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Primeira edição: Archivo de Ruy Mauro Marini con la anotación "inédito".
Fonte: Ruy Mauro Marini - Escritos
HTML: Fernando A. S. Araújo
A luta contra a ditadura militar, tal como se desenvolveu a partir das eleições de 1974, enquadrou-se ideologicamente no binômio autoritarismo-democracia. Do ponto de vista doutrinário, a fonte de inspiração desse binômio é a distinção kelseniana entre dois modos de produção da ordem jurídica — autônomo e heterônomo — cuja essência reside no fato de a lei ser ou não resultado da ação daqueles aos quais se aplica. Do ponto de vista político, esse binômio permitiu encobrir o caráter de classe dos combates travados contra a ditadura e — desviando-os do enfrentamento direto ao bloco burguês-militar, como era o caso antes de 1974 — reduziu-os à crítica abstrata do autoritarismo, bem como, concretamente, dos seus efeitos econômicos e sociais. Isso levaria, na prática, a vincular as lutas populares ao movimento contra a estatização lançado pela burguesia e, progressivamente, a legitimar a hegemonia desta no bloco opositor, por um lado, assim como, por outro, a fixar como objetivos centrais deste bloco a afirmação dos princípios da democracia liberal no plano jurídico e institucional.
A Constituição de 1988 — como, antes dela, a campanha pelas eleições diretas — foi o fruto natural desse processo. Numa ampla medida, ela restabelece o caráter autônomo da ordem jurídico-institucional brasileira, apesar das impurezas e limitações que a vida lhe impôs. De fato, em sua origem, ela não nasce de uma assembléia constituinte soberana, eleita especificamente para esse fim, mas da outorga ao Congresso Nacional de poder constituinte amplo por um governo de legalidade duvidosa — o que explica, por exemplo, que alguns constituintes não tenham sido eleitos enquanto tais, sendo apenas senadores com mandato vigente que a constituinte congressual cooptou. O próprio processo eleitoral de que resultou a Constituinte cerceou a possibilidade de uma autêntica representação popular, ao não contemplar a eleição de candidatos avulsos, propostos pelas organizações sociais e de classe e pela cidadania em geral, em benefício do sistema partidário artificialmente imposto pela ditadura; a aceitação de emendas de iniciativa popular, determinada posteriormente pela Constituinte, foi uma tentativa de compensar esse vício de origem.
A conjuntura particular em que se realizaram as eleições de 1986, signadas pelo Plano Cruzado, contribuiu, por sua vez, para deformar a configuração da representação política na Constituinte, ao conferir esmagadora maioria ao partido da burguesia opositora — o PMDB — no governo, desde o ano anterior, mediante eleiçôes indiretas que consagraram a recomposição do bloco burguês-militar. É natural, portanto, que, apesar de um ou outro assomo de independência, a Constituinte desenvolvesse seus trabalhos dentro do quadro institucional heterônomo surgido em 1964, isto é, sob a pressão de um executivo centralizador e a tutela do quarto poder de que se haviam investido as Forças Armadas. É natural, também, que, no cumprimento de sua missão de recolher, harmonizar e subordinar à burguesia as aspirações e os interesses das forças sociais presentes na sociedade brasileira, a Constituinte recorresse ao arsenal jurídico proporcionado pela teoria política burguesa.
No estudo dessa teoria, é usual tomá-la como um todo relativamente homogêneo, resultado das contribuições parciais de diferentes pensadores. Na realidade, ela conforma três vertentes claramente diferenciadas e numa ampla medida contrapostas, embora tenham como denominador comum a defesa da dominação burguesa e de seus interesses de classe. É em função dessa diferenciação que há mais afinidade do contratualismo de Hobbes com o historicismo de Hegel, que pontificam na vertente autoritária, do que, por exemplo, com o contratualismo de Locke, expoente da vertente liberal, do mesmo modo como há um abismo entre o conceito de contrato nessas duas vertentes e o que informa a concepção democrática de Rousseau.
O eixo dessa diferenciação é a relação entre o Estado, expressão por excelência do poder, e a sociedade civil, entendida como a esfera da economia e das classes sociais, relação que tem seu ponto nodal na questão da origem e do exercício da soberania, tomada como poder supremo. Ainda que, para Hobbes, Locke e Rousseau, a soberania seja, por definição, atributo essencial do povo, eles diferem quanto à capacidade de delegação de que pode ser objeto o Estado, capacidade que é absoluta para Hobbes, limitada e condicional para Locke e praticamente nula para Rousseau. É por isso que, enquanto Hobbes vê a sociedade civil desamparada ante o Estado, Locke (e, depois dele, Montesquieu) procura circunscrever a ação e coibir os abusos do Estado mediante a separação de poderes e as limitações e controles que estes exercem entre si. Nos extremos, Hegel — para quem o Estado é a etapa superior do desenvolvimento histórico, na qual a sociedade civil se realiza e se resolve, superando em proveito do interesse geral os interesses particulares e corporativos que lhe são próprios — recupera o totalitarismo hobbesiano, reduzindo a divisão dos poderes do Estado a um mero expediente funcional; e Rousseau, radicalmente distante da vertente autoritária, rechaça também o liberalismo, ao conceber um Estado comissário, mero executor da soberania que o povo exerce diretamente como vontade geral e da qual é expressão a lei.
A tradição constitucional brasileira, gestada no seio da teoria política burguesa, tem como influências determinantes a corrente autoritária, primeiro, e a liberal, depois. A Constituição monárquica nasce da outorga real, sendo expressão, portanto, do poder soberano do monarca, que nela é, por sua vez, consagrado como quarto poder do Estado, preeminente aos três poderes habitualmente definidos pelo liberalismo; com isso, a existência de três poderes subalternos significou apenas um expediente de caráter funcional, no sentido que lhe dá Hegel. Os desenvolvimentos posteriores do Estado monárquico e seu sistema de governo, a partir de 1834, não modificaram essencialmente essa concepção, a própria adoção do parlamentarismo tendo-se destinado apenas a permitir o exercício mais moderno — ou, se se prefere, mais europeu — do poder absoluto do monarca. O escravismo sobre o qual repousa a sociedade brasileira da época não pode ser ignorado como fator determinante para a existência desse tipo de Estado.
A primeira constituição republicana, ao mesmo tempo em que expressa de maneira mais clara a concepção liberal, não rompe radicalmente com a inspiração autoritária que presidiu à formação do constitucionalismo brasileiro. Sua origem mostra já o caráter transacional que é o seu: aprovada em tempo récorde por uma assembléia constituinte restrita (a restrição mais importante sendo a proibição de voto aos analfabetos, que excluía a imensa maioria do eleitorado potencial), ela resulta de um projeto baixado por decreto pelo governo militar provisório. Nessa perspectiva, a adoção do princípio liberal da divisão de poderes não implicou uma ruptura de fato com a ordem anterior, dando origem ao presidencialismo exacerbado (chamado significativamente por alguns de "presidencialismo imperial") que passa a caracterizar o Estado brasileiro e que funde na figura do presidente da República os poderes executivo e moderador. Não falta quem sustente que, na realidade, o poder moderador reside na prerrogativa presidencial de — enquanto chefe das Forças Armadas — encarnar o princípio essencial do Estado, isto é, o monopólio da força, o que levou a tendência mais reacionária do constitucionalismo brasileiro a considerar que esse poder reside de fato nas próprias Forças Armadas.
Esta idéia emergiu de maneira explícita quando a ditadura militar buscou sua institucionalização. As constituições militares não ousaram, porém, romper com a tradição liberal, limitando-se a enfeixar nas mãos do presidente uma enorme soma de atribuições, e foi por via indireta que o princípio do quarto poder se fez presente nelas. Ele aparece já na missão atribuída às Forças Armadas, que não se destinam apenas à defesa nacional, mas também à "garantia dos poderes constituídos, da lei e da ordem". Mas a novidade fica por conta do novo papel de que elas investem o Conselho de Segurança Nacional: apesar de ser definido como órgão de assessoria do presidente da República, são de sua competência decisões imperativas, cabendo-lhe especialmente "estabelecer os objetivos nacionais e as bases para a política nacional". Mais além do plano estritamente constitucional, o sistema institucional da ditadura converteu em elementos do quarto poder os colégios corporativos militares, em particular os estados-maiores e os corpos de oficiais, assim como o Serviço Nacional de Informações. Recordemos, de passada, que, junto à acentuação do debate sobre o poder moderador e sua relação com as Forças Armadas, assistiu-se, no governo Médici, a uma intensa campanha de revalorização da monarquia, sob a óbvia influência do processo de constitucionalização da Espanha.
A Assembléia Constituinte instalada em 1987 propôs-se, desde o princípio, reduzir as atribuições do executivo e colocar o Congresso Nacional como eixo do sistema de poderes do Estado. Contribuiu para isso a forte tendência parlamentarista que se manifestou em seus debates, mediante a qual a elite política tentou capitalizar em seu proveito a aversão generalizada da sociedade ao presidencialismo extremado que a ditadura se havia dado como roupagem. Prevaleceu, afinal, o presidencialismo, graças ao concurso de interesses díspares: o presidente da República, que temia pela duração de seu mandato; as Forças Armadas, que, elemento integrante do poder executivo, empenharam-se na defesa deste; os partidos e organizações populares, que, com raras exceções, viram o parlamentarismo como um golpe de Estado da elite política e o cancelamento de uma das suas aspirações mais sentidas — as eleições presidenciais diretas; e, enfim, depois de certa hesitação, a própria burguesia, por recear que o bloco burguês-militar viesse a se fraturar e por preferir manter os vantajosos laços que construíra ao longo do regime anterior com a pesada máquina burocrática encimada pelo poder executivo.
De todos modos, o resultado foi um compromisso. O sistema presidencialista permaneceu, mas num contexto em que a soma maior de atribuições deslocou-se para o legislativo. Paralelamente, após discussões bizantinas e sofismas redacionais, as Forças Armadas retiveram sua capacidade para "garantir a lei e a ordem", cedendo, porém, em relação ao Conselho de Segurança Nacional, que foi extinto; em seu lugar, criou-se o Conselho de Defesa Nacional como órgão de consulta do executivo, transferindo-se para ele as atribuições mais significativas na área da segurança nacional, embora com caráter propositivo. Extra-constitucionalmente, os militares conservam suas prerrogativas e o seu aparelho oculto de poder, formado pelos seus órgãos corporativos e de inteligência.
Se a tônica da Constituição de 1988 em relação à organização dos poderes do Estado é um liberalismo acentuado, que se articula com a subordinação do Estado a um quarto poder não explícito, representado pelas Forças Armadas, ela introduz, porém, na tradição constitucionalista brasileira um elemento inovador, ao revestir um caráter mais abertamente democrático. Isto não se manifesta propriamente na ampliação das garantias e direitos individuais, que se derivam da tradição liberal, ampliação que é entretanto considerável (inclusive com a criação de fíguras jurídicas novas, como o habeas data e o mandado de segurança coletivo), e sim na instituição de mecanismos vinculados à democracia direta e no fortalecimento dos instrumentos de participação popular e de vigilância cidadã.
É assim como, ao lado do restabelecimento do sufrágio universal direto e secreto em todos os níveis, a Constituição cria três novas formas de intervenção da cidadania no âmbito legislativo e institucional do país: o plebiscito, adotado normalmente para modificações na organização político-territorial no plano estadual e municipal, e, em caráter especial e data pré-fixada, para decidir sobre a forma de Estado e de governo; o referendum, em situações não especificadas; e a iniciativa popular em matéria de legislação complementar e ordinária, desde que reúna certas condições na esfera federal e municipal, cabendo regulamentação por parte das constituições estaduais. Convém observar que ela não contempla o recurso à democracia direta em matéria constitucional, mesmo quando estabelece a revisão de seu texto atual dentro de cinco anos, já que, então, a população poderá opinar apenas sobre a forma de Estado e de governo. Por outra parte, mantém o princípio da inelegibilidade dos analfabetos e a proibição aos conscritos de votar e serem votados, além de ampliar, em relação à Constituição de 1969, as limitações à elegibilidade dos militares.
A vigilância cidadã ganha uma arma de peso, graças ao mandado de injunção, aplicável aos dispositivos constitucionais que não tenham sido postos em prática por falta de regulamentação. Paralelamente, se estende aos partidos, confederações sindicais e entidades de classe a faculdade de propor ações de inconstitucionalidade. Finalmente, além de torná-la gratuita, a Constituição amplia notavelmente o âmbito da ação popular, incluindo entre seus propósitos a defesa não só do patrimônio público, mas também da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural.
A flexibilização a que estas novas ou renovadas figuras jurídicas submetem o Estado brasileiro, tornando-o mais permeável à iniciativa popular, não tem precedentes na história constitucional do país. Ela expressa, numa ampla medida, o alto grau de diversificação e enriquecimento a que acedeu a sociedade civil, tanto por efeito das transformações na estrutura e nas condições de existência das classes sociais, quanto em conseqüência do empenho do povo brasileiro em defender suas organizações tradicionais e de criar outras novas, em seu esforço de resistência à ditadura. Isto se acentuou à medida que, explorando as brechas abertas no sistema de dominação do bloco burguês-militar, as forças populares intensificaram suas iniciativas reivindicativas e democráticas.
As lutas sociais, nos últimos dez anos, não têm paralelo na história moderna do Brasil e superam certamente todos os auges de massas anteriores, em matéria de amplitude e grau de organização dos setores nelas envolvidos. Aí se incluem desde as grandes greves metalúrgicas de fins dos 70 à campanha pelas diretas-já e às mobilizações provocadas pelo Plano Cruzado, passando pela arregimentação para a luta do proletariado rural e dos pequenos e médios produtores do campo, a combatividade das classes médias assalariadas, a ação da Igreja católica e das entidades profissionais e de classe, as batalhas travadas pelas organizações de moradores, de mulheres, negros, índios e ecologistas, até chegar ao imponente e complexo movimento de pressão sobre a Assembléia Constituinte, ao longo dos seus trabalhos.
Por isso mesmo, a grande questão que a Constituição teve que resolver foi reconhecer essa energia e, ao mesmo tempo, submetê-la à dinâmica interna do aparelho de Estado. Tal como ficaram as coisas, a iniciativa popular passa a ser mediada pela complicada rede de relações existente entre os poderes constitucionais e determinada em seus resultados pelo jogo de sutilezas e cumplicidades que entre eles se desenvolve. A capacidade para influir diretamente na formulação e implementação das políticas públicas, através de mecanismos que assegurem a participação popular nos órgãos de tomada de decisões e nos sistemas de execução, é extremamente precária, como precária é também a sua possibilidade de fiscalização em matéria orçamentária e financeira.
Mesmo quando se refere ao tema, o texto constitucional cuida de enquadrá-lo no sistema de relações internas do Estado, na melhor tradição corporativa, sem admitir pressão ou controle direto das organizações sociais sobre o aparelho estatal. Assim, no que tange aos direitos sociais, estatui o princípio da participação dos trabalhadores e empregados nos órgãos públicos "em que seus interesses profissionais ou previdenciários sejam objeto de discussão e deliberação". O assunto é retomado em função da seguridade social, onde se prescreve a participação da comunidade na gestão, em especial trabalhadores, empresários e aposentados, embora, ao legislar sobre suas partes integrantes (sáude, previdência e assistência social), essa prescrição só se faça explícita em relação à saúde e à assistência social (sendo nesta última que ela assume forma mais ampla) e se omita completamente na seção atinente à previdência social. No tocante à educação, a Constituição alude vagamente à "colaboração da sociedade", assim como à "gestão democrática" do ensino público. Nos demais capítulos da ordem social, ela não contém qualquer referência à participação social, ainda numa questão tão sensível como a do meio ambiente.
Confrontada a esse parâmetro frouxamente corporativo que adota para a ordem social, a posição da Constituição em relação à ordem econômica oscila entre dois extremos. Por um lado, encontramos ali a determinação de que a política agrícola seja "planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo trabalhadores e produtores rurais", além dos demais setores. Sem insistir na imprecisão do termo "produtores" — que não parece referir-se aos produtores independentes, ou pelo menos não só a eles, mas, na tradição semântica da classe dominante brasileira, alude aos proprietários — o artigo generaliza tanto e torna tão abrangente o conceito de participantes que será certamente de difícil aplicação. No outro extremo, está todo o referente à política industrial e de desenvolvimento urbano, onde não se menciona nem por descuido a participação popular.
O mais grave, entretanto, em relação à ordem econômica — além da interdição ao Estado de realizar atividade econômica direta, salvo por motivos especiais, o que escancara as portas à privatização das empresas públicas — é o que aparece, discretamente, no capítulo relativo aos direitos sociais. Após reiterar o direito à participação dos trabalhadores nos lucros das empresas, a Constituição praticamente lhes veda a possibilidade de participação na gestão, ao reservá-la para casos excepcionais, a serem definidos em lei. Com isso, não é só o princípio da auto-gestão que está ausente da Constituição, mas também, em caráter geral, o da co-gestão.
Observemos, finalmente, que o controle ordinário da utilização dos recursos públicos (aparte o uso do instrumento, de por si excepcional, da ação popular) é colocado ao interior do próprio aparelho de Estado, com preeminência ao Congresso Nacional, auxiliado pelo Tribunal de Contas da União, linha que dá a pauta a ser seguida por estados e municípios. A iniciativa popular em matéria de fiscalização, passível de ser exercida por cidadãos, sindicatos, partidos e associações, limita-se à faculdade de denunciar irregularidades ante o TCU.
Em suma, o princípio de que o poder emana do povo e que este, além de exercê-lo por meio de representantes eleitos, o faz também diretamente, do qual parte a Constituição, vai sendo progressivamente emasculado à medida que esta se desenvolve. Isso começa pela exclusão da intervenção popular em matéria constitucional, prossegue com a subordinação dos mecanismos de democracia direta à iniciativa e/ou decisão final do próprio aparelho de Estado e culmina com o caráter frouxo, limitativo e até proibitivo das disposições sobre a participação popular na gestão e controle da economia e dos órgãos do Estado, assim como nos assuntos referentes à formulação e acompanhamento das políticas públicas. Neste sentido, a influência da vertente democrática burguesa na Constituição de 1988, que representa sua maior novidade, não contraria em absoluto a sua essência liberal.
Não era lícito esperar outra coisa de uma Carta gerada no bojo de um processo em que é inquestionável a hegemonia burguesa. Surpreende até que, sem haver liquidado ainda o legado da derrota histórica a que foram conduzidas a princípios dos 70, as forças de esquerda tenham conseguido bloquear as iniciativas mais arrojadas da elite orgânica burguesa, ainda que à custa de alianças as mais heterodoxas, como no rechaço ao parlamentarismo e na aprovação de dispositivos de inspiração nacionalista, outra inovação da atual Constituição, que não cabe analisar aqui. Mais que isso, conseguiram mesmo plasmar no texto preceitos constitucionais que atendem sentidos interesses do povo brasileiro.
Este é o caso da redefinição e ampliação das garantias individuais e dos direitos políticos e sociais, assim como dos mecanismos de democracia direta e participação popular. Por limitados que sejam os avanços obtidos neste último aspecto, é inegável que eles abrem espaços suscetíveis de ser preenchidos e estendidos através de uma mobilização popular lúcida e perseverante. De todos modos, essa mobilização é imprescindível, não só para assegurar as conquistas alcançadas, mas também porque muitas das questões relevantes colocadas pelo atual período tiveram sua solução adiada e só deverão ser decididas nas batalhas a ser travadas em torno às leis complementares e ordinárias que completarão a presente ordem jurídica.
É, porém, na questão democrática que reside o desafio principal para o Brasil, assim como para o mundo contemporâneo. A ascensão e auge do capitalismo, que fundamentaram a hegemonia da teoria política burguesa e, dentro dela, do liberalismo, levaram a que as conquistas democráticas se tivessem que realizar nos interstícios da ordem jurídico-institucional creada pela burguesia. A própria formulação da concepção democrática ocorreu de maneira tosca e incompleta, proporcionando parcos elementos teóricos e doutrinários às classes dominadas.
Coube a Marx fazer a crítica radical do Estado liberal burguês e — rompendo com a herança rousseauniana, que identifica democracia e propriedade privada (o que permitiu à burguesia proceder à assimilação dessa herança) — conceber o exercício da democracia como ação de classe do proletariado, reduzindo, embora em relação inversa a Hegel, a separação de poderes a uma mera distinção de funções. As circunstâncias particulares em que se realizou a revolução socialista na Rússia — erigindo o partido único em condição de existência do Estado e justificando a retirada de direitos políticos à burguesia, além de introduzir desigualdades enquanto ao exercício desses direitos dentro do próprio bloco revolucionário — limitaram consideravelmente o processo democrático soviético e acabaram por conduzir à ditadura burocrática de Stalin. A maneira pela qual se criou, posteriormente, a maior parte dos Estados socialistas não contribuiu para corrigir substancialmente essas distorçôes.
Atualmente, as tendências reformistas no mundo socialista vão no sentido de, juntamente com a implantação plena da autogestão na economia — condição sine qua non da ordem democrática — , fortalecer o sistema representativo, mediante a flexibilização dos processos eleitorais, a liberalização da formação da opinião pública e um crescente pluralismo na seleção de candidatos a postos eletivos. Esses elementos, combinados com o princípio da revocabilidade dos representantes, inherente à verdadeira democracia, tornam possível pensar na regeneração da democracia socialista.
É importante sublinhar, porém, que essa regeneração supõe o reforçamento do sistema representativo, mas não implica a adoção de um sistema misto, que combine liberalismo e democracia, como muitas vezes se pretende. O quanto estes são inconciliáveis ficou demonstrado, com meridiana claridade, no processo político chileno dos anos 70, que culminou com o choque aberto entre a iniciativa das massas, expressada nos órgãos do nascente poder popular, e a resistência do Estado liberal, cioso da sua autonomia e dos mecanismos de auto-controle que se derivam da separação de poderes. A experiência sandinista, na Nicarágua, que ensaiou esse sistema misto, não foi mais do que um regime de transição, imposto pela peculiar correlação de forças em que ela se desenvolvia, sobretudo no plano internacional, e não a impediu de fracassar também.
A análise das experiências políticas derivadas de processos revolucionários, assim como os acontecimentos que vive o mundo socialista hoje, devem ser motivo de reflexão para a luta democrática do povo brasileiro, ressalvadas as diferenças. Do mesmo modo, o processo histórico da democracia liberal burguesa é matéria da maior relevância para o desenho de novos caminhos, entre nós. Sua maior lição é mostrar que é possível às massas realizar conquistas democráticas significativas dentro do regime liberal, as quais são ao mesmo tempo ampliação do campo de ação das massas e escola para o exercício pleno da democracia, cuja concretização transcende já o plano do regime liberal. Essas conquistas, assim como seu impacto sobre a ideologia burguesa, que a leva a avançar no sentido das garantias e liberdades individuais, representam um patrimônio de que não se pode abrir mão.
Por isso, os mecanismos de democracia direta, de vigilância cidadã e de participação popular, presentes na atual Constituição, são o melhor instrumento de que já dispôs o povo trabalhador ao longo de nossa história para construir uma ordem política mais favorável aos seus interesses. Tudo está em não permitir que essa possibilidade fique no papel ou que, no processo real de institucionalização que se abre agora, sobrevenham deformações e mutilações do texto aprovado. É a continuação e o aprofundamento da luta democrática que vem travando o povo brasileiro há mais de uma década que farão com que a forma constitucional esboçada em 1988 adquira contornos definidos e proporcione conteúdos correspondentes às esperanças que ela desperta.
Brasília, 1988
Uma colaboração do |
Inclusão | 24/12/2012 |