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Primeira Edição: Do Boletim “em Defesa do marxismo”, No. 75, Junho 1990. Originalmente publicado em Inprecor, No. 300, Janeiro 12-25, 1990.
Tradução: Pedro Barbosa
Revisão: Mariana Luppi.
Fonte: Revista Movimento - https://movimentorevista.com.br/2018/08/quinze-anos-de-inprecor/
HTML: Fernando Araújo.
Inprecor é uma revista marxista revolucionária, militante, firmemente ao lado de todas pessoas exploradas e oprimidas do mundo. Mas para mudar o mundo é primeiramente necessário entendê-lo em sua complexidade, sua diversidade, suas especificidades nacionais, regionais, históricas, etc. É por esse motivo que a Inprecor publica deliberadamente, em primeiro lugar, fatos, informações de primeira mão, e os elementos necessários para uma análise, ao invés de simplesmente proclamações ideológicas. Da mesma forma, a Inprecor abriu prontamente suas páginas para outras organizações e militantes envolvidos nas lutas, assim como para pesquisadores especializando-se em um ou outro campo, mesmo quando suas opiniões não são as mesmas que as nossas. Essa tem sido a nossa política editorial por mais de 15 anos, desde a aparição da publicação número 0, datada de 1º de maio de 1974. Para marcar o nosso número 300 (novo sistema, 367 publicações no total), a Inprecor entrevistou Ernest Mandel, um membro do Secretariado Unificado [“SU”] da IV Internacional, sobre as mudanças que ocorreram na cena mundial durante os últimos 15 anos; a evolução da economia capitalista em uma escala mundial; a sublevação nos países do Leste, seus efeitos na consciência dos trabalhadores; o futuro do projeto socialista e as condições da luta no período que está se abrindo diante de nós.
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A Inprecor foi fundada em um momento em que a IV Internacional e a totalidade do movimento marxista revolucionário ainda estavam em um período de rápido crescimento após maio de 1968. Uma mudança na situação objetiva pôde ser claramente vista após a derrota da revolução portuguesa e o começo de uma longa onda internacional de depressão econômica capitalista entre 1974 e 1976. Mas existiu algo como algum atraso entre esses desenvolvimentos e seus efeitos no movimento dos trabalhadores, na classe trabalhadora e na vanguarda revolucionária.
Nós fundamos a Inprecor – e sua versão em inglês, “International Viewpoint” [Ponto de vista internacional] – com a ideia de que precisávamos de uma ferramenta de análise política para influenciar as mais amplas camadas da vanguarda e para construir a nossa própria organização. Este era um objetivo duplo. Durante um período inicial esse objetivo foi largamente atingido – no limite de nossas ainda fracas forças, que eram mesmo assim consideravelmente maiores do que antes de 1968.
Pouco a pouco ocorreu uma mudança da situação no interior da vanguarda e do movimento dos trabalhadores, deixando de lado naquele momento os novos movimentos sociais. Mas no movimento de trabalhadores (no sentido mais amplo do termo) e nos movimentos de libertação nacional – a marcha da revolução permanente – a mudança foi clara.
Por um lado, a classe trabalhadora nos países imperialistas estava passiva e na defensiva, devido aos efeitos da crise econômica, durante a segunda metade dos anos 1970 e certamente durante os anos 80. Por outro, o processo de revolução permanente nos países de terceiro mundo sofreu uma série de retrocessos depois da vitória da revolução sandinista em 1979.
Essa difícil situação alcançou seu ponto mais baixo entre 1983 e 1985. O recuo do movimento dos trabalhadores, a reorientação em direção a lutas defensivas, estava ligado à situação objetiva, notavelmente o crescimento do desemprego. Também se deu em reação a causas subjetivas: uma formidável campanha ideológica neoliberal e neoconservadora por parte da burguesia; o reflexo disso no movimento dos trabalhadores; a quase total capitulação dos aparelhos burocráticos neo-stalinistas e social-democratas diante da ofensiva; a dificuldade que as forças sadias do movimento dos trabalhadores tiveram em se reorientar politicamente, estrategicamente e do ponto de vista da organização da luta – em condições que eram bem diferentes daquelas do período anterior de praticamente pleno emprego.
Essa mudança na situação pesou sobre todos os movimentos revolucionários, sobre a IV Internacional – e consequentemente também sobre a Inprecor. Nossa expansão foi interrompida. Também experienciamos retrocessos que tomaram a forma de um envelhecimento de nossos quadros, fatiga e um certo ceticismo no interior de nossas fileiras depois de vinte anos de luta contra a corrente, uma reduzida base de assinaturas para nossas publicações, etc.
Até certo ponto, isso refletiu tanto o fato de que não éramos uma seita quanto o de que em um certo número de países não éramos mais simplesmente pequenas organizações de propagandistas. Grupos como estes podem crescer, estagnar ou retroceder independentemente do que acontece no mundo real. Porque nós estávamos inseridos na classe trabalhadora e no movimento de massa, nós éramos mais ou menos tributários da flutuação de tal movimento real, e consequentemente de forças maiores. Quando elas retrocederam, nós retrocedemos de um modo similar.
Apesar de parcialmente inevitável, nosso retrocesso também é resultado de um grave erro que nós cometemos a nível de direção internacional. Nós subestimamos fortemente, na esteira da expansão de nosso movimento após 1968, a necessidade de uma política sistemática de desenvolvimento teórico e de renovação e rejuvenescimento de nossos quadros. Fomos muito espontaneístas neste aspecto. Nós acreditamos que o nosso crescimento levaria automaticamente a um desenvolvimento paralelo dos membros e das lideranças. Mas esta ideia se provou falsa. Então nos encontramos em uma situação onde o mesmo número – ou ainda um número levemente menor – de quadros estavam disponíveis para serem líderes em organizações que tinham crescido consideravelmente.
Isso deu origem a uma série de tensões – não tanto no âmbito político, considerando que neste aspecto nós tivemos relativamente poucas divergências internas comparado a outros períodos (sem mencionar a situação do stalinismo, do maoísmo ou da social-democracia) -, mas tais tensões e contradições certamente pesaram a nível psicológico. Experienciamos as consequências inevitáveis do hiperativismo quando nós quisemos fazer demais; um sentimento parcial de fracasso, etc. Nós tivemos então uma grande dificuldade de estabilizar nossos instrumentos de liderança nacional e de renová-los.
Nós fomos muito lentos para prestar atenção a esse atraso. Nós tentamos superar isso criando estruturas educacionais permanentes que nos serviram bem. Tentamos da mesma forma remediar a situação através da Inprecor, International Viewpoint, e as publicações similares em outras línguas, assim como através dos órgãos teóricos da internacional. Lançamos os acampamentos internacionais de juventude. Os resultados desses esforços são reais, porém modestos, e não neutralizaram totalmente os efeitos negativos desses fenômenos.
Esse segundo período, sem dúvidas, chegou ao fim. Nós estamos agora entrando em uma terceira fase, cujos contornos podemos começar a ver. Claramente, o refluxo das lutas dos trabalhadores cessou. Nós estamos vivenciando um renascimento, parcial para ser preciso, por toda a Europa do Leste. Nos países do terceiro mundo, as lutas das massas estão vendo um novo crescimento espetacular, sobretudo no Brasil, na África do Sul, na Coréia do Sul, na Argélia, etc.; ao mesmo tempo em importantes países como a Índia ou Indonésia, o período de refluxo não chegou ainda ao fim.
Mas o que mudou mais profundamente a situação mundial é, com certeza, a ascensão do movimento de massa nos países burocráticos pós-capitalistas, primeiramente na URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), então na China, na RDA (República Democrática Alemã), na Tchecoslováquia e finalmente na Romênia.
É verdade que também houve o desenvolvimento do Solidarity na Polônia de 1980-81, que foi uma previsão do que aconteceria em 1989. Mas as derrotas consecutivas do golpe de Jaruzelski e a repressão enfraqueceram aquele movimento. Nós estávamos certos ao dizer que, a nível organizativo, Jaruzelski seria incapaz de destruir um movimento de massa de tal alcance. Mas, incontestavelmente, subestimamos naquele momento os efeitos políticos e ideológicos desastrosos de tal derrota, certamente dentre a classe trabalhadora.
Agora, pela primeira vez desde 1968 – e em uma escala maior – nós estamos vendo o renascimento do movimento de massa nos três setores da revolução mundial. Acredito então que o nosso movimento irá experimentar uma nova expansão, que será certamente proporcional às nossas forças atuais.
Nos aproximamos dessa nova ascensão do movimento de massas, com certeza, mais fortes do que em 1968, porém mais fracos do que em 1975. É evidente que esse fato irá parcialmente limitar nosso crescimento, que não será tão bom quanto poderia ser, mas será real. Não se trata da irrupção de um movimento de massas, mas o alcance do movimento será, sem dúvidas, em termos numéricos, da mesma escala que era antes de 1968, mas, o que é mais relevante, com uma extensão geográfica mais importante e mais significativa do que naquele momento, e também com uma maior inserção nos sindicatos e na classe trabalhadora.
Nós temos outras vantagens também: acima de tudo, a mudança de composição social de várias de nossas seções significa que haverá uma importante inserção na classe trabalhadora – assalariada e sindicalizada. Em segundo lugar, em uma série de áreas-chave nós tivemos sucesso em afinar a nossa teoria e nossa análise programática. Comparado ao período imediatamente seguinte a 1968, nossas análises e textos escritos são menos abrangentes do que antes, porém mais sérios, mais científicos, mais duráveis. Sem falsa modéstia, poderia ser dito que o nosso está entre os melhores trabalhos feitos durante os últimos 15 anos por aqueles que se consideram parte do movimento marxista mundial. Permanecem algumas áreas, especialmente a ecologia, onde temos sido bem lentos e continuamos tendo muito a aprender.
Também devemos adicionar outro elemento que ainda não enfrentamos completamente. A transformação da composição social de nossas organizações, sua “proletarização”, coloca um novo problema.
No início, a maioria de nossas seções eram organizações de ativistas revolucionários “apartados”, em parte, da realidade social de seus países. Dessa maneira, o envolvimento na atividade internacionalista – absolutamente necessário para uma organização revolucionária – substituiu em si mesmo, parcialmente, a participação nas reais lutas de massa de seus próprios países. A redefinição dessas seções, sua transformação em organizações compostas majoritariamente por pessoas trabalhadoras “comuns”, que têm uma vida familiar, uma atividade sindical significativa, etc., e para quem os ritmos de militância não são mais os mesmos, foi uma difícil mudança e teve consequências, especialmente em seu funcionamento interno.
Isso coloca a questão da real – não formal – essência da democracia interna. A democracia interna não é aferida somente pelo número de resoluções em um congresso, ou pelo número de páginas no boletim interno. É aferida pela participação real – mais uma vez, não participação formal – das bases, e especialmente das bases de trabalhadores, no desenvolvimento de ideias políticas e na tomada de decisões políticas. E isso levanta várias questões que ainda não foram completamente resolvidas.
O balanço de antigas experiências das II e III Internacionais é um balanço de semi-fracasso. O desenvolvimento da base de massa dessas duas organizações foi acompanhado pelo fenômeno da burocratização que progressivamente – ainda que com um certo desnivelamento – reduziu, e então sufocou, a democracia operária. Esse será, sem dúvidas, o teste decisivo de nossa própria história. Seremos capazes, nos próximos dez anos, de resolver este problema, de achar um método de combinar o crescimento de nossas organizações com a manutenção e reforço da democracia interna e um esforço constante de educação e desenvolvimento?
No plano ideológico e político, também em um plano estratégico, a situação não nos permite sustentar esperanças de rupturas no curto prazo, com exceção de alguns poucos países – e mesmo lá! Tudo isso continua marcado pela ausência de visão estratégia unitária, um objetivo fundamental, um “plano” global para transformar a sociedade. O tom geral é profundamente cético, e nós não podemos só dizer que isso é por causa da influência da burguesia – ainda que isso mude muito pouco quanto ao resultado.
A classe trabalhadora internacional está profundamente afetada, senão traumatizada, pela histórica bancarrota do stalinismo e da social democracia com suas promessas de construção de uma sociedade fundamentalmente diferente daquela em que vivemos: uma sociedade que é injusta, desigual, carregada de catástrofes, cujas massas rejeitam sem ter a capacidade de definir qualquer coisa para substituí-la.
A crise – que poderia ser chamada de uma crise de perspectivas socialistas, de um plano de transformar a sociedade em escala mundial – é uma crise ideológica, política, estratégica e moral extremamente profunda. O movimento de massa muito promissor que nós vemos se desenvolvendo – ao menos em sua fase inicial – está girando em torno de objetivos imediatos, que ele acredita ter a capacidade de conquistar e que foram conquistados em determinados momentos com uma surpreendente rapidez e energia, e não somente nos países do Leste.
Aqui você tem o lado negativo, que significa que nós devemos promover uma longa batalha – contra a corrente – no plano político, teórico e estratégico. A conclusão que deve ser tirada é que as questões de educação, desenvolvimento, defesa de programa e de valores fundamentais do socialismo devem ocupar um lugar mais importante na linha de frente de nossa atividade. Não podemos de modo algum nos confinar exclusivamente às demandas imediatas das massas. Certamente teremos um papel ativo nessas lutas, tentando assumir uma função de liderança. Com relação a isso, nós tivemos um importante progresso graças à nossa inserção na classe trabalhadora e no movimento de massa. Mas isso não é suficiente.
Encontrar uma alternativa global para a sociedade não é um produto automático de uma luta crescente. Aqui nós temos um trabalho essencial para realizar. E somos praticamente os únicos que podem cumpri-lo, considerando que não podemos ser acusados de traição, crimes ou mentiras. Nós temos uma bandeira sem mácula. Somos os únicos que estão em uma posição de reivindicar, como uma corrente internacional, representar a tradição do socialismo e do comunismo como ela foi estabelecida pelos fundadores do movimento operário, do marxismo.
Mas por outro lado, além dessa profunda fraqueza que não deve ser subestimada, temos agora uma gigantesca vantagem que muda completamente a situação que conhecíamos. O fracasso do stalinismo, do pós-stalinismo e do reformismo tradicional, está abrindo uma arena muito ampla além do poder de controle dos aparelhos burocráticos tradicionais. Esta é a primeira vez que acontece tal situação desde o começo do anos 1920. As fraquezas do stalinismo e do reformismo criam aberturas significativas em toda uma série de países. Isso libera forças sociais muito amplas.
Esta é a explicação comum para o que aconteceu na Polônia em 1980-81, no Brasil, no Leste alemão, na Tchecoslováquia, em El Salvador, África do Sul, Coreia do Sul e, em uma escala mais modesta, na esquerda sindicalista no Oeste europeu, etc. Todos esses movimentos estão profundamente comprometidos com a independência e com a democracia operária. Eles estão inspirados por um espírito anti-burocrático e anti-autoritário, e se opõem à manipulação, ao “verticalismo”, etc. Isso abre ótimas possibilidades para nós. Neste ambiente somos como peixes na água. Somos capazes de defender nosso programa inteiro. Não somos denunciados, censurados ou caluniados, e menos ainda perseguidos ou assassinados.
Está é uma situação completamente nova. Não se esqueça que mesmo na França, na Federação Francesa Democrática dos Trabalhadores (CFDT) [a federação sindicalista social democrata] – lar dos grandes defensores da democracia – quando um sindicato combativo de esquerda surgiu, no qual nós trabalhamos e tivemos alguns avanços, a casa caiu; eles foram expulsos. Fomos igualmente tratados como “ovelhas negras”. Este tipo de desenvolvimento é, por enquanto, impossível no PT brasileiro, impossível no embrionário movimento de massa na Coréia do Sul, ou na África do Sul, e é certamente impossível na República Democrática Alemã (RDA), na Tchecoslováquia, e também na URSS, onde as pessoas passaram por uma experiência terrível com o stalinismo e se tornaram ultra-sensíveis a qualquer forma de repressão ao movimento operário.
Certamente, tudo isso é somente uma mudança potencial, nada mais. O resto depende de nossa capacidade de intervir no movimento de massa, de atuar politicamente em nosso próprio nome, de não ser sectários, de defender e enriquecer nosso programa – e também em nossas forças numéricas, considerando que só se pode crescer de acordo com a base de onde se começa. Mas esta é uma nova situação sobre a qual o nosso movimento, e outros além de nós, ainda não assimilou a devida proporção. Paradoxalmente, é nos países onde o movimento operário parece estar o mais fraco, em razão da crise do stalinismo, que existem grandes oportunidades para o desenvolvimento de um movimento de massa que escapará do controle dos aparelhos burocráticos.
A situação na economia capitalista internacional se caracteriza, desde o começo dos anos 1970, por uma onda longa de depressão que continua a indicar um ciclo industrial tradicional. Muitas pessoas ficaram espantadas com a duração da expansão após a recessão de 1980-82. Mas o que tem sido mais característico desta expansão não é sua duração, mas sua natureza limitada.
Apesar da conjuntura favorável, a taxa de expansão é muito menor do que era durante períodos de crescimento 25 anos atrás. O desemprego continua a aumentar; as contradições inter-imperialistas estão se tornando acentuadas. A crise econômica nos países de terceiro mundo está atingindo proporções catastróficas, inigualáveis mesmo à situação de 10 ou 15 anos atrás.
Como um resultado, uma expansão da economia capitalista comparável ao “boom” do anos de pós-guerra é, por enquanto, totalmente irrealista. É outra questão se, a longo prazo – vamos dizer durante o século 21 -, tal expansão é possível. Mas é necessário apontar as condições. Uma nova recessão é inevitável, mesmo que a data seja discutível. Mas para o ciclo de expansão posterior a tal recessão se desenvolver em um novo “boom” do tipo de 1948-73, duas condições devem cumpridas.
A primeira seria uma derrota extremamente grave da classe trabalhadora nos países imperialistas. Em todos esses países, o declínio dos salários reais para os trabalhadores tem sido de somente 10 ou 15% durante os últimos 15 anos, o que é insuficiente para a burguesia. Se nos próximos dez anos essa redução atingir 30 ou 40% – o que seria equivalente à situação na Alemanha após a vitória do nazismo em 1933 – então haverá um aumento da taxa de lucro graças a um espetacular aumento da taxa de mais-valia. Isso poderia reiniciar um processo de acumulação de capital produtivo – ao invés de capital especulativo – em uma grande escala. Mas simplesmente um aumento da taxa de lucro não é suficiente. Existe uma segunda condição: uma expansão espetacular do mercado.
Isso poderia acontecer sob duas condições. Primeiramente, o surgimento de uma área de produção em massa que seria uma força motriz para toda a economia capitalista, comparável ao papel exercido pela indústria automobilística e pelo mercado imobiliário durante o “boom” do pós-guerra – isto é, mercadorias que poderiam encontrar centenas de milhões de consumidores em uma escala mundial. Por enquanto não podemos prever nada dessa natureza – não por falta de novas invenções, novas inovações tecnológicas, mas por conta de uma conjunção de fatores econômicos e sociais. A grande maioria de trabalhadores, mesmo aqueles que são bem remunerados, não tem como comprar computadores ou telefones celulares para seus carros. Ao mesmo tempo, eles não vêem qual uso poderiam fazer de tais coisas.
A segunda condição seria uma expansão geográfica, que implica uma integração qualitativamente superior da URSS e da China no mercado mundial da economia capitalista. Assim, não é uma questão de 6 milhões de dólares por ano, mas 60 ou 100 milhões de dólares por ano de crescimento nas “trocas Leste-Oeste”. Isso parece totalmente irrealista por enquanto. Fora dos países do Leste, tal expansão do mercado está fora de cogitação. Não é possível, simultaneamente, super-explorar os países do terceiro mundo – ainda menos aqueles em desenvolvimento como Brasil ou Turquia – e também tê-los como compradores em uma larga escala. É aqui que encontramos a fonte de todas as contradições das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do endividamento enfrentado por tais países.
Seria mais útil para o capitalismo internacional a longo prazo , ao contrário, aumentar os recursos disponíveis para tais nações e não seu endividamento. Mas quem será capaz de levantar tal questão em uma clima de extrema rivalidade inter-imperialista, piorada pela longa depressão e pela ausência de um poder imperialista capaz de impor sua vontade? Os Estados Unidos não está a altura de tal tarefa e o Japão não está mais pronto para entrar nesse caminho. Quanto ao imperialismo europeu, e certamente o imperialismo alemão, ao mesmo tempo em que parecem mais inclinados a seguir tal curso, eles não têm os instrumentos políticos necessários em uma escala mundial e são muito divididos entre si.
Como um resultado, em termos da onda longa, nenhuma das condições que favoreceria um “boom” econômico, uma saída fácil para a atual recessão, estão vindo juntas. O fator decisivo será, mais uma vez, a questão da luta de classes nos países imperialistas, no Leste europeu e na URSS, e no terceiro mundo. Apesar de certos retrocessos e derrotas parciais, o movimento operário ainda mantém a capacidade de luta e de resistência. As forças conservadoras da burguesia e da burocracia cometeram um grave erro de subestimar sua capacidade de lutar.
Isso caracteriza, ademais, toda a situação mundial. O conservadorismo da burguesia e da burocracia é incapaz de impor sua solução devido essencialmente a uma fraqueza objetiva. A classe trabalhadora e seus aliados ainda não estão prontos para a tarefa de impor sua própria solução revolucionária – em consequência de fatores essencialmente subjetivos. Nós permanecemos, assim, em um longo período de crise e de lutas.
Em um certo número de Estados do terceiro mundo, a burguesia – acuada por protestos de massa contra a fome e o impasse da dívida – tem sistematicamente recorrido à repressão e às ditaduras militares. Mas a questão da correlação de forças também tem de ser levada em consideração. Em uma série de países o proletariado está aumentando numericamente e construindo fortes organizações sindicais. O impacto eleitoral do movimento operário, sua capacidade de mobilizar seus aliados do campesinato, das camadas urbanas marginalizadas, da juventude, etc., é tamanho que a burguesia pagará um alto preço por qualquer tentativa de retornar a uma ditadura militar aberta. Isso também é verdade no plano econômico: a impotência, a incapacidade de controlar essa mudança na correlação de forças nas empresas. Ao ponto em que – nos regimes que são ultra-conservadores, que são ditatoriais – a ala combativa da classe trabalhadora se torna progressivamente marginalizada, desaparecem os meios de se controlar o que acontece no cotidiano das fábricas. Uma greve não pode ser encerrada porque não há liderança, e ninguém está apto para negociar. O problema não se revela quando não há greves, mas quando elas ocorrem este fator está presente – assim, a burguesia é confrontada com um dilema real. Tudo depende, mais uma vez, do alcance do movimento de massa e do impacto da eventual repressão.
A queda da ditadura burocrática na RDA, na Tchecoslováquia e na Romênia, junto com seu enfraquecimento na URSS, tem de ser entendida em todos os seus aspectos contraditórios pelo nosso movimento. Nós somos os mais bem posicionados – devido a toda nossa história e à nossa análise teórica da ditadura burocrática – para entender os termos reais do que está acontecendo nestes países. É uma situação de luta de três lados entre forças sociais. É claro, em cada país esta luta toma sua própria forma política única, mas é antes de tudo necessário entender as ações dos amplos mecanismos sociais.
Existem três principais forças sociais envolvidas: a “nomenklatura”, isto é, aqueles no topo da burocracia, a camada dos burocratas que é social e materialmente a mais privilegiada; a pequena e média burguesia, impulsionada pela burguesia internacional; e a classe trabalhadora. Qualquer abordagem sobre eventos nestes países que se reduza somente a ideologia, proclamações, declarações verbais de intenção, que eliminam a potencial ou mesmo a real intervenção da classe trabalhadora, é totalmente falsa e irá rapidamente levar a uma análise completamente errônea.
Baseando-nos na experiência de crises prévias da burocracia, diferente de outras, sabemos que um núcleo duro da “nomenklatura” irá se agarrar a seu poder e seus privilégios. Será certamente capaz de manobrar, de dividir. Hoje, uma ala da “nomenklatura” está tentando de um modo consciente e rápido se fundir com a média burguesia e com o capital internacional. Mas isto não é verdade para toda a burocracia. A maioria da burocracia está se agarrando a sua posição atual por uma razão material muito simples: ela não pode esperar ficar melhor sob um regime capitalista, e ainda menos sob uma democracia socialista. Nenhuma camada social dominante na história jamais cometeu suicídio.
O resultado dessa luta não está pré-determinado – nem mesmo em países como Polônia ou Hungria, que parecem já ter se livrado decisivamente da velha ideologia. É possível proclamar dez vezes que o capitalismo foi restaurado. Mas é uma coisa restaurá-lo em palavras, e outra fazer isso de fato. Sem dúvida o perigo é real, principalmente nestes dois países, mas o capitalismo certamente não foi restaurado na realidade. A luta decisiva ainda está diante de nós.
E é aqui que a classe trabalhadora entra. A restauração do capitalismo só pode ser cumprida em seu detrimento, através de uma diminuição de seus padrões de vida, pela perda de substância de suas conquistas sociais, por uma grande injustiça social, assim como pela re-aparição da pobreza em uma escala colossal – exceto talvez na RDA – e o resto. Tudo isso provocará uma reação e uma terrível crise moral. Na Polônia, já existem 5 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha da pobreza. Existem aposentados que estão incapacitados mesmo de comprar pão, etc. Uma política mais e mais repressiva se desenvolverá nestes países, sem dúvida, para combater as explosões e protestos. O que está sendo gestado é uma crise social e política extremamente grave. É somente como um resultado do desenlace de tal crise e de tais lutas que a questão será resolvida.
Pensamos que a burocracia stalinista e pós-stalinista não é uma nova classe. Ela não tem raízes profundas na sociedade, nem uma papel social legítimo, nem uma consciência de sua própria legitimidade (e isso, ademais, explica uma grande parte do que está acontecendo hoje). Assim, não tem nenhum dos atributos de uma classe social, e sua derrubada, uma vez que as massas entrem em ação, será relativamente fácil, considerando que nada se mantém no caminho exceto seu apego ao poder governamental.
Na análise final, tudo gira em torno do grau de mobilização, da auto-organização, e da consciência das massas nesses países. Mas a situação é contraditória. Em termos de mobilização,acredito que ainda teremos algumas felizes surpresas, e que haverá uma explosão de lutas de massa como nunca antes vista na história.
No plano da auto-organização, o quadro é menos positivo no presente. Auto-organização não é somente uma questão de quão fortes as mobilizações são, mas também concerne aos seus objetivos. E quando os objetivos não eram claros, e os sucessos da primeira fase foram rápidos apesar disso, as pessoas não entenderam muito bem por que e como elas deveriam ter se organizado. Elas se organizaram principalmente por conta de sua desconfiança das lideranças.
Uma das principais tarefas para a extrema-esquerda nesses países é, assim, formular e disseminar ideias progressivas para comitês de base, para assembleias, mas também reivindicar a capacidade de revogar os representantes eleitos. Isso corresponde ao estado atual de consciência, a desconfiança da população. Eleições e sufrágio universal, sim, mas com a possibilidade de revogação dos eleitos. Tal coisa já iria mudar a situação.
O terceiro fator, o mais importante, é a falta de direção revolucionária e de um entendimento preciso sobre objetivos. Nestas circunstâncias, é evidente que o padrão de vida dos países imperialistas e os modelos social-democratas estão exercendo uma importante atração.
Levará um tempo para os dois primeiros fatores superarem o terceiro. É necessário desenvolver uma modelo econômico alternativo. Teoricamente, programaticamente, um aspecto disso já está claro: nem despotismo burocrático, nem a ditadura do mercado! Mas é acima de tudo necessário demonstrar que essa opção é real. E o primeiro pré-requisito para isso é uma luta para realizar esses objetivos, para que então essa alternativa tenha um impacto genuíno.
Dezembro 29, 1989