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Fonte: Mandel, Ernest e Anderson, Perry. A burocracia no
movimento operário. Cadernos Democracia Socialista — Volume V. São
Paulo: Editora Aparte. Transcrito do sítio da Revista Marxismo
Revolucionário Atual.
Transcrição e HTML de: Fernando A. S. Araújo,
dezembro 2005.
Direitos de Reprodução: ....
O marxismo é essencialmente a explicação da história e do desenvolvimento das sociedades pelas relações e os conflitos entre grupos sociais. Se o marxismo do século XIX foi inteiramente dedicado ao estudo do grupo fundamental, isto é, a classe social que tem as suas raízes no processo de produção, o marxismo do século XX foi levado a compreender a importância dos grupos não fundamentais, que não se apresentam como classes, que não têm raízes no processo de produção, mas que não deixam de representar um papel importante no desenvolvimento da nossa sociedade e da sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo.
Entre esses grupos, digamos secundários, a burocracia ocupa incontestavelmente o lugar principal. Se o marxismo do século XX foi levado a descobrir o problema da burocracia, foi porque esse problema, nascido do movimento operário nos anos 1898-1899, se desenvolveu e ocupou no plano ideológico uma importância cada vez maior. Claro, para que os teóricos pudessem entendê-lo e analisa-lo no domínio ideológico, foi necessário que esse epifenômeno se tivesse manifestado na vida e na prática das organizações operárias.
Tentaremos aqui distinguir os dois aspectos fundamentais do problema — o aspecto teórico e o aspecto histórico. E procuraremos responder às seguintes questões:
O problema da burocracia no movimento operário coloca-se sob o aspecto mais imediato, como o problema do aparelho das organizações operárias: problema dos funcionários permanentes, problema dos intelectuais pequeno-burgueses, que aparecem em certas funções de direção média ou superior, no seio das organizações operárias.
Quando durante muito tempo as organizações operárias são reduzidas a grupos
muito pequenos, a seitas políticas ou a agrupamentos de autodefesa de uma
grandeza numérica muito limitada, não existe qualquer aparelho, não há
funcionários permanentes e o problema não se coloca. Mas, apesar de tudo,
pode-se levantar a esse nível a questão das relações com os intelectuais
pequeno-burgueses, que pretendem dar a sua ajuda ao desenvolvimento desse
movimento operário embrionário.
Contudo, o próprio esforço do movimento operário, o aparecimento de organizações
de massa políticas ou sindicais é inconcebível sem o aparecimento de um aparelho
de elementos permanentes, de funcionários — e, quem diz aparelho e funcionários,
diz já fenômeno de burocratização em potencial: assim, logo de início, vemos
surgir uma das raízes mais profundas do fenômeno burocrático.
A divisão do trabalho na sociedade capitalista reserva aos proletários o trabalho manual de produção comum e às outras classes sociais a assimilação e a produção da cultura. Um trabalho fatigante e esgotante, tanto do ponto de vista físico como intelectual, não permite ao conjunto dos proletários adquirir e assimilar a ciência objetiva nos seus níveis mais evoluídos, nem conduzir uma atividade política e social permanente. A situação proletária no regime capitalista é uma situação de subdesenvolvimento cultural e científico [1].
A supressão total dos aparelhos no movimento operário o condenaria a um primitivismo inteiramente medíocre e faria entender a sua vitória como uma regressão no plano cultural e social em relação às realizações do mundo capitalista. Pelo contrário, o socialismo, a emancipação do proletariado, não pode ser concebível senão pela assimilação completa de tudo o que a ciência pré-socialista deixou de válido no plano das ciências naturais e sociais.
O desenvolvimento operário torna absolutamente indispensável a criação de um aparelho [2] e o aparecimento de funcionários que, por uma certa especialização, procuram preencher as lacunas criadas pelas condições proletárias no seio da classe operária.
É evidente que , de um modo grosseiro, poderíamos dizer que é com essa especialização nova que nasce a burocracia: desde que algumas pessoas se ocupam profissionalmente e permanentemente da política ou do sindicalismo operário, existe sob a forma latente uma possibilidade de desenvolvimento do burocratismo e da burocracia.
Esta especialização provoca num plano mais profundo certos fenômenos de fetichização e de reificação: numa sociedade baseada na divisão do trabalho, numa diferenciação excessiva de tarefas, onde os trabalhadores fazem os mesmos gestos durante toda a sua vida, encontramos no seu comportamento o reflexo ideológico dessa situação — eles têm tendência para considerar a sua atividade como um fim em si. Do mesmo modo, as estruturas das organizações, concebidas como objetivos em si, em particular por aqueles que se identificam mais diretamente e mais nitidamente com essas organizações, ou seja, por aqueles que aí vivem permanentemente: os indivíduos que compõem o aparelho, os funcionários permanentes, os burocratas em embrião.
Isso leva-nos à compreensão do que está na base ideológica e psicológica da formação da burocracia operária: o fenômeno da dialética das conquistas parciais.
Como materialistas, não podemos separar este problema do dos interesses materiais imediatos — atrás do problema da burocracia, existe o problema dos privilégios materiais e da defesa desses privilégios.
Mas é demasiado simplista, se desejamos compreender o problema nas suas origens e no seu futuro, reduzi-lo apenas a esse aspecto da defesa de privilégios materiais. O melhor contra-exemplo é o desenvolvimento da burocracia nos partidos comunistas que não se encontram no poder (França ou Itália) ou semicoloniais (Brasil), embora numa certa faze (a pior época do stalinismo) esses fenômenos tenham aparecido em larga escala. Hoje, nos partidos comunistas de massa, os salários dos funcionários permanentes não se mostram superiores aos dos operários especializados e não constituem privilégios materiais a defender. Em contrapartida, representa de modo pleno o fenômeno da dialética das conquistas parciais: identificação do objetivo e dos meios, do indivíduo burocrático e da organização, do objetivo histórico a atingir e da própria organização, tornando-se essa identificação uma causa profunda de atitude conservadora, suscetível de se opor muito violentamente aos interesses do movimento operário.
Qual é a dialética das conquistas parciais?
Esta dialética manifesta-se nos comportamentos daqueles que subordinam o prosseguimento e a vitória das lutas operárias para chegar à conquista do poder nos países capitalistas somente à defesa das organizações operárias existentes; daqueles que subordinam, no pleno internacional, a expansão da revolução mundial e o desenvolvimento da revolução colonial à defesa passiva da União Soviética e dos países operários. Comportam-se como se os elementos de democracia operária no seio do mundo capitalista e a existência dos Estados operários fossem objetivos em si mesmos, fossem já a forma acabada de socialismo. Comportam-se como se qualquer nova conquista do movimento operário devesse subordinar-se de maneira absoluta e imperativa à defesa do que existe. E isto cria de fato uma mentalidade fundamentalmente conservadora.
A célebre frase do Manifesto Comunista "Os proletários nada têm a perder senão suas cadeias", é uma frase muito profunda que deve ser considerada como uma das bases do marxismo. Ela confere ao proletário a função de emancipação comunista da sociedade, porque os proletários nada têm para defender.
Quando isso não é mais completamente verdadeiro, quando uma parte do proletariado (seja a burocracia operária, seja a aristocracia operária constituída no proletariado dos países imperialistas desenvolvidos) possui uma organização ou um nível de vida superior à condição do nada inicial, corre-se o risco de desenvolvimento de uma mentalidade nova. Não se pode dizer agora que o proletariado nada tem a perder: em cada nova ação é preciso pesar bem os prós e os contras — não é verdade que a ação empreendida pode acarretar, em vez de trazer consigo alguma coisa de positivo, a perda do que já se possui?
Isso constitui a raiz mais profunda do conservadorismo burocrático no movimento social-democrata antes da Primeira Guerra Mundial e na burocratização dos Estados operários, mesmo antes da forma extrema de degeneração da época stalinista.
Esta dialética das conquistas parciais deve ser entendida como uma verdadeira dialética: não é uma falsa contradição que se pode resolver por uma fórmula; é uma verdadeira contradição dialética que incide sobre problemas reais. Se o conservadorismo burocrático é evidentemente uma atitude nociva aos interesses do proletariado e do socialismo, pela sua recusa da luta revolucionária nos países capitalistas e pela recusa da extensão internacional da revolução, sob pretexto de que isso põe em perigo as conquistas existentes, o ponto de partida dessa atitude, a necessidade de defender o que se conquistou, é um problema real: "Aquele que não sabe defender as conquistas existentes, nunca será capaz de novas conquistas" (Trotsky). Mas é errado considerar a priori (e aí é que existe conservadorismo) que qualquer salto em frente tido por importante na revolução seja à escala nacional, seja à escala mundial, ameaça automaticamente as conquistas anteriores. Esta atitude caracteriza o conservadorismo profundo e permanente das burocracias tanto reformistas quanto stalinistas.
Esta dialética das conquistas parciais, ligada ao fenômeno de fetichização numa sociedade baseada na divisão do trabalho a um nível excessivo, constitui portanto uma das raízes mais profundas da tendência para a burocratização. Esta tendência é inerente ao desenvolvimento do movimento operário de massas, nesta fase histórica de decomposição do capitalismo e de transição para a sociedade socialista.
Concluindo, o problema real não é, pois, a abolição da burocracia por decretos ou por fórmulas mágicas, mas o seu desaparecimento progressivo pela criação de melhores condições objetivas e subjetivas, que permitam a lenta extinção dos germes dessa burocratização que se encontram presentes na sociedade e no movimento operário durante toda essa fase histórica.
Evidentemente, não devemos cair uma vez mais no erro oposto àquele que comete o materialismo vulgar e que seria o de reduzir o problema às suas origens sociológicas longínquas, deslocando-o totalmente da sua infra-estrutura material. Esta tendência para o conservadorismo por parte dos dirigentes e dos funcionários permanentes das organizações operárias não deixa de ter relações com as vantagens e privilégios materiais que essas funções procuram. Esses privilégios sociais são igualmente privilégios de autoridade e de poder, aos quais os indivíduos atribuem uma grande importância.
a) Se consideramos o problema sob sua forma original, ou seja, o problema dos aparelhos das primeiras organizações operárias, dos sindicatos e dos partidos social-democratas [3] antes da Primeira Guerra Mundial, os privilégios burocráticos evidenciavam-se de duas maneiras:
b) O fenômeno do aparecimento de privilégios sociais, a princípio muito pouco materiais, assume uma amplitude maior quando essas organizações de massa começam a ocupar posições de força no interior da sociedade capitalista: trata-se então de designar os parlamentares, os eleitos a nível municipal ou os delegados sindicais que podem negociar a um nível elevado com as organizações patronais e, portanto, em certa medida, conviver com elas; acontece a mesma coisa quando se trata de designar os redatores de jornais e as pessoas que representam as organizações operárias em toda uma série de atividades complementares, no interior de um movimento polivalente que tenta intervir em todas as atividades sociais e que, de algum modo, se assimila a todas essas atividades.
Existe também aí uma verdadeira dialética, que não se reduz a uma banal contradição: por exemplo, quando o movimento operário controla um certo número de jornais e tem necessidade de um elevado número de redatores, vê-se colocado diante de um verdadeiro dilema. Se é aplicada a regra enunciada por Marx para lutar contra a burocracia, colocando os funcionários permanentes ao nível do operário qualificado corre-se o risco de se produzir uma verdadeira seleção profissional ao contrário. Os elementos mais conscientes politicamente aceitarão esta regra, mas os mais talentosos, que poderiam noutro lugar ganhar melhor a sua vida, serão permanentemente tentados por essa solução fácil. Na medida em que não se mostram suficientemente convencidos no plano político, ver-se-ão em grande parte ameaçados de serem absorvidos pelo meio pequeno-burguês e perdidos pelo movimento operário.
Este fenômeno de eliminação é igualmente real para uma série de outras profissões: nos municípios administrados pelo movimento operário, coloca-se o mesmo problema para os arquitetos, para os engenheiros ou os médicos. A aplicação restrita da regra de Marx arrisca-se a conduzir na maioria desses casos à eliminação de todas aqueles cuja consciência política se mostra insuficientemente desenvolvida.
Na sociedade capitalista, com tudo o que ela implica como "valores morais" e meio-ambiente, é impossível construir uma sociedade comunista ideal, mesmo no seio do movimento operário. Isto pode ser realizado no interior de um núcleo de revolucionários extremamente conscientes; mas num movimento operário numericamente mais evoluído, numa democracia burguesa, existe interpenetração com a sociedade capitalista: há uma inclinação para certas tentações e a aceitação dessas regras torna-se mais difícil. Vemos então surgir a tendência para a burocratização: o desaparecimento dos obstáculos conscientemente levantados contra os perigos de posições privilegiadas abre caminho a essa tendência de uma forma mais nítida.
c) Na última fase histórica, no seio de algumas grandes organizações operárias, a dialética pode mesmo aparecer na sua fase final. Pode verificar-se aí mudança de orientação política, integração consciente no seio da sociedade burguesa e colaboração de classes.
As raízes da burocracia multiplicam-se então muito rapidamente. Uma parte dos dirigentes convive de maneira consciente com a burguesia e integra-se na sociedade capitalista. Os obstáculos à burocratização levantados pela consciência socialista desaparecem; os privilégios multiplicam-se; os parlamentares social-democratas não oferecem já uma parte do salário à sua organização por se contentarem com um salário de funcionário permanente e tornam-se assim como uma verdadeira clientela no seio da classe operária. A partir desse momento, a degeneração burocrática só pode proliferar.
Encontramos um processo paralelo em três fases na burocratização dos Estados operários no período de transição:
a) em primeiro lugar, os privilégios de autoridade e as vantagens políticas nascidas do monopólio de poder no seio do aparelho de Estado;
b) em seguida, sobretudo no interior de um país atrasado, dá-se o aparecimento dos privilégios burocráticos, tanto no plano material como cultural;
c) finalmente, a degeneração burocrática completa, quando a direção já não resiste a esse fenômeno e o aceita conscientemente, se integra nele, tornando-se o seu motor e procurando acumular privilégios.
Corre-se o risco então de chegar às formas mais monstruosas como aconteceu com a burocracia soviética na época stalinista.
Por exemplo, "as contas fixas em banco", pelas quais um certo número de indivíduos privilegiado podia fazer todas as despesas possíveis, mantendo sempre o mesmo montante na sua conta. O único limite das despesas era a relativa penúria de mercadorias; para esses indivíduos, isso era a verdadeira realização do comunismo no seio de uma sociedade atrasada economicamente. Esse fenômeno surgiu depois na literatura pós-stalinista na União Soviética, nos jornais e nas revistas, em casos concretos de artistas e, claro, em dirigentes políticos que dispunham desse privilégio.
Um segundo aspecto desses privilégios exorbitantes não se revela menos espantoso: os "armazéns especiais". Este fenômeno, nascido na época stalinista, continuou existindo na maioria dos Estados operários até 1956-57. Os funcionários do Partido tinham direito a abastecer-se em armazéns especiais, cuidadosamente escondidos da população: esses armazéns estavam camuflados nas casas, que exteriormente eram casas de habitação, exceto para aqueles que aí podiam entrar. Portanto, ninguém conhecia a existência desses armazéns, nos quais se encontravam todas as mercadorias inacessíveis nessa época ao conjunto da população e em grande parte importadas dos países imperialistas. Uma verdadeira hierarquia existia entre os diferentes funcionários do Estado e do Partido, que tinham acesso a esses armazéns: alguns deviam pagar tudo por inteiro; outros, melhor situados na escala burocrática, pagavam apenas metade: finalmente, os que se encontravam colocados nos postos mais altos, aqueles que possuíam as famosas contas fixas no banco, podiam escolher o que queriam sem nada ter de pagar.
No período de 1947-48, que foi um período de penúria e de miséria nos Estados
operários, os burocratas de países como a Alemanha Oriental recebiam encomendas
provenientes da União Soviética. E é mesmo curioso verificar com que minúcia se
respeitava a hierarquia na preparação das encomendas: segundo a posição que
ocupavam, os burocratas recebiam maiores ou menores, com roupas de seda ou de
lã, manteiga ou gordura de porco, etc.
É ridículo, senão tragicômico, encontrar numa situação de fome uma aplicação tão
rígida da mentalidade burocrática erguendo a hierarquia dos privilégios
materiais como princípio necessário, mas é lógico encontrar mesmo aí as
deformações burocráticas mais características.
A conclusão mais importante que devemos extrair deste exame sumário do problema é a seguinte: é preciso distinguir nitidamente dois grupos de fenômenos e evitar assimilar abusivamente os dois:
Se não se faz a distinção essencial entre estes dois fenômenos ou, o que é pior, se se combatem todas as formas de organização que contêm esses germes sob pretexto de que isso conduz inevitavelmente a uma contradição extrema, coloca-se o movimento operário perante um impasse e não numa contradição dialética. Então, não se pode deixar de concluir pela impossibilidade de auto-emancipação do proletariado. Esta atitude conduz finalmente a colocar o movimento operário em condições muito piores e impede-o de lutar pela sua auto-emancipação:
a) Esta confusão extrema caracteriza diferentes grupos "ultra-esquerdistas" (aliás, mais direitistas que ultra-esquerdistas, sublinhe-se!): uma das soluções avançadas por alguns desses grupos consiste em dizer que o mal reside na presença de um aparelho e de funcionários permanentes. Para eles, é necessário lutar contra a existência de "revolucionários profissionais": a frase "Stalin estava presente no primeiro revolucionário profissional que apareceu no seio do movimento operário", resume o essencial dessas teses. É preciso, então, perguntar o que seria o movimento sem um funcionário permanente, não numa sociedade ideal, mas na sociedade capitalista tal como ela existe. Um movimento operário que não se procura criar revolucionários profissionais proletários, saídos da classe operária e muito fortemente ligados a ela, não poderia ultrapassar o nível mais primário das primeiras organizações de autodefesa da classe operária. Estaria inteiramente defasado das ciências modernas, tanto humanas como naturais; estaria, por incompetência política e econômica, condenado a não poder lutar mais além das reivindicações mais imediatas e espontâneas. Um movimento desses seria evidentemente incapaz de libertar o proletariado e derrubar o capitalismo, abrindo o caminho para a sociedade socialista.
A história demonstrou que esta solução era a mais improvável de todas: não existe no mundo um só exemplo de país em que o movimento operário, após algumas dezenas de experiências, continue a deter-se nesse nível de primitivismo por recear uma possibilidade de deformação burocrática posterior.
b) Na prática, é outro termo da alternativa que corre o risco de se produzir. Quando não se quer ter funcionários permanentes, revolucionários profissionais e não se quer permitir uma seleção e uma educação sistemática até um nível muito elevado dos elementos proletários, as organizações operárias caem inevitavelmente sob a proteção de intelectuais pequeno burgueses ou mesmo burgueses que se apoderem delas inteiramente. No interior dessas organizações, reproduzem o monopólio da ciência e da cultura que possuem já no interior da sociedade capitalista.
Vemos reaparecer a verdadeira contradição que não é compreendida por esses grupos: o verdadeiro dilema na sociedade capitalista não é a escolha entre uma forma de organização que não apresente nenhum germe de burocratização e uma forma que apresente esses perigos. Na verdade, trata-se da escolha seguinte:
Inúmeros exemplos históricos ilustram este último aspecto: certas organizações pseudo-operárias permanecem durante longos períodos sob a influência da burguesia por falta de autonomia operária, de capacidade de organização ou mesmo por erro ideológico, recusando ultrapassar uma certa fase.
Aliás, é curioso verificar que os defensores desta teoria vêem o perigo saído do aparelho que é real e não compreendem por outro lado que os operários não permanentes, submetidos à influencia da sociedade capitalista, serão muito mais permeáveis à ideologia dominante que é a da classe no poder. A razão disso é a dificuldade do trabalho manual que torna difícil a emancipação intelectual e cultural, no quadro de um dia de trabalho de oito ou nove horas mais o tempo gasto com transporte, etc.
Uma organização operária na qual só houvesse operários manuais constantemente no trabalho de produção seria muito mais facilmente influenciável pela ideologia burguesa do que uma organização em que se empreendesse um esforço constante para formar, educar e liberar da escravatura do trabalho capitalista os operários mais conscientes e os mais revolucionários, temperando-os na escola dos revolucionários profissionais.
c) Outro exemplo dessas falsas soluções que revelam na verdade uma incompreensão global do problema foi desenvolvida pelo grupo "Socialismo ou Barbárie": para impedir a burocratização do Estado operário, é preciso logo após a revolução suprimir todas as diferenças de tratamento e de salários. Mesmo aí existe incompreensão da verdadeira dificuldade — qual seria o resultado objetivo dessas medidas? Numa sociedade dominada pela penúria material, se são suprimidas de um dia para o outro todas as diferenças de salário, o resultado prático será a supressão de uma acentuada parte dos estímulos que levam as pessoas a qualificar-se melhor. A partir do momento em que a qualificação cultural e profissional não provoca qualquer melhoria das condições de vida, e isso numa situação de penúria, o esforço da qualificação reduzir-se-á aos elementos mais conscientes que compreendem a necessidade objetiva da elevação do nível cultural e profissional. O número de pessoas que procurarão qualificar-se será muito mais reduzido do que numa sociedade de transição, em que subsista ainda esse estímulo material das diferenças de salários. Nestas condições, o desenvolvimento das forças produtivas será mais lento, a penúria durará mais tempo e o resultado será exatamente o inverso daquele que se esperava. As causas objetivas do desenvolvimento da burocracia, que são o subdesenvolvimento das forças produtivas e o subdesenvolvimento cultural do proletariado, prolongar-se-ão por muito mais tempo. Por outro lado, se é conservada uma certa diferenciação de salários, a qualificação é acelerada e, portanto, igualmente a criação das condições materiais que favorecem o desaparecimento dos privilégios e da tendência para a burocratização.
Este exemplo é significativo pelo fato de se tratar verdadeiramente de uma dialética e, portanto, a sua solução deve ser igualmente dialética.
a) Marx não compreendeu todos os aspectos do problema da burocratização de uma forma precisa por falta de experiências históricas. Tendo confrontado apenas uma experiência única de Estado operário que existiu somente durante alguns meses — a Comuna de Paris -, daí extraiu, contudo, com uma perspicácia genial, duas regras muito simples e muito profundas, que contém quase todas as soluções avançadas atualmente pelo movimento operário contra a burocratização:
b) A solução marxista-revolucionária do problema foi dada pela teoria leninista do partido e pela teoria trotsquista do Estado operário e do papel consciente da vanguarda na direção de um Estado operário para lutar contra a burocracia.
É preciso ser lúcido e compreender o problema objetivo que é o caráter inevitável da presença, sob uma forma embrionária e potencial, dos germes da burocratização. Paralelamente, é necessário compreender quais são os meios mais eficazes para combater essas tendências e reduzir ao máximo a amplitude das diferentes condições materiais e subjetivas.
No plano do Partido, o próprio Lênin teve de elaborar, durante alguns anos, não uma autocrítica, mas um certo aprofundamento dos seus pontos de vista (desenvolvidos em "Que Fazer?") depois que o movimento operário russo passou, com a revolução de 1905, pela sua primeira experiência revolucionária de atividade de massas de grandiosa expressão. A verdadeira teoria leninista do Partido é constituída por dois elementos: por um lado, o que Lênin escreveu em "Que Fazer?" no princípio do século sobre a criação do núcleo do Partido revolucionário nas condições da clandestinidade; por outro lado, o que ele descreveu, após a primeira experiência revolucionária de massas do proletariado soviético, após a experiência dos sovietes, dos sindicatos e dos partidos de massas. É necessário compreender ao mesmo tempo a necessidade de certos destacamentos de vanguarda e de partidos de vanguarda, que não podem ser mais do que simples partidos largamente minoritários.
Esse destacamento de vanguarda deve ser integrado nas massas sem substituí-las e sem tomar para si algumas tarefas que não podem deixar de ser realizadas apenas por essas massas. A idéia de que "a emancipação do proletariado apenas pode ser obra do próprio proletariado" não deve ser substituída, na prática nem na teoria, pela idéia de que o partido revolucionário é chamado a emancipar o proletariado e a constituir o Estado operário no lugar do proletariado, primeiro em seu nome e depois contra esse mesmo proletariado em certas circunstâncias históricas.
Nesta dialética entre vanguarda e as massas e na compreensão das relações que deve ter o partido revolucionário com as massas do proletariado, é preciso insistir no fato de que certas tarefas históricas apenas podem ser realizadas com o apoio consciente da maioria do proletariado. Mas o apoio pelas massas de um partido revolucionário não pode conduzir-se a não ser em momentos excepcionais (mas historicamente necessários), o que implica a obrigação de permanecer como um partido minoritário durante todo o tempo em que não existe uma situação revolucionária.
A verdadeira teoria leninista do Partido reside na compreensão global desta dialética. Daí uma certa forma de organização e uma certa visão do problema dos revolucionários profissionais. Estes últimos não devem afastar-se de uma forma permanente da classe operária; devem poder regressar à fábrica e serem substituídos por outros proletários capazes de fazerem a mesma experiência. É isto que estabelece uma verdadeira circulação do "sangue vivo" entre a classe e a sua vanguarda: é a teoria da renovação entre os proletários e os revolucionários profissionais.
c) O mesmo se dá no plano dos Estados operários na sociedade de transição entre o capitalismo e o socialismo. Foi essencialmente Trotsky e o movimento trotsquista que deram as respostas a estas questões. No entanto, Lênin já tinha dado muitos elementos e, em certa medida, nos anos 1921-1922, mostrou-se mais consciente do fenômeno do que o próprio Trotsky.
Os germes da burocratização que levam à deformação burocrática são inevitáveis numa sociedade atrasada e isolada. De outro lado, o que não é inevitável é a transformação dessa deformação burocrática numa terrível degeneração, como se conheceu na época stalinista. Nestas condições, o papel do fator subjetivo é uma vez mais decisivo. Se a vanguarda revolucionária se mostra consciente do perigo da burocratização, ela saberá combate-lo a todos os níveis:
Se uma nova vanguarda proletária chega ao poder num novo país, sem desgaste moral ou físico, poderá tomar o comando do movimento, à medida que a revolução internacional se alargar: é esse o terceiro aspecto da "revolução permanente" de Trotsky.
Notas:
[1] Isso seria ainda mais exato num plano social mais amplo se, logo após a vitória da classe operária, se quisesse suprimir todos os técnicos e todos os especialistas que fazem mais do que simples trabalho material de produção. Condenar-se-ia a sociedade a uma colossal regressão imediata, a uma baixa de nível no desenvolvimento das forças produtivas. Em vez de um esforço, pré-condição do comunismo moderno, arriscar-se-ia a conduzir um comunismo primitivo que se decomporia rapidamente por uma nova diferenciação social. O cúmulo do paradoxo é que esta forma de proceder, longe de impedir a burocracia, reproduzi-la-ia em condições ainda mais prejudiciais.
[2] A criação dos aparelhos é indispensável por razões de simples eficácia: toda a gente compreende que é impossível dirigir cinqüenta mil pessoas sem um mínimo material de infra-estrutura.
[3] A importância histórica e numérica dos partidos social-democratas é um motor da sua burocratização e não um freio. É muito fácil manter não burocratizada uma organização, recrutando apenas membros que possuam já um mínimo de consciência e de atividade, em que o fenômeno de "clientela" não pode surgir em larga escala.
Fonte |
Inclusão | 10/12/2005 |