracia. Nesse ponto, o camarada Moreno revisa flagrantemente o trabalho de Trotsky, para não mencionar Marx e Lenin.
A dialética da teoria, de um sistema de ideias, é implacável. Quem quer que diga A está quase irresistivelmente compelido a dizer B (uma das funções da discussão democrática em uma organização revolucionária é fazer essa compulsão menos irresistível, tentar pará-la no tempo. Se essa tentativa é bem ou mal sucedida, a evolução subsequente mostrará). Então o camarada Moreno é compelido a adicionar, à sua revisão inicial do nosso programa sobre a democracia nos sovietes, uma revisão inicial do nosso programa sobre a natureza espacial do Estado dos trabalhadores, ou seja, dos sovietes!
De “A guerra civil na França” ao “Programa de Transição”, passando pelas “Teses do congresso de fundação da Internacional Comunista”, marxistas tem reafirmado que a ditadura do proletariado não poderia ser exercida por meio de quaisquer instituições. Ela somente pode ser exercida pela destruição da antiga máquina estatal burguesa (herdada, em grande parte, do absolutismo semi-feudal) e pela sua substituição por um novo tipo de Estado, um Estado de sovietes baseado na auto-organização das massas e caracterizado por: a natureza eletiva de todos os postos; possibilidade de remover alguém eleito caso seja a vontade dos eleitores; a redução dos salários dos eleitos para o salário de um trabalhador médio; rotação regular de oficiais eleitos; mescla crescente de funções executivas e legislativas (hoje, após sessenta anos de experiência com revoluções proletárias, nós adicionaríamos três condições: uma drástica redução na jornada de trabalho; a drástica eliminação de qualquer monopólio de cultura ou de acesso à informação centralizada; participação compulsória em todos os órgãos de poder baseada em uma delegação da maioria absoluta de trabalhadores que tenha se mantido ativa na produção).
Toda essa teoria dos sovietes — é disso que estamos tratando — não é, de forma alguma, prescritiva, arbitrária ou uma mera generalização temporária das (ditas parcialmente mal-sucedidas) experiências da Comuna de Paris e da revolução de Outubro. Ela tem fundações profundas, que têm a ver com a própria natureza do proletariado, da ditadura do proletariado e da construção do socialismo, ou seja, da sociedade sem classes. Nós não podemos repetir aqui todos os aspectos dessa teoria, que tem sido explicada de novo e de novo pelos clássicos do marxismo revolucionário. Todavia, as conclusões dessa teoria são claras. Dada a sua natureza social, o proletariado só pode exercer o poder por meio de instituições do tipo soviete. Não existe forma histórica de ir da ditadura do proletariado, como instrumento da transição rumo ao socialismo (ou seja, à eliminação de classes, que quer dizer eliminação da divisão da sociedade em uma classe que produz e outra classe ou camada social [casta] que monopoliza a administração do sobreproduto social com tudo que isso implica), exceto pela organização e pelo exercício do poder pelos próprios trabalhadores para esse propósito.
Mesmo quando a auto-organização dos trabalhadores é complicada pelo atraso do país, pela guerra civil ou pela intervenção externa, ela se mantém como um objetivo imediato dos marxistas revolucionários que deve ser buscado de todas as formas possíveis. Aqui está o que Lenin escreveu sobre o tema no meio da guerra civil em 1918:
“Nosso objetivo é colocar o todo dos pobres no trabalho prático de administração, e todos os passos que são tomados nessa direção — quanto mais variados, melhor — devem ser cuidadosamente gravados, estudados, sistematizados, testados por ampla experiência e incorporados na lei. Nosso objetivo é assegurar que todo trabalhador, ao terminar as oito horas de ‘tarefa’ no trabalho produtivo, consiga realizar tarefas de Estado sem remuneração; a transição para isso é especialmente difícil, mas só ela pode garantir a consolidação final do socialismo”. (Lenin, “As tarefas imediatas do governo soviético”)
Quando Lenin e Trotsky escreveram de forma contrária em 1920 e 1921, foi porque as condições “excepcionais” haviam se tornado “excepcionalmente excepcionais”: o proletariado russo foi reduzido a uma pequena porcentagem da população em condições terríveis de fome e exaustão. O camarada Moreno acha que, dadas as condições presentes (e presumíveis) da revolução mundial, essas condições ocorrerão de novo? E acha que serão a regra? Devemos construir nossa orientação política baseada nessas condições “excepcionalmente excepcionais”?
Além disso, o camarada Moreno achou que era aconselhável iniciar todo um capítulo (5) em que ele ataca a nossa, alegada, “fetichização dos sovietes”. E ele “coroa” esse ataque à “fetichização dos sovietes” com um ataque empolado ao “ultra-democratismo” da Comuna de Paris, baseando-se em duas observações feitas por Trotsky em polêmicas internas da seção francesa (p.140). Nesses documentos, Trotsky colocou que a diferença entre sovietes e uma “municipalidade” do tipo da Comuna é expressa no apoio de um poder centralizado de sovietes de trabalhadores (o que não é exatamente uma suposta reserva de Trotsky a uma “fetichização da forma soviete”).
Não é muito responsável contrapor polêmicas conjunturais a documentos programáticos. Todos os textos programáticos da III Internacional, sob a liderança de Lenin, e da IV Internacional, sob a liderança de Trotsky, apresentam os sovietes e só eles como os órgãos de poder do futuro Estado dos trabalhadores. Da mesma forma, citemos o texto do Programa de Transição, que é positivamente inequívoco:
“Como as diferentes demandas e formas de luta devem ser harmonizadas, mesmo que só nos limites de uma cidade? A História já respondeu a essa questão: por meio de sovietes. Esses unirão representantes de todos os grupos de lutadores. Para esse propósito, ninguém, até então, propôs uma forma diferente de organização; de fato, seria dificilmente possível imaginar algo melhor… Todas as correntes políticas do proletariado podem lutar pela liderança dos sovietes com base na mais ampla democracia. O slogan dos sovietes, portanto, coroa o programa de demandas transicionais.”
“O poder dual é, por sua vez, o ponto culminante do período de transição. Dois regimes, o burguês e o proletário, são irrevogavelmente opostos entre si. Conflitos entre eles são inevitáveis. O futuro da sociedade depende do desfecho. Se a revolução for derrotada, uma ditadura fascista da burguesia se seguirá. No caso contrário, o poder dos sovietes, ou seja, a ditadura do proletariado e a reconstrução socialista da sociedade surgirão”
O mínimo que alguém pode dizer é que esse programa é tão “fetichista” sobre a questão dos sovietes quanto a resolução do SU!
Qual é o conteúdo real das poucas polêmicas de Trotsky contra “o fetichismo da organização por sovietes” que o camarada Moreno cita com tanto deleite? O contexto, amplamente, confirma: estamos lidando unicamente com polêmicas contra aqueles que se fixavam no nome e não no conteúdo. Um soviete não precisa ser chamado de soviete para servir como soviete. Pode ser chamado “comitê de fábrica”, “comitê de milícia”, “comitê da frente única”, “comitê do povo” (sim, de fato!) até mesmo “comitê sindical” ou “comitê de ação”. Mas o conteúdo deve ser o mesmo: auto-organização das massas, eleição de delegados com o direito de remover eleitos; centralização em uma escala local, regional e nacional; capacidade de unificar o proletariado como um todo, etc.… Certamente, pode-se começar com formas de organização que não correspondem exatamente a esses critérios e tentar ir além. Mas, se há falha em ir além, restarão “sovietes” ou burocratizados desde sua concepção ou imitações de sovietes condenadas a desaparecer rapidamente.
Essa foi a doutrina de Trotsky, e ele a defendeu ferozmente em conexão com a revolução alemão, com a greve geral inglesa, com a revolução chinesa, durante a ascensão do fascismo, durante a crise pré-revolucionária na França em 1934–1937, durante a revolução espanhola e em suas projeções dos Estados Unidos socialistas. O que são polêmicas ocasionais contra o fetichismo organizacional frente à essa indefectível continuidade, que, além disso, levou os centristas a acusarem-no de querer “exportar a revolução soviética e torná-la universal”? Em nenhum lugar dos trabalhos de Trotsky se pode achar um ataque ao “fetichismo organizacional à forma soviete” relativo não a uma situação insurrecional ou pré-insurrecional, mas ao problema de organizar as instituições estatais de uma ditadura do proletariado estabilizada.
Contudo, essa não é, de jeito algum, a posição do camarada Moreno. Sua incipiente revisão programática sobre a questão dos sovietes, que começou ao girar os moinhos do “fetichismo organizacional”, vai bem além dele. Ele escreve:
“Nós queremos dizer que a Quarta Internacional deve se esforçar para encontrar organizações desse tipo, como as milícias do COB Boliviano em 1952, da Assembleia do Povo de 1971 e dos sindicatos peronistas em 1956–1957 foram aos seus tempos, ou como as Comissões de Trabalhadores (CCOO) poderiam se tornar na Espanha. Seria um crime se, por resultado de uma fetichização dos sovietes por parte do SU, a Quarta Internacional, por causa da tradição em cada país e da influência destrutiva de partidos de massa oposicionistas, em vez de se basear nessas organizações que nos foram dadas pela realidade da luta de classes, procurasse substituí-las por sovietes irreais. É bem possível que, em vários países, organizações como os sovietes só surjam após a socialização do poder pelo partido revolucionário e que, como nós mostramos, essas mesmas organizações do tipo soviete sejam submetidas aos fluxos e refluxos do processo revolucionário” (p.163)
Tudo isso culmina em uma clara e definida conclusão:
“Ou seja, a ditadura do proletariado, ao longo das próximas décadas, não será sinônimo de organizações do tipo soviete, mas sim da ditadura revolucionária de partidos Trotskistas ou quase-Trotskistas” (mesma página)
Essa citação é a melhor codificação possível do revisionismo sobre a ditadura do proletariado — com relação a toda a tradição e ao programa marxistas revolucionários — feita pelo camarada Moreno!
Uma vez mais, não estamos preocupados com palavras, mas sim com a substância, com o conteúdo. Se o objetivo é dizer que era possível utilizar as milícias de trabalhadores do COB como ponto de partida e transformá-las em genuínos sovietes (mesmo que com outro nome), ninguém acharia problema na afirmação. Porém a lista de organizações referida pelo camarada Moreno é extraordinariamente heterogênea, e isso confirma que a polêmica não lida com a forma (ou com o nome), mas sim com o conteúdo. Nós tivemos uma impressionante confirmação disso durante a discussão do SU sobre a revolução Iraniana, quando um representante da Fração Bolchevique particularmente audacioso adicionou… os comitês de Khomeini à lista feita pelo camarada Moreno.
Ninguém é capaz de sustentar seriamente que a Assembleia do Povo boliviana de 1971, ou os sindicatos peronistas de 1956–1957 eram órgãos de auto-organização de todo o proletariado ou que poderiam tornar-se em pouco tempo (isso para não mencionar o CCOO espanhol). A Assembleia do Povo nem foi eleita; foi escolhida e totalmente controlada pelos burocratas que colaboraram com um ramo do exército burguês. Analogamente, a burocracia peronista de 1956–1957 também não mudou seu caráter, atingiu a independência política do proletariado e quebrou seus laços com a burguesia, até onde sabemos.
Por trás da teoria do camarada Moreno, está o fato de que Marx, Lenin, Trotsky, a III e a IV Internacionais estavam erradas quando conceberam a ditadura do proletariado como auto-organização do proletariado. Não, diz Moreno. O partido revolucionário vence via mobilização das massas sem necessariamente permiti-las organizar-se democraticamente para gerir o poder. Para atingir essa mobilização, ele (o partido) utiliza tudo a seu alcance: sindicatos, assembleias mais ou menos eleitas por cima, comitês escolhidos e até mesmo organizações de conciliação de classes controladas por um clero. O que importa é a manipulação das massas, não a sua auto-organização. Essa é a ideia chave do camarada Moreno. Ela tem origem e natureza sociais precisas. Todos os trotskistas a reconhecerão sem dificuldade.
Logo, não é impressionante que o camarada Moreno combine seu ceticismo frente às organizações tipo soviete e uma atitude ultra-oportunista frente às instituições do Estado burguês-democrático. Ele antevê calmamente — sob certas condições, é claro — que será perfeitamente possível “combinar democracia burguesa e democracia proletária” (p.94), especialmente sob as condições de “luta contra o fascismo ou ameaças de golpes reacionários”. Uma receita perfeita para trazer as mesma derrotas que na Alemanha de 1918 e 1920, na Espanha em 1936 e no Chile em 1973 às revoluções futuras, quando os centristas utilizaram as mesmas circunstâncias contra os “ultra-esquerdistas” que diziam que o proletariado não conquistaria o poder sem destruir as instituições do Estado burguês e substitui-las pelo poder centralizado dos sovietes, dos comitês que eles estavam criando.
Quem quer que diga B, deve dizer C. O camarada Moreno nem mais esconde o seu revisionismo. O “Estado e a Revolução” é um livro para ser descartado como lixo. No fundo, é um “trabalho do Mandel”, repleto de “preconceitos burgueses-democráticos”. Deve ser substituído por:
“O que Lenin e Trotsky escreveram após a Revolução Russa, quando suas teorizações (sic) tiveram que levar em consideração as mudanças impostas pela realidade. O SU erra ao não reconhecer o quanto a Revolução de Outubro enriqueceu (sic, novamente) a teoria Marxista do Estado e da revolução” (p.107. Veja passagem semelhante na página 223)
E de forma mais nítida:
“Todas (sic) as revoluções e ditaduras do proletariado vitoriosas de nosso século foram ditaduras e revoluções de um único partido, nunca de sindicatos, sovietes, comitês de fábrica ou comitês de camponeses. Ou seja, elas nunca foram ditaduras de todos os trabalhadores e de todos os operários, mas sempre de uma minoria organizada como aço, que obteve o apoio, ou a mais ou menos ativa neutralidade, da maioria” (p.113)
Aqui o revisionismo estoura sem embaraço. Tudo que foi afirmado por Marx, por Lenin, pelo primeiro Congresso da III Internacional e pelo “Programa de Transição” — que, enquanto estava sendo escrito em 1938, aparentemente não leva em consideração as “lições da Revolução de Outubro” — é bobagem liberal pequeno-burguesa. A “real” teoria da ditadura do proletariado foi formulada agora pelo camarada Moreno, o “Lenin de nossa época”.
Entretanto, a generalização do camarada Moreno, longe de ser “realista”, em contraste com as supostamente “prescritas” teorias do SU, está longe de ser “concreta” e “dialética”. É simplesmente errada, porque contém, ao menos, quatro erros graves.
Primeiramente, falsifica a história da Revolução de Outubro, que, de fato, culminou em um período de uma ditadura exercida pelos sovietes democraticamente eleitos que representavam a imensa maioria dos operários da Rússia.
Então, ignora o fato de que, após uma curta transição, o exercício do poder por um partido na Rússia deu lugar a uma contrarrevolução política, um Termidor, cuja vitória Trotsky datou, finalmente, em 1923–1924.
Adicionalmente, (a generalização de Moreno) tende a generalizar (e, portanto, a apresentar como inevitável) o fato de que o poder é exercido pela burocracia, ou seja, baseado na expropriação política do proletariado. Isso se dá, visto que, com exceção da revolução Cubana, “todas as revoluções proletárias do nosso século” a que se referem o camarada Moreno terem sido lideradas, desde seu início, pela intenção de uma burocracia privilegiada de excluir o proletariado do exercício do poder político e da auto-organização. O camarada Moreno deve responder à seguinte questão: essa “lei geral” vai se manter válida no futuro? As futuras revoluções também serão lideradas por partidos profundamente burocratizados? Se sim, o que acontece com o famoso papel de direção da IV Internacional? Se não, como se podem tirar conclusões sobre o que pode acontecer com organizações do tipo soviético sob uma liderança leninista proletária a partir do que fizeram Tito, Mao e Ho Chi Minh?
Por fim, o camarada Moreno esquece que todas essas revoluções proletárias vitoriosas a que alude ocorreram em países atrasados em que o proletariado representava uma (às vezes, minúscula) minoria da população, com um nível de desenvolvimento cultural e técnico baixo.
Podemos estender as conclusões tiradas dessas experiências especiais e excepcionais para revoluções proletárias que acontecerão em países em que o proletariado urbano é a maioria, se não a maioria absoluta (países que não são, de forma alguma, limitados à Europa capitalista, mas incluem a América do Norte, Austrália, Japão, os países semi-industrializados da América Latina e várias semi-colonias da Ásia)? Não, claro que não. O que está envolvido aqui não é nenhum tipo de enriquecimento do marxismo, mas uma generalização enganosa que empobrece o marxismo. Essa não é a opinião só do SU. É também a opinião do camarada Trotsky:
“Não se pode pensar que a ditadura do proletariado está necessariamente ligada aos métodos do terror Vermelho que nós tivemos que aplicar na Rússia. Nós fomos os pioneiros. Cobertas de crimes, as classes dominantes russas não acreditavam que nosso regime duraria. A burguesia da Europa e dos EUA apoiou a contrarrevolução Russa. Sob essas condições, só se pode sobreviver à custa de um terrível esforço e da punição implacável dos nossos inimigos de classe. A vitória do proletariado na Alemanha teria um caráter bem diferente. A burguesia alemã, tendo perdido o poder, não teria a menor esperança de recuperá-lo. A aliança da Alemanha soviética com a Rússia Soviética multiplicaria, não duas, mas dez vezes a força dos dois países. Em todo resto da Europa, a posição da burguesia está tão comprometida que não é muito provável que conseguisse colocar seus exércitos em marcha contra a Alemanha proletária. É certo que a guerra civil seria inevitável: existem fascistas suficientes para isso. Porém o proletariado alemão, armado com o poder de Estado e tendo a União Soviética atrás de si, causaria rapidamente a atomização do fascismo ao trazer para seu lado setores substanciais da pequena burguesia. A ditadura do proletariado na Alemanha teria, incomparavelmente, uma forma mais branda e mais civilizada que a ditadura do proletariado na Rússia”. (Letter to social-democratic worker, Trotsky)
E, de modo similar:
“Entretanto, a revolução comunista nos EUA será insignificante, comparada à revolução Bolchevique na Rússia, em termos de suas riquezas nacionais e de sua população, não importando quão grande seja seu custo comparativo. Isso acontece porque a guerra civil de natureza revolucionária não é lutada pela meia-dúzia de homens no topo — ou 5 ou 10% que detêm 90% da riqueza americana; essa meia-dúzia poderia recrutar seus exércitos contra-revolucionários somente das classes médias baixas. Ainda assim, a revolução conseguiria facilmente atrai-los para o seu lado, mostrando que somente o apoiou aos sovietes pode oferecê-los um projeto de salvação…”
“Não existe nenhuma razão pela qual esses grupos deveriam mostrar resistência à revolução; eles não têm nada a perder, considerando, é claro, que os líderes revolucionários adotem uma política moderada e com visão de longo prazo em relação a eles…”
“O mesmo método seria utilizado para atrair pequenos negócios e pequenas indústrias para a organização nacional da indústria. Por meio do controle de matérias-primas, créditos e cotas de pedidos por meio dos sovietes, essas indústrias secundárias poderiam se manter solventes até que elas fossem, gradualmente e de forma não obrigatória, sugadas para o sistema de negócios socializados.”
“De forma não obrigatória! Os sovietes dos EUA não precisariam recorrer às medidas drásticas que as circunstâncias, frequentemente, impuseram aos russos. Nos EUA, por meio da ciência da publicidade e da propaganda, vocês têm meios de ganhar o apoio de sua classe média que estão muito além do alcance dos sovietes da Rússia atrasada com sua vasta maioria de camponeses pauperizados e iletrados…
“Em algumas semanas ou meses após o estabelecimento dos sovietes dos EUA, o Pan-Americanismo seria uma realidade política.
“Os governos das Américas Central e do Sul seriam puxados para a federação de vocês como recheios de metal para um imã. Da mesma forma, seria o Canadá. Os movimentos populares nesses países seriam tão fortes que eles iriam forçar esse grande processo unificador em um tempo curto e a custos insignificantes” (Escritos de Leon Trotsky, 1934–1935)
Sobre a Espanha em 1936, apesar de ela ser substancialmente menos industrializada e seu proletariado ser três vezes menor que o proletariado do Estado Espanhol hoje — isso para não mencionar os (proletários) franceses, italianos, alemães, britânicos ou dos Estados Unidos — Trotsky escreveu tão categoricamente quanto:
“No momento atual, enquanto isso está sendo escrito [duas semanas após o início da guerra civil], a guerra civil na Espanha ainda não terminou. Os trabalhadores de todo o mundo esperam fervorosamente por notícias da vitória do proletariado espanhol”
“De um ponto de vista puramente militar, a revolução espanhola é muito mais fraca que seu inimigo. Sua força está em sua capacidade de colocar as grandes massas em ação. Ela é até capaz de tirar o exército de seus oficiais reacionários. Para conseguir isso, só é necessário, de forma séria e corajosa, avançar o programa da revolução socialista."
“É necessário proclamar que, a partir de agora, as terras, as fábricas e as lojas vão passar das mãos dos capitalistas às mãos do povo. É necessário mover-se de uma vez só em direção à realização desse programa nas províncias em que os trabalhadores estão no poder. O exército fascista não seria capaz de resistir à influência de um programa como esse por 24 horas; os soldados amarrariam as mãos e os pés de seus oficiais e os entregariam ao quartel mais próximo das milícias operárias” (The lessons of Spain, Trotsky)
Várias outras passagens nos escritos de Trotsky sobre a Espanha enfatizam que uma vitória na guerra civil era possível em um curto período (poucas semanas ou poucos meses) e que não implicaria nenhuma possibilidade de intervenção militar internacional de larga escala por parte do imperialismo mundial.
Nós vemos que as “generalizações” retiradas da experiencias de guerra civil russa, iugoslava, chinesa e vietnamita pelo camarada Moreno ignoram suas condições especiais e excepcionais: o atraso desses países, a extrema fraqueza de seu proletariado e, exceto na Rússia, a natureza burocrática e politicamente oportunista das lideranças do campo proletário.
Todavia, no mundo capitalista atual, restam somente poucos países grandes em que o proletariado é uma minoria relativamente pequena da população ativa: Índia, Paquistão, Nigéria, Indonésia e, talvez, Egito. Em todos os outros grandes países — incluindo os semi-coloniais — o proletariado já é uma minoria bem grande da população ativa (ao menos duas vezes maior do que foi na Rússia de 1917), a maioria, ou — no caso dos países imperialistas — a maioria esmagadora da população. Acreditar que, sob essas condições e sob uma liderança Bolchevique, Trotskista a se iniciar, as guerras civis precisam, mais uma vez, ocorrer ao longo de anos e até de décadas (sic — veja as páginas 52 e 53 do livro do camarada Moreno), com o tipo de repressões e restrições à democracia socialista que essas guerras implicam, é revisar completamente os ensinamentos de Marx, Lenin e, especialmente, Trotsky sobre o tema.
Deixem-nos adicionar que o proletariado espanhol conseguiu suas enormes vitórias de julho de 1936 sob condições de extremo pluralismo de partidos e de correntes, liberdade de imprensa e de mídia ilimitadas e com a participação de um grande partido burguês, o Esquerra Catalan, nos comitês de milícia (sovietes emergentes). O poder nos comitês e nas fábricas estava na mão dos trabalhadores, não de um único partido. Essas conquistas foram perdidas, certamente, não pelo pluralismo e pela existência de várias autoridades e partidos horizontais (isso é o que a teoria estalinista diz!), mas por causa da política contrarrevolucionária das lideranças dos trabalhadores.
Com certeza, um partido revolucionário do tipo Bolchevique era necessário para centralizar o poder dos trabalhadores e para, rapidamente, esmagar a contrarrevolução. Porém um partido que mereça esse nome, nas condições concretas da Espanha em 1936, longe de restringir a democracia nos comitês e a democracia direta em relação ao que era em 1936, teria a estendido consideravelmente. Teria se contido de “banir” o PSOE e o PC (que teriam sido reduzidos a uma minoria insignificante caso a direção revolucionária seguisse uma política correta, como Trotsky explicou várias e várias vezes), para não mencionar a CNT-FAI ou o POUM. A experiência concreta da revolução Espanhola se joga na cara do esquema revisionista do camarada Moreno.
O livro do camarada Moreno é repleto de concessões teóricas à burocracia, concessões que combinam com o início de uma revisão programática para traçar um caminho particularmente perturbador para a batalha total lançada pela Fração Bolchevique à (resolução)Democracia socialista e Ditadura do Proletariado.
Isso já fica aparente no vocabulário. Deixando de lado poucas exceções, o camarada Moreno confunde Estados operários com Estados operários burocratizados, ou seja, Estados em que o proletariado exerce o poder no sentido político e imediato do termo e Estados em que ele foi despojado do poder por uma casta burocrática privilegiada (ou onde ele nunca exerceu esse poder), como se essa distinção fosse somente um aspecto absolutamente menor do problema da ditadura do proletariado.
E, mesmo quando ele discute a quantidade insuficiente de democracia socialista em determinados Estados operários, ele o faz em termos realmente chocantes para um Trotskista. O que mais se pode dizer dessa seguinte passagem?
“A revolução dos trabalhadores chineses, apesar de ter sido liderada pela burocracia, representou uma expansão colossal de ‘democracia proletária’, não só em comparação com o regime de Chiang, mas também em relação com as mais avançadas democracias burguesas, que são baseadas na exploração totalitária e bárbara das nacionalidades oprimidas e dos povos coloniais. O proletariado é organizado em sindicatos, e os camponeses em comunas, que são legais e incluem milhões de trabalhadores. O mesmo se aplica em conexão com a oferta de jornais, de prensas para imprensa, rádios e salas de reunião. Elas (essas ferramentas — N.T) estavam, anteriormente, nas mãos da burguesia e do imperialismo; agora estão nas mãos da classe trabalhadora (sic) e do campesinato, mesmo que controlado (sic, de novo) pela burocracia” (p.73)”
E, de forma ainda mais abrangente (desta vez incluindo, explicitamente, a ditadura totalitária estalinista):
“Uma das tarefas mais importantes do trotskismo é, precisamente, educar a classe trabalhadora do mundo para o reconhecimento das ditaduras do proletariado existentes, demonstrando que elas são muito mais democráticas (sic) que qualquer democracia imperialista, (educar — N.T) sobre a inevitabilidade (sic, de novo) de guerras contrarrevolucionárias travadas pelos países capitalistas e imperialistas contra os Estados operários e (educar) sobre a defesa destes” (p.197)
Isso poderia ser retirado de diretamente de qualquer panfleto que faça apologia do estalinismo ou do maoísmo: pela mera nacionalização dos meios de produção, particularmente das prensas de imprensa, do rádio e das estações de televisão, a “democracia proletária” sofre uma colossal expansão tendo ou não o real proletariado (ou sua imensa maioria) acesso real às prensas, etc. Proferir tais coisas é negar, na prática, a ditadura totalitária da burocracia e a expropriação política dos proletariados soviético e chinês. Pedir que a IV Internacional repita tais mentiras para o proletariado do mundo é transformá-la em uma agência de propaganda estalinista, apagando cinquenta anos de luta impiedosa contra a ditadura burocrática.
Comparar a inexistente “democracia proletária” nos Estados operários burocratizados com as restrições e com o decaimento da democracia burguesa é, de novo, imitar os sofismas clássicos da propaganda estalinista. Nós temos perfeita familiaridade com o caráter majoritariamente formal (não completamente formal, entretanto) das liberdades democráticas sob o sistema capitalista de exploração, superexploração imperialista e propriedade privada. Porém a luta implacável da classe trabalhadora arrancou, da burguesia, “embriões da democracia proletária” dentro do Estado burguês. Esses embriões são chamados fortes sindicatos e organizações políticas e culturais do proletariado, tendo suas próprias sedes, imprensas e jornais. Longe de serem “formais”, essas liberdades e vitórias são armas contra a burguesia pelas quais milhares de trabalhadores deram suas vidas. E, do ponto de vista desses ganhos e liberdades do proletariado, existe um retrocesso, não um progresso, na URSS, hoje.
Vamos pegar dois exemplos: primeiro, um sindicato. O camarada Moreno parece não saber que, por mais de uma década, durante e depois da Revolução Cultural, não existiam mais sindicatos em toda a República Popular da China. Eles só foram reorganizados nos últimos poucos anos. Ele parece não saber que, no ápice da Revolução Cultural, houve uma grande manifestação, em Shangai, da “força de trabalho da comuna” protestando contra o fato de estar sendo “alugada” às fábricas por salários baixos a ponto da inanição, bem abaixo das normas oficialmente existentes. Essa demonstração, além do mais, foi duramente reprimida. Ele parece não saber que na Polônia, bem recentemente, mais uma vez, o mero fato de estar em greve representou, automaticamente, a expulsão do sindicato e a demissão, sem que nem houvesse o direito ao seguro-desemprego. Ele parece não saber que, por décadas, os sindicatos soviéticos estiveram satisfeitos com o estabelecimento de um trabalho por peças generalizado, com a obediência cega às ordens do gestor e com uma “batalha pela produção” sem levar em consideração a saúde e a segurança dos trabalhadores, ou seja, em violação até mesmo da legislação oficialmente vigente. A situação melhorou um pouco desde então, mas o papel do sindicato não se alterou fundamentalmente.
O camarada Moreno terá a coragem sombria de dizer que, do ponto de vista dos direitos e dos poderes dos sindicatos, a “democracia proletária” é “muito mais avançada” na URSS e na China do que nos países em que o proletariado possui organizações sindicais fortes e independentes do Estado burguês e da burguesia?
Agora, o exemplo da imprensa. O camarada Trotsky expressou suas visões sobre o tema bem claramente. Ele escreveu em “A revolução traída”:
“Com certeza, o novo contrato “garante” aos cidadãos as chamadas ‘liberdades’ de discurso, de imprensa, de assembleia e de manifestações de rua. Mas, cada uma dessas garantias, tem a forma de uma pesada focinheira ou de algemas em mãos e pés. A liberdade de imprensa significa a continuação da feroz censura antecipada cujas correntes são seguradas pelo Secretariado de um Comitê Central que ninguém elegeu” (New York: Merit 1965, p.262)
O camarada Moreno não sabe que 99% dos trabalhadores soviéticos e chineses não tem acesso a nenhuma prensa de impressão? Ele não sabe que o mero fato de publicar um panfleto, para não dizer um jornal, para condenar uma injustiça feita a algum membro do proletariado, para condenar o trabalho por peças, para demandar a implementação de regras de segurança do trabalho ou mais igualdade de salários, leva à prisão, ao sentenciamento e envio para campos de trabalhos forçados por “agitação anti-soviética” ou até ao internamento em um hospital psiquiátrico? Ele vai ousar alegar que, do ponto de vista de ter capacidade de defender o seu próprio interesse de classe pela mídia, os trabalhadores soviéticos e chineses contam com muito mais liberdade proletária do que trabalhadores em países em que organizações proletárias poderosas independentes do Estado burguês e da burguesia ainda existem? Existe a possibilidade de o camarada Moreno ter a liberdade de publicar seu livro em tantas línguas — o que não é um direito garantido pela burguesia imperialista, mas uma vitória obtida sobre a classe capitalista pela luta persistente de milhões de trabalhadores à custa de enormes sacrifícios — na URSS ou na China?
O proletariado dos Estados operários burocratizados tem profundo conhecimento de sua expropriação política por parte da burocracia totalitária — que não haja dúvida sobre “expropriação política” significar perda de poderes e direitos políticos. Ela se revolta contra essa expropriação. Ela está se preparando para corrigir a situação por meio de uma revolução política. Ao tentar transformar a IV Internacional em uma máquina de propaganda se desculpando pela ditadura burocrática, o camarada Moreno não só tira isso do proletariado dos Estados operários burocratizados. Caso ele seja bem sucedido — o que é, felizmente, improvável — ele terminaria com uma profunda divisão entre o proletariado que luta pela revolução socialista e o proletariado que luta pela revolução política. Pelo contrário, a posição da IV Internacional ajuda a manter e a fortalecer a unidade do proletariado mundial, a unidade da luta dos trabalhadores ao redor do mundo, que só pode culminar no exercício do poder pelos sovietes democraticamente eleitos em todos os países.
Stalin e a burocracia soviética implementaram duas teorias fundamentais para apoiar o fortalecimento, na prática, do aparato repressivo contra os trabalhadores e camponeses de seu próprio país, que já haviam, de um jeito ou de outro, “construído o socialismo”, ou seja, para justificar a manutenção e o fortalecimento da ditadura da burocracia. A primeira consistiu no cerco imperialista e nas ameaças permanentes de guerra. A segunda foi a teoria de que a “luta de classes se agudiza” (implicando que a restauração capitalista se torna um perigo cada vez maior) conforme a construção do socialismo e, de fato, do comunismo vai adiante.
E, agora, aqui está o camarada Moreno fazendo flagrantes concessões a essas teorias… enquanto as atribui a Trotsky! De a cordo com ele, não só uma guerra contrarrevolucionária de intervenção imperialista é inevitável em cada caso de vitória da revolução, mas também é necessário concluir que esse perigo aumenta conforme a revolução vitoriosa se estende internacionalmente, conforme o número de Estados operários aumenta.
Nós estamos, obviamente, lidando com uma enorme subestimação das possibilidades de solidariedade e de extensão internacional fornecida pelas revoluções socialistas vitoriosas e com uma colossal superestimação do grau de controle que a burguesia imperialista tem sobre a população de seu próprio país. O camarada Moreno não parece ter aprendido nada com o movimento antiguerra dos EUA, ou com as consequências políticas vinculadas a ele. Ele não parece entender o tremendo apelo que uma direção revolucionária genuinamente internacionalista que comande um Estado operário em um país industrializado teria para o proletariado mundial. No fundo, ele está cético em relação à revolução mundial.
Apesar disso, o camarada Trotsky afirmou, explicitamente, o oposto:
“Se a revolução espanhola tivesse sido vitoriosa, teria dado um forte ímpeto ao movimento revolucionário na França e nos outros países. Nesse caso, nós poderíamos ter esperado, com confiança que o movimento socialista vitorioso seria bem sucedido em prevenir a guerra imperialista, tornando-a sem sentido, fútil”. (Trotsky, La revolution espagnole)
“Por antecipação, é possível estabelecer a seguinte lei: quanto mais haja países onde o sistema capitalista é quebrado, mais fraco será a resistência oferecida pelas classes dominantes em outros países, menos agudo será o caráter assumido pela revolução socialista, menos violenta será a forma que a ditadura do proletariado terá, menor ela será…
“O socialismo não teria valor se ele não trouxesse consigo, não só a inviolabilidade jurídica, mas também a completa salvaguarda de todos os interesses da personalidade humana. A humanidade não toleraria uma abominação totalitária do tipo do Kremlin” (Escritos de Leon Trotsky)
O camarada Moreno cita este último texto de Trotsky (mas omite a passagem final. Desde então, entretanto, o número de países em que o capitalismo foi esmagado aumentou de um para dezesseis. A resolução do SU está centrada na hipótese de que essa cifra ainda aumentará no futuro não-tão-distante e incluirá, pela primeira vez, alguns países com um proletariado qualitativamente mais poderoso que o da URSS em 1917, que o da China em 1949 ou que o de Cuba em 1960. Porém, mesmo citando esse texto, o camarada Moreno tem a coragem de tirar uma conclusão oposta à de Trotsky: guerras civis mais longas; uma ditadura mais severa e mais violenta; nada além de relinchos sobre a inviolabilidade jurídica; a inevitabilidade de guerras imperialistas de intervenção em larga escala. Até o presente, Posadas teve o triste monopólio desse tipo de “Trotskismo” (incluindo aquele da inevitabilidade de uma guerra nuclear mundial). Não estaria nosso “novo Lenin” mais para um “novo Posadas”?
Com certeza, enquanto o imperialismo sobreviver em um país principal, ele nunca se resignará quanto à existência de Estados operários. Ele sempre se esforçará para minar suas estruturas sócio-econômicas. Ele organizará subversão política contrarrevolucionária. Ele continuará a se armar para tentar reintroduzir o domínio capitalista por meio de uma agressão militar. Contudo, existe uma enorme diferença entre esses objetivos históricos de uma classe social em declínio, e o que ela pode alcançar na prática — determinada, por exemplo, pela correlação de forças mundialmente, pelas tendências da revolução (e contrarrevolução) mundial e pela situação doméstica nos próprios países imperialistas. O camarada Moreno não profere uma palavra sobre nada disso. Ele reduz tudo somente à ameaça militar permanente que o imperialismo implica sobre os Estados operários. Ao fazer isso, ele revisa a teoria trotskista de que, sem uma derrota de grande escala do proletariado mundial, uma guerra nuclear mundial é, se não impossível, ao menos, extremamente improvável.
Sua abordagem ao aspecto econômico do problema é ainda pior. Ela contém as seguintes tolices:
“O perigo da contrarrevolução não deriva de sentimentos restauracionistas, mas da dominação (?) da economia mundial por parte do imperialismo… Nós devemos ter um terrível medo do grave perigo representado pelas enormes tendências burguesas de direita produzidas pelo desenvolvimento econômico sob a ditadura do proletariado nessas condições. É uma questão de um processo inevitável (sic), de crescentes contradições, dadas as fronteiras nacionais dos Estados operários burocratizados, a dominação imperialista do mercado mundial e, até agora, ao relativo atraso dos Estados operários. Por essas razões, o desenvolvimento econômico produz fortes tendências capitalistas …”
“Trotsky estabeleceu a seguinte lei: quanto mais a economia se desenvolve, maior será o perigo de restauração; o imperialismo tentará trazer os Estados operários de volta à sua órbita via comércio, investimentos e mercado negro. O plano Carter está no processo de conseguir isso.”
Trotsky explicou que a fraca URSS da década de 1920 ser levada rumo ao capitalismo justamente por causa do desenvolvimento das forças produtivas caso ela se mantivesse isolada. Ele explicou que a Grã-Bretanha tinha mais independência no mercado mundial que a Índia ou outro país atrasado. Porém, Trotsky nunca tirou disso a conclusão de que poderia existir uma restauração do capitalismo simplesmente por meio do comércio. (Nesse caso, o que significaria a fórmula “Estado operário, apesar de burocratizado” se esse Estado não se opusesse a uma restauração, se ele não tivesse que ser, primeiramente, derrubado por uma contrarrevolução social para restaurar o capitalismo?). Menos ainda houve uma formulação, por parte de Trotsky, da absurda teoria de que, quanto mais a economia se desenvolve, qualquer que seja o nível que esse desenvolvimento alcance, maior é a chance de restauração.
Em 1926, a URSS representava menos de 5% da produção mundial. Em 1940, já representava 15%. O perigo restauracionista era maior em 1941 que em 1926? A história já respondeu a essa questão. Apesar dos crimes da ditadura estalinista, a indústria soviética muito mais poderosa conseguiu usar mais tanques, canhões e aviões contra os nazistas do que eles mesmos poderiam produzir. Além disso, Trotsky já havia previsto isso. Portanto — e por causa da feroz e heroica resistência do proletariado soviético quando o caráter bárbaro do fascismo foi compreendido, assim como da ascensão da revolução internacional, apesar de limitada e distorcida — a URSS foi capaz de vencer, não perder, a guerra contra o imperialismo nazista.
Hoje, todos os Estados operários burocratizados já representam mais de 35% da produção industrial mundial. É possível alguém alegar seriamente que o perigo de restauração capitalista é mais forte nesses Estados que em 1919, 1927, 1932 ou até 1941? Qual é a direção geral da evolução da correlação de forças? O imperialismo está mais forte ou mais fraco do que era em 1941? Mais forte ou mais fraco que em 1956? Uma correlação de forças importantemente deteriorada para o imperialismo deveria aumentar o perigo de restauração do capitalismo na União Soviética?
Entretanto, toda a nossa resolução não está preocupada com uma situação “estável”. Ela concerne a possibilidade de estender a revolução proletária a países-chave nos próximos anos. Nós lemos, anteriormente, que Trotsky escreveu em 1933 sobre as consequências de uma vitória da revolução proletária na Alemanha àquele tempo (com a URSS fraca como era à época). O camarada Moreno afirmaria seriamente que uma vitória da revolução proletária na França, na Itália, no Brasil ou, de fato, ao longo da Europa capitalista “aumentaria o perigo restauracionista na URSS em função do desenvolvimento das forças produtivas”? Na verdade, cada nova vitória da revolução em um país importante nos levaria ao limite de uma situação em que a economia capitalista mundial cairia abaixo de 50% da produção industrial mundial, em que ela estaria superada até mesmo na área de produtividade do trabalho em relação a um número-chave de bens de consumo vendidos no mercado mundial. Como ela manteria sua dominação nessas condições?
O ceticismo do camarada Moreno acerca da revolução mundial só encontra semelhança com seu ceticismo acerca da revolução política, acerca do proletariado dos Estados operários burocratizados, o que complementa muito bem seu ceticismo em relação aos sovietes. O camarada Moreno conseguiu o feito de escrever 249 páginas sobre o tema da democracia socialista e da ditadura do proletariado sem dedicar algumas linhas à revolução política. Onde ele vê os grandes sucessos do “plano Carter”, nós vemos, por outro lado, as enormes possibilidades para a revolução política, dado que o proletariado soviético supere a sua despolitização. Mas, precisamente, para esse objetivo, a criação de uma ou mais “ditaduras do proletariado” de acordo com as nossas “normas programáticas” teria um papel decisivo. Essa relação, obviamente, escapou ao nosso grande dialeta.
No caminho, o camarada Moreno faz outra considerável concessão ideológica à burocracia estalinista, que sempre alegou que, no debate entre os que defendem o “socialismo em um só país” ou a “teoria da revolução permanente”, estes queriam subordinar o desenvolvimento industrial, econômico, social e cultural da URSS às necessidades da revolução mundial. O camarada Moreno, agora, apoia Stalin, ao corajosamente afirmar que haverá duas fazes durante o período da ditadura do proletariado: uma inicial, em que tudo deve ser subordinado à vitória da revolução mundial, e uma secundária, que começa somente após a vitória da revolução mundial, quando a construção do socialismo, meramente, começará.
Essa é uma falsificação caricatural das teorias de Trotsky e da Oposição de Esquerda, mais uma vez, retirada diretamente dos livros-texto estalinistas. O camarada Moreno esqueceu que, ao mesmo tempo em que Trotsky se opôs à teoria do socialismo em um só país, ele defendeu uma industrialização acelerada e planificada da economia soviética. Isso foi somente feito por propósitos militares ou para avançar rumo ao socialismo? O debate Stalin-Trotsky tinha a ver com começar a construir o socialismo em um só país ou com a possibilidade de completar essa construção? Como um Estado operário pode se defender sem fortalecer a posição econômica e social do proletariado? Como isso seria possível sem avançar rumo ao socialismo? A dialética entre o fortalecimento do peso do proletariado domesticamente e internacionalmente — e vice-versa, suas derrotas nacionais e internacionais — se mantém um mistério para o camarada Moreno, como era para os mais ingênuos apologistas da burocracia (os mais cínicos estavam interessados somente nas mansões e no monopólio do poder para garanti-las, não nas ideias).
A conclusão mais séria — uma verdadeira justificativa “objetivista” para a ditadura burocrática — é que, em função da sobrevivência do imperialismo, a ditadura, em outras palavras, a coerção, deve aumentar em todos os Estados operários, burocratizados ou não. De acordo com o camarada Moreno, para todo o presente estágio histórico, incluindo as revoluções vitoriosas em países novos, existe
“uma lei que pode ser contrarrestada, mas não anulada: ao longo de todo estágio presente da ditadura do proletariado, de contenda final contra o imperialismo, em que as fronteiras nacionais continuarão a existir, o fortalecimento da ditadura dos trabalhadores e do Estado proletário é inevitável” (p.212 — nosso grifo)
Para botar os pingos nos “i”s, o camarada Moreno adiciona:
“Como consequência (da dominação imperialista em escala mundial) a classe trabalhadora também sofre opressão direta, como o preço da necessidade de defender o Estado dos trabalhadores… Nesse estágio, a sobrevivência das normas burguesas de distribuição é conectada a uma opressão baseada em razões políticas, funcionais…” (p. 221)
Moreno não está fazendo apologia ao estalinismo, ele não faria isso. Ele só está dizendo que, mesmo que exista uma “ditadura revolucionária do proletariado”, e não uma “ditadura burocrática do proletariado”, a opressão do proletariado continuará, porque ela tem raízes objetivas… no cerco capitalista. Trotsky = Stálin: a teoria é comum entre sovietólogos burgueses, pequeno-burgueses e social-democratas. Aqui está um imprevisto aliado para reforçar seu campo.
É realmente difícil refutar esses absurdos? Por que a necessidade de defender a URSS contra a ameaça imperialista militar deveria implicar uma opressão inevitável ao proletariado? Por que o proletariado deve produzir um excedente para manter um exército poderoso? Mas, mesmo se deixarmos de lado considerações políticas — por que não foi necessário oprimir o proletariado em 1918–1919; por que ele estava pronto para se sacrificar em defesa da revolução sem nenhuma grande coerção, apesar de ser infinitamente menor e mais fraco do que hoje? — o argumento não se sustenta num ponto de vista econômico ou social. Porque o reforço das “normas de distribuição burguesas” (sic, p. 63), o reforço da desigualdade, não dependem principalmente do quanto se deduz da produção atual para propósitos militares, mas sim do tamanho da produção total, do tamanho do quanto se mantém disponível para a distribuição e da forma pela qual ela se dá. A URSS, hoje, (para não mencionar uma revolução vitoriosa na Europa ocidental ou em países como Brasil ou Argentina) é dez vezes mais rica que em 1927 ou 1933. Mesmo com um exército regular muito caro, o padrão de vida dos trabalhadores poderia ser igual àquele dos italianos ou britânicos. O motivo pelo qual isso não se dá é o desperdício e os privilégios da burocracia, não o cerco capitalista. Esses privilégios podem ser mantidos somente por meio de um monopólio político, ou seja, de uma ditadura da burocracia. Inclusas nisso, e não nas “necessidades de defender o Estado” ou na sobrevivência do imperialismo, estão 99% das causas imediatas da opressão sofrida pelos trabalhadores soviéticos e o aumento da desigualdade. Ao varrer essa opressão, a revolução política vai aumentar tanto a capacidade do Estado dos trabalhadores de se defender contra o imperialismo quanto a riqueza produzida, que permitirá um aumento radical na igualdade. A opressão continuada e a desigualdade aumentada, ao descreditar o socialismo, ao desmoralizar e despolitizar a classe trabalhadora, minam, por sua vez, sua defesa. Ainda assim, esse é mais um aspecto da “dialética” que o nosso mestre dialeta deixou passar.
Na mesma linha, está a teoria de que: “uma distribuição desigual que aumenta em igualdade conforme a produção aumenta é inevitável.” (p.63)
Isso não é nada mais, nada menos, que uma justificativa “objetivista” da inevitabilidade da degeneração burocrática — mesmo para revoluções futuras. Já que a desigualdade aumenta com o desenvolvimento das forças produtivas, o tamanho da polícia e de seus poderes — ou seja, o poder da burocracia — também aumentará.
Por trás de uma lógica como essa só pode estar a teoria estalinista das “necessidades cada vez maiores” da população operária, plagiada, por sua vez, pelos defensores do capitalismo que querem demonstrar a impossibilidade do socialismo (o desaparecimento categorias das trocas comerciais) por meio de uma eterna escassez.
Uma vez que esse disparate é rejeitado, não existe “lógica econômica” que torne “inevitável” a desigualdade na produção de relógios quando sua produção aumentou de 2 milhões para 30 milhões por ano (como foi o caso na URSS). O aumento da desigualdade na URSS, nessas condições, não é, de jeito algum, “inevitável”: é atribuível aos interesses materiais da casta burocrática. Quando essa casta for eliminada por uma revolução política, a igualdade poderá dar largos passos adiante.
Agora fica mais fácil compreender a cadeia de argumentos que buscam justificar a verdadeira cadeia de eventos vinculada ao proletariado soviético. O cerco capitalista é tornado igual à ameaça de guerras contrarrevolucionárias, sem se levar em consideração o surgimento da revolução mundial. Uma guerra civil potencial é, por sua vez, identificada com uma verdadeira guerra civil, sem levar em consideração nem a correlação social de forças ou a consolidação da ditadura do proletariado. Isso completa o truque: a coerção contra uma parte, de fato a maioria, do proletariado é apresentada como inevitável por meio século, quer dizer, por um século. Justo porque o proletariado é muito “subdesenvolvido” para se defender contra seus ditos todo-poderosos inimigos.
Nada demonstra melhor o ceticismo do camarada Moreno acerca do proletariado soviético (igualmente àquele dos burocratas da década de 1920) que a passagem em que ele descreve o cenário para a possível restauração do capitalismo na URSS. Nós escrevêramos que seria improvável que os trabalhadores, tendo tomado as fábricas, devolvessem-nas aos capitalistas sob a influência de uma propaganda “contrarrevolucionária”. “Você acha que os capitalistas são mais burros do que eles são”, responde o camarada Moreno. “Eles não vão puxar a palavra de ordem ‘devolvam as fábricas aos patrões!’ Eles vão puxar ‘as fábricas aos trabalhadores!’ Isso quer dizer a destruição da propriedade estatal, a competição entre as cooperativas de trabalhadores, o que nos levará de volta ao capitalismo” (p.62)
Nós podemos achar que os patrões são mais burros do que de fato são, mas o camarada Moreno, decididamente, toma os trabalhadores como imbecis. “As fábricas aos trabalhadores” é uma palavra de ordem que já foi ouvida. Ela foi puxada pelo Partido Comunista Iugoslavo em 1950. Àquele tempo, Stalin e os estalinistas afirmaram, como Moreno faz hoje, que isso levaria ao restabelecimento do capitalismo. Trinta anos de história desmentem essa calúnia.
Nós criticamos severamente e continuaremos a criticar a combinação híbrida de autogestão dos trabalhadores com “socialismo de mercado” de um lado e o sistema de partido único (isto é, a ausência de poder político exercido diretamente pela classe trabalhadora iugoslava) por outro. Mas acreditar que os trabalhadores que experienciaram uma expansão considerável de seus direitos e poderes nas fábricas — Iugoslávia é o único país no mundo onde os trabalhadores podem mandar embora os gestores, em vez do contrário — vão facilitar uma restauração do capitalismo, em vez de se opor a ela com uma lucidez cada vez maior do que nos Estados operários onde eles são mais oprimidos, é subestimar seriamente a sua inteligência e consciência de classe!
É porque o camarada Moreno é cético, no fundo, acerca da capacidade do proletariado de defender seus próprios ganhos e seu Estado contra o imperialismo que ele dedica todo um capítulo de seu livro às Duas ditaduras proletárias: a burocrático-reformista e a revolucionária (p.187), sem uma única menção ao fato de que aquela é resultado da derrota política do proletariado da vitória de uma contrarrevolução política. Se, no contexto de cerco capitalista, e apesar da correlação de forças, apesar até mesmo de vitórias da revolução mundial “as condições objetivas fazem a opressão necessária”, então essa contrarrevolução política — isto é, o estalinismo — é só uma variante de uma “necessidade de ferro”, isto é, tudo que se pode esperar preservar nas circunstâncias atuais. Um “trotskismo” arrependido, de fato!
Na raiz de todas essas revisões e sérios erros do camarada Moreno, está uma fraqueza teórica fundamental: uma incapacidade de compreender a função, o papel objetivo, da democracia proletária na luta de classes, na revolução socialista e na construção do socialismo.
Paradoxalmente, o camarada Moreno transfere ao proletariado aquilo que ele começou definindo como uma característica da concepção burguesa de democracia: a diferença entre “democracia para a classe” e “democracia para os indivíduos”. Expulse o instinto e ele retornará com uma vingança. Na realidade, o camarada Moreno está expressando uma concepção burguesa da democracia proletária.
“Quando falamos das liberdades da classe trabalhadora, distinguimos dois níveis: aquele da classe trabalhadora como um todo na sociedade e aquele dos trabalhadores como indivíduos em sua classe. Esses dois níveis não são o mesmo; sua relação é dialética, e eles estão, frequentemente, em contradição um com o outro”
Na verdade, a conexão entre “liberdade na sociedade” e “liberdade na classe” é estruturalmente distinta para a burguesia e para o proletariado. O individualismo burguês — e sua concepção de liberdades individuais — é baseado na propriedade privada e na competição (e esse é o porquê dele decair intensamente na época do capitalismo monopolista). Igualdade entre o comprador e o vendedor de mercadorias é suficiente para o burguês, porque reproduz, mais ou menos automaticamente, as relações de produção e de exploração sobre as quais o reino do capitalismo se funda — exceto em momentos de grandes crises, especialmente crises revolucionárias. Além disso, a democracia entre a burguesia deve arbitrar conflitos intra-burgueses (isto é, aqueles que surgem da competição) e cristalizar o “interesse comum” da burguesia contra seus inimigos (sobretudo o proletariado, mas, anteriormente, contra a nobreza e, frequentemente, contra um competidor estrangeiro).
A situação do proletariado é totalmente diferente. Ela começa de um estado de atomização e dispersão que é reforçado, não eliminado, pela pobreza, pelo desemprego e pelas leis do mercado. Para se defender, ele [o proletariado] deve ser capaz de se organizar: um trabalhador não é páreo para um patrão, individualmente. Porém, a organização da classe trabalhadora nunca é o resultado automático do desenvolvimento econômico. Ela requer um esforço consciente. Logo, a liberdade de organização, a mais elementar liberdade da classe trabalhadora contra a classe inimiga, tem como pré-condição a liberdade de associação entre os trabalhadores; uma não pode existir sem a outra (caso contrário, o sindicato fascista com 100% de membros seria o melhor instrumento para a luta de classes).
Em seu caminho para estabelecer unidade — para não falar da conquista da consciência de classe — a classe trabalhadora não só tem que superar a atomização causada pela pobreza, pelo desemprego e pela competição. Ela também deve superar variações no interesse, na atitude, na tradição — e, em última análise, seus diferentes níveis de consciência são, ao menos parcialmente, determinados por essas variações — entre diferentes setores da classe trabalhadora: qualificados ou não qualificados; ofícios que têm uma longa tradição de qualificação (imprensa) e aqueles que se tornaram qualificados recentemente; pioneiros e retardatários na questão da sindicalização; residentes de grandes concentrações proletárias e recém-chegados do campo; trabalhadores “nativos” ou imigrantes; homens e mulheres; adultos e crianças, etc., etc.
Nós, portanto, compreendemos que a contradição real não é entre a “liberdade da classe contra as grandes corporações” e a “liberdade individual dos membros da classe”, mas sim o conflito entre o interesse de classe, tomado como um todo, e os interesses de certos setores (o que é ainda mais verdadeiro numa escala mundial do que em cada país tomado separadamente). E nós compreendemos que uma livre associação desses diferentes setores da classe trabalhadora é uma pré-condição absoluta para a conseguir, efetivamente, a unidade de classe.
Se qualquer setor, até uma maioria, tentasse impor qualquer coerção a [outros] grandes setores (a questão de impor disciplina a indivíduos não tem nada a ver com isso), o único resultado seria que esses setores perpetuariam a divisão da classe trabalhadora, tornariam impossível sua real unificação, para não mencionar a unificação em organizações estáveis e consolidadas. O resultado seria um enfraquecimento geral da classe trabalhadora em relação a seu inimigo. Longe de ser um “luxo” subordinado às “necessidades da luta de classe”, a democracia proletária é uma pré-condição indispensável para alcançar uma maior efetividade na luta de classes.
O que é verdade, do ponto de vista da mera unidade organizacional da classe trabalhadora contra a burguesia, é ainda mais verdadeiro do ponto de vista da formulação de nossas táticas, estratégias e métodos efetivos de formas de luta contra os capitalistas. A classe trabalhadora não tem um conhecimento científico inato. Infelizmente, não o receberá do camarada Moreno, com seu revisionismo pró-burocrático. O método e o programa marxistas revolucionários são uma grande contribuição. Mas eles não têm uma resposta pronta para tudo, caso contrário, um papagaio seria o melhor marxista e o melhor revolucionário.
Além disso, a assimilação do método e do programa marxistas revolucionários por milhares, dezenas de milhares, centenas de milhares e até milhões de trabalhadores é um processo extremamente difícil e complexo, determinado, não só pela heterogeneidade da classe trabalhadora e pela profusão de correntes e de tradições ideológicas que marcaram o seu despertar e sua tradição organizacional em diferentes países, mas também pela descontinuidade na atividade (e, portanto na experiência) de diferentes camadas do proletariado.
De novo, qualquer tentativa de impor a “linha correta” por meio de canais hierárquicos, decisões administrativas ou coerção, só pode levar à consolidação das divisões e fragmentações ideológicas, políticas e organizacionais, ou seja, ao enfraquecimento do proletariado frente à burguesia.
O tema se complica ainda mais com o aparecimento, no movimento dos trabalhadores, de uma burocracia privilegiada, que age como correia de transmissão de influências ideológicas burguesas, materialmente interessada, em diferentes graus, em manter o status quo social, em função de seus próprios privilégios materiais. Quase todas as organizações de massa são dirigidas por tal burocracia, assim como ocorre nos Estados operários burocratizados.
Agora, o camarada Moreno admite que essas burocracias são “corruptas e contrarrevolucionárias”. (p.184) Dizer que elas são “corruptas e contrarrevolucionárias” implica que elas têm uma tendência a trair a maior parte das lutas iniciadas pela massa de seus membros, ainda mais do proletariado como um todo. Ainda assim, para desafiar o poder dessas burocracias e desalojá-las de suas posições de direção, a democracia proletária é essencial. Logo, é indispensável tornar as organizações proletárias existentes — incluindo as existentes nos Estados operários e os exércitos desses países — em instrumentos efetivos da luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. É precisamente esse ponto de vista que desapareceu, completamente, do argumento do camarada Moreno.
O que é verdade no processo da luta de classes e da revolução socialista mundial atuais se aplica da mesma forma ao processo de construir o socialismo ou, se você quiser, à administração da economia, do Estado e de todas as outras esferas sociais sob a ditadura do proletariado. Se existisse uma bíblia, em que respostas prontas pudessem ser achadas para todas as questões que concernem as escolhas que devem ser feitas a cada momento, nacional e internacionalmente, em todas essas diferentes áreas, esse não seria o caso. Mas tal bíblia não existe e, com todo o respeito, nem o camarada Moreno nem a sua fração a escreverão.
Nessas circunstâncias, só existem duas possibilidades: uma minoria — seja “burocrática” ou “revolucionária” — usurpa o direito de tomar essas decisões do proletariado como um todo. Nós não estamos dizendo que isso é “imoral”, “muito duro”, “não está de acordo com as nossas normas legais”. Nós dizemos que isso é ineficiente, que isso enfraquece o proletariado e a sua ditadura em relação ao inimigo de classe, que isso aumenta a magnitude de erros, de desperdícios de custos e de sacrifícios inúteis impostos ao proletariado e aos seus aliados, que isso atrasa a vitória final sobre o inimigo e dificulta a construção do socialismo. Mais uma vez, a democracia proletária é uma pré-condição para uma luta de classes eficiente contra a burguesia e contra o imperialismo, para uma luta efetiva para construir o socialismo.
Portanto, nós acatamos, completamente, a “definição pré-histórica” (Moreno o disse, pp.181–182) de que a ditadura do proletariado se identifica com a democracia proletária não, repetimos, porque ela corresponde às nossas normas, mas por razões de eficiência. Se o camarada Moreno discorda, ele deve provar o contrário, não simplesmente afirmar isso com base em experiência histórica (p.211), que é exatamente a experiência das burocracias dominantes (a não ser que o revisionismo seja levado ao ponto de proclamar a burocratização de qualquer organização ou Estado proletário como inevitável). Quando ele afirma (pp. 107, 182) que Trotsky revisou, posteriormente, essa definição, ele não está falando a verdade. Aqui está o que Trotsky escreveu dezoito anos depois da revolução de Outubro sobre o tema:
“Muito pior, entretanto, é a seguinte ideia: ‘essa ditadura do proletariado… deve ser afrouxada e progressivamente transformada em democracia proletária conforme a construção socialista vá à frente’. Dois erros de princípio profundos estão contidos nessas poucas linhas. Eles contrapõem a ditadura do proletariado à democracia proletária. Mas a ditadura do proletariado, por sua própria essência, pode e deve ser o ápice do desabrochar da democracia socialista. Para realizar uma enorme revolução social, o proletariado necessita de sua máxima concentração de forças e de capacidades. É justamente para superar seus inimigos que ele deve ser organizar democraticamente. A ditadura, de acordo com Lenin, deve ‘ensinar qualquer cozinheiro a liderar o Estado’. A espada da ditadura mira os inimigos de classe: a base da ditadura consiste na democracia proletária”. (grifos adicionados Wither France, Trotsky)
O camarada Moreno leva a confusão ao ponto de escrever: “o proletariado chinês também necessita de liberdades formais como a de imprensa, opinião e assembleia” (p.74).
Os marxistas chamam essas liberdades de “formais” sob o capitalismo por causa da existência da propriedade privada, da dominação burguesa e das gigantescas desigualdades econômicas e sociais, que significam que um milionário tem cem mil vezes mais oportunidades de realmente exercer a “liberdade” de publicar um jornal do que um trabalhador individual (a liberdade de imprensa não é completamente formal sob o capitalismo, porque mil ou cem mil trabalhadores, juntos, podem comprar gráficas e publicar grandes jornais, contanto que a liberdade real não seja tirada deles por um sistema de ditadura burguesa mais brutal)
Todavia, na China, a propriedade privada, inclusive de gráficas, de salas de reunião, foi abolida. De fato, o proletariado chinês deve conquistar — via revolução política e no caminho até ela — a real, e não a formal liberdade de expressar à vontade sua opinião sobre todas as grandes questões da política internacional, econômica, social e cultural. Longe de ser “formal” ou “de segunda linha”, essa liberdade é uma pré-condição para uma administração do Estado proletário Chinês contra seus inimigos externos e internos. É uma condição essencial para consolidar a ditadura do proletariado na China.
Mais uma vez, o camarada Moreno pode acreditar no contrário. Mas, então, ele deve provar. Ele, dificilmente, o faz em seu livro. É a sua maior fraqueza, junto com a utilização sistemática de falsificações caluniosas das posições contra as quais polemiza.
Nós baseamos nosso argumento em dois exemplos. O camarada Moreno gosta de fazer referências a sindicatos. Mas a conexão essencial entre a liberdade sindical contra os patrões e a liberdade para os “membros individuais do sindicato” não está, de forma alguma, no nível em que o camarada Moreno tenta colocá-la, entre os fura-greves e os agentes individuais da burguesia.
Se um balanço é feito das grandes greves por todo o mundo — e não só na Europa ocidental — nos últimos sessenta anos, nós descobrimos, facilmente, que para cada greve perdida em função da ação de “fura-greves” e de “infiltrados patronais”, existiu uma centena de greves ou perdidas, desviadas de seu objetivo inicial, ou impedida de se alastrar para a utilização do máximo potencial militante da classe trabalhadora, por causa da burocracia sindical. Os piores fura-greves, em sentido histórico, são os líderes burocráticos. Mas é impossível lutar contra eles efetivamente sem a conquista e a defesa mais enciumada da mais ampla democracia nos sindicatos e a mais ampla democracia nas fábricas. Comparadas a essa tarefa primária, parar fura-greves desorganizados, individuais ou ocasionais é algo completamente secundário. Todos os trabalhadores organizados com o mínimo de experiência sabem perfeitamente como superar esse problema sem a mínima restrição da democracia proletária.
Nós acabamos de testemunhar um espetáculo massivo e importante com a visita do Papa João Paulo II à Polônia. Deixemos de lado o acordo feito, obviamente, entre a burocracia polonesa e o Vaticano e o interesse que a burocracia tem em dirigir a oposição política por canais católicos em vez de canais comunistas e socialistas oposicionistas. Vamos também deixar de lado as características nacionais e culturais da Polônia, que, parcialmente — mas só parcialmente — explicam por que a influência da religião católica e de seu clero persistiu mais fortemente nesse país do que em qualquer outro país da Europa oriental.
O fato continua a ser que, trinta anos após a derrubada do capitalismo nesse país e, para usar a linguagem do camarada Moreno, depois do estabelecimento da “ditadura burocrática do proletariado”, milhares de pessoas (trabalhadores, camponeses, intelectuais, jovens) se voltaram para a Igreja Católica, em uma mobilização cujo aspecto político não poderia enganar ninguém. Nós perguntamos ao camarada Moreno: qual é a causa fundamental desse triste fenômeno? O cerco capitalista? A ofensiva de Carter? Nós não acreditamos que eles contem por mais de 10% de seu escopo. Nós acreditamos que ele se dá, fundamentalmente, pelos efeitos desmoralizantes, tanto objetivos quanto subjetivos, da ditadura da burocracia.
Se a burocracia não entregasse ao clero o presente de ser a única organização legal semi-oposicionista; se ela não tivesse substituído sistematicamente a formação de uma mentalidade nacionalista e chauvinista, tradicionalmente incorporada no clero, por uma ênfase na luta de classes polonesa no pré-1939; se ela não tivesse banido os partidos tradicionais e as correntes do proletariado e da pequena-burguesia (muitas das quais foram e continuaram a ser fortemente anticlericais); se não tivesse banido greves e permitido que o clero aparecesse como a única força legal defendendo os trabalhadores punidos; se tivesse permitido uma vida política intensa e democrática, incluindo um partido legal católico, que teria, então, sido compelido a se posicionar sobre todas as questões sociais — e algumas de suas posições, em relação ao aborto, à administração de empresas e ao estabelecimento de preços alimentares teriam sido muito impopulares entre os trabalhadores e as trabalhadores, temos certeza — nós não dizemos que a influência da Igreja Católica teria desaparecido na Polônia, mas estamos convencidos de que ela seria qualitativamente menor do que é hoje.
Mais uma vez, o camarada Moreno pode discordar dessas duas opiniões. Mas ele precisa demonstrar, não afirmar categoricamente, a teoria de que as restrições à democracia socialista são inevitáveis em função do “cerco capitalista” ou dos “inimigos de classe infiltrados”. A burocracia, felizmente, se identifica com a organização (e, onde o capitalismo foi derrubado, com o Estado). Ela considera, em princípio, todos aqueles que a criticam, que questionam sua gestão, que demandam que seu poder arbitrário e seus desperdícios devem parar (incluindo, especialmente, seu poder jurídico arbitrário), “objetivamente” trabalham para o inimigo, isso se não forem “agentes do inimigo”. O camarada Moreno aprova esse raciocínio? Se não, qual é o objetivo de todas as suas tiradas sobre as restrições necessárias à democracia socialista (proletária) em função de “dificuldades objetivas”? Por que ele rejeita a identidade entre ditadura do proletariado e democracia proletária, que vem diretamente de Marx, Lenin e Trotsky?
Contudo, enquanto as ideias do camarada Moreno são mais sistematicamente perigosas e revisionistas do que se poderia pensar a uma primeira olhada, sua função política é diferente daquela afirmada pelo autor (se ele está consciente dessa função ou não, é menos importante).
Na realidade, o debate não é entre defensores da “ditadura revolucionária do proletariado” e defensores de uma “ditadura branda do proletariado”, não, “semi-reformistas”. O debate tem foco em uma questão bem diferente.
Para os autores da resolução Democracia socialista e Ditadura do Proletariado, essa resolução tem uma função precisa: facilitar a vitória da revolução proletária, ou seja, o estabelecimento de um real (apesar de “brando”, de acordo com os dogmas do camarada Moreno) poder soviético em alguns países-chave do mundo nos próximos anos. Nós temos uma fé de ferro nessa possibilidade, não só na Europa capitalista, mas também em alguns Estados operários burocratizados e em alguns países semi-coloniais semi-industrializados importantes.
Toda a nossa abordagem se baseia nessa perspectiva e nessa função. Nós nos baseamos na experiência real, não em guerras civis em países atrasados, mas em revoluções proletárias (ou seja, aquelas “realizadas” pelo proletariado urbano, incluindo o início da revolução política na Hungria e na Tchecoslováquia) que, realmente, ocorreram nos últimos sessenta anos. E nós percebemos que nenhuma dessas revoluções faliu em função de questões como “dureza” ou “pluralidade partidária” ou “rejeição da violência”, mas em função das questões que discutimos bastante detalhadamente na resolução do SU.
Se a maioria do proletariado pode ser convencida dessas concepções, as próximas revoluções proletárias vencerão; o Estado burguês será destruído; o poder soviético triunfará. Se não for convencida desse programa — por um partido revolucionário e por uma Internacional revolucionária, claro —, então as revoluções serão derrotadas como na Alemanha, na Espanha e no Chile.
O camarada Moreno aborda esse problema de uma forma diametralmente oposta. Para ele, as causas das derrotas das últimas revoluções proletárias foram objetivas, não subjetivas. Elas não se encontram na política traidora das direções, em manter a hegemonia no proletariado, no nível insuficiente de consciência de classe proletária ou na incapacidade de compreender a necessidade de esmagar o Estado burguês. Elas estão no papel da “aristocracia de trabalhadores em escala mundial” representada pelo proletariado dos países industrializados. Enquanto não houver uma piora catastrófica da qualidade de vida desse proletariado, será impossível estabelecer a ditadura do proletariado nesses países.
Estamos exagerando? Julgue você mesmo:
“… capitalismo, em seu estado superior, o do imperialismo, foi bem sucedido em tornar aristocráticos grandes setores da classe trabalhadora nos países imperialistas e em manter uma forte classe média lá… Essa divisão nas fileiras dos trabalhadores é a causa social de todos os outros fenômenos” (p.218)
Entretanto, essa classe operária “aristocrática” se levantou mais do que uma vez em enormes batalhas anticapitalistas: as batalhas revolucionárias alemãs e austríacas em 1918–1919, 1920, 1923 e 1927; as óbvias greves anticapitalistas na Itália em 1919, 1920, 1945, 1948 e 1969; a greve geral britânica em 1926; a greve geral francesa em 1936 e em 1968; a revolução política espanhola em 1934–1937 e o levante revolucionário (incluindo greves gerais políticas em níveis regionais) em 1975–1976; a revolução portuguesa de 1974–1975 e a lista continua. Nós sempre acreditamos que, apesar de sua “corrupção aristocrática” o proletariado desses países demonstrou, em várias ocasiões, sua tendência instintiva a reorganizar a sociedade em uma base socialista e que, somente o fator subjetivo (a traição por parte dos aparatos burocráticos, a fraqueza da direção revolucionária, a inadequação de seu nível de consciência) impediu a vitória dessas revoluções. Esse é o significado da fórmula do Programa de Transição: “a crise histórica da humanidade se reduz à crise da direção revolucionária”.
O camarada Moreno agora diz: não, a classe trabalhadora dos países imperialistas deve ser culpada. Ela é corrompida pelo imperialismo e não quer uma revolução. “A existência do imperialismo implica que toda a dinâmica da revolução mundial se alterou” (p.220). E essa dinâmica não retornará ao “curso correto” a menos que as condições de vida do proletariado ocidental se deteriorem de uma forma catastrófica:
“Enquanto os trabalhadores europeus não forem atingidos por uma crise econômica brutal, pelo desemprego, por 100 a 150% de inflação anual, pelo aparecimento de gangues fascistas e por golpes bonapartistas e fascistas, as ilusões burguesas-democráticas não serão aniquiladas. Nada nem ninguém será capaz de destruí-las.” (pp.92–93)
Essa é uma mudança drástica em relação à posição que o camarada Moreno e que sua Tendência Bolchevique tinham posto em prática há dois anos, em sua plataforma, focado na iminência da revolução proletária na Europa, num momento em que não havia nem miséria, nem 100–150% de taxa de inflação, nem golpes fascistas ou bonapartistas. Porém, o camarada Moreno nos acostumou a esses giros de 180° nesses últimos poucos anos: primeiro, contra a concentração do trabalho no movimento de massas Peronista, depois entrismo total nesse movimento; primeiro, a favor de obediência incondicional a comandos de guerrilha, depois ataques violentos ao “guerrilheirismo”, que deveria ser levado para os “tribunais populares”: primeiro, apoio à ofensiva contrarrevolucionária de Mário Soares em Portugal em maio-junho de 1975, depois um ataque violento a essa ofensiva (seguido por um chamado por um governo de Soares sem especificar qual programa ou com uma frente única com o PCP!). Nós podemos apostar que bastam poucos eventos espetaculares para o camarada Moreno mudar de posição, de novo, em relação às chances de revolução proletária na Europa.
Todavia, deixem-nos manter a coerência de sua posição atual. Dada a força do movimento de trabalhadores europeu; dada a capacidade da classe trabalhadora de resistência; dado que a ofensiva do patrões ganhou somente alguns pontos percentuais nos últimos muitos anos (rapidamente neutralizada por contra-ofensivas da classe trabalhadora; dada a posição competitiva dos imperialistas europeus no mercado mundial; dadas as sucessivas ondas de crises políticas e sociais multifacetadas, é óbvio que as “pré-condições” objetivas para o proletariado europeu se tornar “maduro” para a ditadura do proletariado ainda requererá uma ou mais décadas.
Até lá, nenhuma ditadura do proletariado está na agenda.
E o camarada Moreno não hesita em especular sobre o que acontecerá “se a revolução mundial não avançar, ou se ela avançar objetivamente por vitórias nacionais que se mantém congeladas nessas fronteiras” (p.213). Essa foi a “tendência dos últimos sessenta anos”. Prudentemente, o camarada Moreno não comenta a tendência futura. Mas, implicitamente, ele continua a acreditar que o imperialismo continuará a dominar em toda a sua fortaleza nas próximas décadas, o que quer dizer que a revolução proletária é impossível por razões objetivas em países imperialistas.
Em outras palavras: para o camarada Moreno, toda a discussão no presente não tem a intenção de armar a Quarta Internacional para uma luta política real que acontecerá agora ou que começará em um futuro relativamente previsível. É meramente voltada a manter o programa intacto enquanto esperamos por dias melhores. Essa é a concepção “refrigeracionista” do programa, oposta à concepção funcional dele (com a refrigeração, além disso, produz-se uma boa quantidade de podres revisionistas, como nós mostramos).
Vamos imaginar uma reunião, digamos, da direção das comissões de trabalhadores de Setúbal em 1975 (o ponto mais perto de uma organização pré-soviética alcançado pela revolução portuguesa). O camarada Moreno levanta e diz solenemente: “camaradas, nós devemos lutar pela ditadura violenta e revolucionária do proletariado. Mas, por favor, sem ilusões. Assim que vocês ganharem, as tropas alemãs, o exército espanhol, as forças expedicionárias americanas ou as forças expedicionárias do Pacto de Varsóvia vão atacar vocês. Vocês devem se preparar para anos de guerra civil e internacional, milhões de mortes, sacrifícios sem limites e pobreza, pior que a dos russos, dos chineses e dos vietnamitas”. Aplausos mudos (e risadinhas) dos social-democratas e dos estalinistas. O resultado da votação é determinado logo depois (é verdade que o camarada Moreno liga pouco para votações, que são fenômenos do “individualismo pequeno-burguês” e das “ilusões burgueses democráticas” em um período revolucionário).
Na verdade, durante todas as revoluções proletárias que ocorreram até agora, a impossibilidade de evitar guerras contrarrevolucionárias sangrentas por meio da solidariedade internacional e da extensão da revolução sempre foi o argumento principal dos oponentes reformistas da socialização do poder pelo proletariado e da ditadura do proletariado. Foi o argumento principal dos mencheviques na Rússia antes de Outubro, foi o argumento principal utilizado pelos socialistas e pelos estalinistas espanhóis (não sem alguma ajuda dos líderes anarquistas) em 1936–1937. O camarada Moreno anda com companhias bem estranhas, para dizer o mínimo.
Esse é o motivo pelo qual sua acusação de que fazemos concessões aos “preconceitos democráticos” do proletariado europeu (ou melhor, ao cada vez mais claro avanço na consciência anti-burocrática por parte do proletariado de todos os grandes centros industriais do mundo, seja em Barcelona, Turim, Detroit, São Francisco, Córdoba ou São Paulo, Osaka ou Bombaim, Praga ou Leningrado) parece mais um elogio para nós. Contudo, para um revolucionário, é melhor dirigir uma revolução proletária, apesar do preço das “concessões aos preconceitos democráticos dos trabalhadores” do que continuar cético acerca da possibilidade da revolução, acerca do potencial revolucionário do proletariado e do poder dos sovietes, é melhor do que se satisfazer com a defesa de uma “pureza programática” sob o capitalismo e, assim, fazer mais uma pequena contribuição para a derrota de revoluções possíveis.