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Primeira Edição: Entrevista presente no livro "Marxismo revolucionário atual" (Zahar, 1981), capítulo 2 - "A revolução permanente no terceiro mundo", item "Cuba 1959-1979", p. 95-100
Fonte: https://teoriamarxista.wixsite.com/blog-mri/post/rev-cubana-mandel3
Transcrição: Pedro Barbosa
HTML: Fernando Araújo.
I - pergunta: "Um dos exemplos mais notáveis de um processo real de revolução permanente ocorreu em Cuba. A revolução cubana comemorou recentemente o 20° aniversário de sua vitória. Como avaliar a importância dessa vitória, vinte anos depois?"
A revolução cubana ocupa um lugar excepcional na história das revoluções de pós-guerra. É a única revolução vitoriosa que não foi liderada por uma força originária da Internacional Comunista stalinista e influenciada pelo stalinismo, pelo menos na educação teórica básica de seus quadros dirigentes. De fato, como bem se sabia em fins da década de 1950 e princípios da década de 1960 (mas está sendo esquecido nos círculos de esquerda de hoje), os stalinistas cubanos se opuseram insistentemente ao Movimento 26 de Julho em sua fase inicial, e à guerrilha urbana e rural do Diretório Revolucionário. Proporcionaram até mesmo ajuda à ditadura de Batista em mais de uma ocasião, sabotaram abertamente a greve pedida por Fidel em 1958 e participaram das "eleições" forjadas de Batista. Mesmo depois que o Movimento 26 de Julho tomou o poder, a liderança do Partido Comunista Cubano (conhecido como Partido Socialista Popular, PSP) se opôs à orientação do governo de Castro, quando a expropriação da burguesia foi iniciada e teve começo a evolução no sentido de um Estado dos trabalhadores.
Várias características essenciais da revolução cubana foram mal interpretadas e hoje necessitam de uma nova ênfase. Primeiro, embora seja certo que a derrota do exército de Batista pelas guerrilhas fidelistas fosse uma pré-condição necessária à vitória da revolução, não era, por si só, suficiente. Há mais de um exemplo, na história da América Latina, da derrubada de uma ditadura reacionária, e mesmo da destruição de grande parte de seu exército, sem expropriação da classe dominante e demolição de seu poder político. É relativamente fácil, num país semi-colonial, reconstruir um exército burguês, ou, de qualquer modo, mais fácil do que num país capitalista adiantado. Isso foi tentado, na verdade, em Cuba depois que o Movimento 26 de Julho tomou o controle de Havana; foi até mesmo dirigido pelo recém-nomeado presidente da república. Mas uma enorme mobilização de massa, iniciada pela greve geral de 1-2 de janeiro de 1959 e pela decisão de promover uma revolução agrária radical, destruiu essas tentativas, como destruiu também a máquina burguesa. Esse processo foi acompanhado por uma divisão do Movimento 26 de Julho em alas pró-burguesa e pró-socialista (isto é, proletária). Essas importantes lutas de classes de 1959 e 1960, combinadas com a vitória da ala proletária, provocaram a destruição total da máquina estatal burguesa e o estabelecimento do Estado cubano dos trabalhadores, que não foi, de modo algum, o produto automático ou inevitável da vitória da luta de guerrilhas.
Da mesma forma, embora seja certo que o imperialismo americano foi pego de surpresa pela evolução política do movimento fidelista imediatamente após sua entrada em Havana, Washington reagiu brutal e rapidamente, quando a dinâmica antiimperialista e anticapitalista das mobilizações de massa e sua liderança se tornou evidente. O fator decisivo para impedir uma intervenção maciça dos soldados americanos foi a onda de solidariedade internacional à revolução cubana, especialmente na própria América Latina. E qualquer invasão direta dos Estados Unidos ameaçava inflamar todo o continente, risco que Eisenhower e, mais tarde, Kennedy não ousaram correr. Foi por isso, e não devido a um erro de julgamento da situação, que o imperialismo americano preferiu agir através de mercenários, sabotadores e operações de comando, das quais a invasão de 1961 foi o ponto culminante. Mas essas operações, que acabaram tendo êxito na Guatemala em 1954, não conseguiram fazer recuar uma revolução que havia mobilizado literalmente centenas de milhares de homens e mulheres. A razão histórica da derrota do imperialismo em Cuba está nessas mobilizações e no rumo tomado pela liderança fidelista, e não nos supostos erros de Washington.
Finalmente, a revolução cubana caracterizou-se, desde o início, por uma intensa atividade de massa, de organização e de espontaneidade revolucionária, muito além de tudo o que se havia visto desde a revolução espanhola de 1936-37. O aspecto criativo da ação de massa e da liberdade foi evidente em muitos setores, desde a transformação de vilas de Havana em dormitórios para rapazes e moças do campo que estavam estudando na capital, até a verdadeira explosão de arte revolucionária, as milícias armadas (que incluíam mulheres) organizadas para manter guarda em edifícios públicos, a gigantesca campanha para acabar com o analfabetismo, a abolição radical dos aluguéis e pagamentos pelos serviços públicos, a maciça redistribuição dos bens de consumo em benefício das camadas mais pobres do campesinato e do proletariado rural.
Embora esse processo envolvesse grandes mobilizações de massa e um esforço de educação política maciça, como raramente se havia visto, sua fraqueza básica foi a falta de poder institucionalizado dos trabalhadores, em outras palavras, a falta de sovietes. Os Comitês de Defesa da Revolução poderiam ter se transformado em núcleos de sovietes autênticos, mas não evoluíram nesse sentido. Surgiu um grande hiato entre, de um lado, a mobilização de massa e a popularidade de Fidel e, de outro, a linha revolucionária de Che e o exercício real do poder. As debilidades da liderança fidelista foram, quanto a isso, reveladoras. A máquina do PSP foi capaz de infiltrar-se gradualmente naquela lacuna, incorporando e integrando, cada vez mais, sucessivas camadas do movimento revolucionário, na ausência de uma orientação estratégica alternativa (especialmente sobre como criar um Estado dos trabalhadores baseado em uma democracia socialista) e dada a incapacidade das massas em manifestar sua mobilização através de órgãos democráticos de poder dos trabalhadores.
Enquanto isso, a burocracia soviética avaliava com argúcia a situação como menos perigosa para seus interesses do que poderia ter parecido inicialmente. Moscou apoiou Cuba revolucionária contra o imperialismo dos Estados Unidos, ganhando com isso prestígio na América Latina e influência na própria ilha. A liderança revolucionária cubana continuou a dispor de certa margem de ação tanto nas experiências internas como nas iniciativas internacionais, mas a influência soviética cresceu, tendo em vista principalmente as subvenções à economia cubana contra o bloqueio imperialista. Enquanto isso, um número crescente de funcionários da máquina estatal, da máquina partidária e das forças armadas cubanas eram treinados e educados politicamente na URSS. Isso estimulou muito o processo de estabelecimento do controle burocrático e sufocação da iniciativa revolucionária de massa. A tendência nesse sentido tornou-se especialmente clara a partir de 1967.
II - pergunta: "Os primeiros anos do governo de Castro foram marcados por um intenso internacionalismo proletário: a Segunda Declaração de Havana, a campanha cubana de solidariedade à revolução vietnamita, etc. Hoje, o Estado cubano dos trabalhadores está desempenhando na África um papel que muitos consideram uma extensão daquele internacionalismo inicial. Como vê a atuação de Cuba na política mundial?"
A revolução cubana foi muito menos burocratizada, menos controlada, do que a iugoslava, a chinesa ou a vietnamita. O peso das camadas proletárias ou semiproletárias nas mobilizações de massa que levaram à tomada do poder e a ela se seguiram foi muito maior; a liderança cubana esteve, de início, relativamente livre da educação e do dogma stalinistas. Por isso, e provavelmente por outras razões também, o internacionalismo teve um papel muito maior nas políticas da revolução cubana e na consciência das massas cubanas do que em outras revoluções socialistas ocorridas desde a Segunda Guerra Mundial. É um fato inegável, e numerosas evidências empíricas podem ser reunidas para ilustrá-lo.
Contudo, para interpretar adequadamente o desenvolvimento recente do papel de Cuba na política mundial, outros fatores também devem ser considerados. Em primeiro lugar, devido ao crescente isolamento da revolução cubana na América Latina e à pressão contínua do imperialismo americano, tanto econômica quanto militar, o Estado cubano dos trabalhadores tornou-se cada vez mais dependente da ajuda soviética, em especial depois da crise dos mísseis de 1962. Essa dependência deu um salto qualitativo para frente, depois do fracasso da zafra, a colheita de 10 milhões de toneladas de açúcar. A dependência passou a ser expressa no alinhamento dos líderes cubanos com a política internacional do Kremlin, do qual o apoio de Castro à invasão da Tchecoslováquia em 1968, por mais relutante que tenha sido, foi a expressão concentrada. Esse alinhamento teve importantes consequências políticas, ideológicas e organizacionais dentro da própria Cuba. Há, hoje, toda uma geração de dirigentes de nível médio e de líderes no Partido Comunista Cubano cuja educação e cujas convicções são claramente stalinistas, o que não acontecia com o Movimento 26 de Julho, ou com o Diretório Revolucionário, em fins da década de 1950 e princípios da década de 1960.
Segundo, um processo de burocratização do isolado Estado cubano dos trabalhadores vem se realizando há cerca de 15 anos, relacionado com essa crescente dependência da burocracia soviética, mas dela parcialmente autônomo. Os privilégios materiais surgiram e cresceram, bem como a repressão das críticas políticas, do pluralismo cultural, da liberdade artística, etc. Até onde foi esse processo, é o que ainda não foi determinado. Nosso movimento está examinando a questão, e ainda não chegamos à conclusão de que existe uma casta burocrática cristalizada em Cuba, que só possa ser afastada com uma revolução política. Isso, porém, não significa que os casos de burocratização não sejam muito mais sérios do que em princípios, ou mesmo fins, da década de 1960.
Esses processos impuseram grandes limitações à extensão e ao conteúdo do internacionalismo da liderança do Partido Comunista Cubano e do governo de Havana. (Incidentalmente, é muito difícil julgar se essas limitações provocaram retrocesso semelhante na consciência das massas cubanas). Um exemplo notável é a posição quase que permanente de Havana de concordância com a política do Kremlin na América Latina e de apoio à estratégia dos partidos comunistas stalinistas daquele continente. Até certo ponto, isso representa um abandono de algumas das principais lições da própria revolução cubana e a inversão das principais políticas formuladas na Segunda Declaração de Havana.
Poderíamos argumentar, é claro, que essa posição é apenas temporária, que é uma adaptação pragmática da liderança cubana às derrotas sofridas pela revolução latino-americana e ao consequente isolamento de Cuba. A tendência pode ser modificada, se houver um novo surto importante de luta revolucionária em um ou vários países-chave da América Latina, para não falarmos de uma vitória e do estabelecimento de um novo Estado dos trabalhadores naquela área. Se ela será modificada, é o que resta ver. Isso, por si mesmo, seria um indício importante do grau de burocratização do Estado cubano dos trabalhadores.
Quanto à nossa opinião geral sobre a presença de Cuba na África, deve ser positiva. A política cubana na África demonstra que as massas e a liderança cubana ainda estão marcadas por um internacionalismo mais profundo do que o existente em qualquer outro Estado dos trabalhadores. O papel de Cuba foi decisivo em assegurar a conquista da independência nacional em Angola, que representou importante vitória para a revolução africana. Sem essa intervenção, é provável que as forças apoiadas pela aliança das tropas do regime racista na África do Sul e as formações tribais tivessem tomado o poder em Luanda, o que teria feito de Angola um baluarte da contra-revolução, em oposição à crescente onda de insurreição de muitos países vizinhos. Até agora, a presença militar de Cuba na África teve geralmente um efeito positivo sobre o desenvolvimento da revolução africana. A única exceção possível é a Eritréia, mas ali a controvérsia se refere aos fatos. Algumas fontes - inclusive alguns camaradas - negam que os cubanos tenham se envolvido na repressão da luta de libertação nacional do povo da Eritréia, que em nossa opinião é uma luta justa. Se houver um apoio cubano direto às tentativas de Mengitsu de esmagar a luta pela liberdade do povo eritreano, é claro que o condenaremos, mas até agora não existem provas cabais de que isso tenha acontecido.
Há, porém, uma ressalva importante que devemos fazer sobre o papel cubano na África, e se relaciona com a total identificação cubana com os líderes do Estado e do governo que apoiam, e a identificação também desses líderes como "socialistas", "comunistas" ou "proletários". Acreditamos que isso não é exato, nem mesmo no caso de Moçambique, onde a mais avançada das lideranças nacionalistas pequeno-burguesas da África está no poder e onde a desigualdade social é menos chocante. É ainda mais incorreto no caso de Angola, cuja liderança está agora empenhada num ato típico de equilíbrio: aumenta sua colaboração com Mobutu e os Estados Unidos, e com as firmas imperialistas americanas, belgas, portuguesas, inglesas e francesas, ao mesmo tempo em que continua a receber ajuda da União Soviética e de outros Estados burocratizados de trabalhadores e de Cuba. No caso da Etiópia, a justificativa dessa atitude é a mais frágil possível.
Naturalmente, seria irresponsável negar as tremendas conquistas do desdobramento das revoluções em Moçambique, Angola, Guiné-Bissau e Etiópia, contra a podre ordem colonialista ou semi-feudal que ali predominava antes. É de importância crucial defendê-las contra as tentativas imperialistas de fazer recuar tais conquistas. Mas uma coisa é saudar, apoiar e ampliar essas conquistas, e outra é apresentar os Estados ali criados como sendo dos trabalhadores, ou apoiar esses governos, mesmo em seus conflitos com as massas.