Sobre a Autoridade

Friedrich Engels

Março de 1873


Escrito: entre outubro de 1872 e março de 1873.

Primeira publicação: em dezembro de 1873 no Almanacco Repubblicano para 1874.

Fonte: Obras Escolhidas de Marx e Engels, volume 2, páginas 185-189, Rio de Janeiro: Editora Vitória, 1961.

Tradução: Almir Matos, do espanhol.

Revisão ortográfica e HTML: Lucas Schweppenstette.


Capa das Obras Escolhidas

Alguns socialistas empreenderam ultimamente uma verdadeira cruzada contra o que chamam princípio da autoridade. Basta que se lhes diga que tal ou qual ato é autoritário para que o condenem. A tal ponto se abusa desse método sumário de proceder que não há outro remédio senão examinar a questão um pouco mais de perto. Autoridade, no sentido de que se trata, quer dizer: imposição da vontade de outrem à nossa vontade; por outro lado, autoridade pressupõe subordinação. Pois bem: por pior que soem estas duas palavras e por mais desagradável que seja para a parte subordinada a relação que elas representam, a questão está em saber se existe meio de prescindir dela, se — dadas as condições atuais da sociedade — podemos criar outro regime social em que essa autoridade já não seja necessária e no qual, portanto, deva desaparecer. Examinando as condições econômicas, industriais e agrícolas, que constituem a base da atual sociedade burguesa, concluímos que elas tendem a deslocar cada vez mais a ação isolada pela ação combinada dos indivíduos. A indústria moderna, com grandes fábricas e oficinas, nas quais centenas de operários vigiam a marcha das máquinas complexas movidas a vapor, veio ocupar o lugar do produtor isolado; as carruagens e os carros para grandes distâncias foram substituídos pelo trem, assim como as pequenas escunas e faluas o foram pelos barcos a vapor. A própria agricultura vai gradualmente caindo sob o domínio da máquina e do vapor, que substituem, lenta mas inexoravelmente, os pequenos proprietários por grandes capitalistas que, com a ajuda de operários assalariados, cultivam grandes extensões de terra. A ação coordenada, a complexidade dos processos, subordinados uns aos outros, desloca em toda parte a ação independente dos indivíduos. E quem diz ação coordenada diz organização. E pode-se conceber organização sem autoridade?

Suponhamos que uma revolução social houvesse derrubado os capitalistas, cuja autoridade dirige presentemente a produção e a circulação da riqueza. Admitamos - para nos colocarmos inteiramente no ponto de vista dos anti-autoritários - que a terra e os instrumentos de trabalho converteram-se em propriedade coletiva dos operários que os utilizam. Teria desaparecido a autoridade, ou não teria senão mudado de forma? Vejamos.

Tomemos, a título de exemplo, uma fábrica de fios de algodão. O algodão, antes de converter-se em fio, tem que passar, pelo menos, por seis operações sucessivas executadas, em sua maior parte, em diferentes locais. Além disso, para manter as máquinas em movimento, precisa-se de um engenheiro que controle a máquina a vapor, mecânicos para as reparações diárias e, ademais, numerosos empregados destinados a transportar os produtos de um lugar para outro, etc. Todos esses operários, homens, mulheres e crianças, são obrigados a começar e a terminar o seu trabalho na hora fixada pela autoridade do vapor, que zomba da autonomia individual. Portanto, o que é necessário, antes de tudo, é que os operários se ponham de acordo quanto às horas de trabalho; a esse horário, uma vez fixado, submetem-se todos, sem nenhuma exceção. Depois, em cada lugar e a cada instante, surgem problemas de detalhe sobre o modo de produção, sobre a distribuição dos materiais, etc, problemas que têm de ser resolvidos imediatamente, sob pena de parar logo toda a produção. Quer se resolvam pela decisão de um delegado posto à frente de cada ramo da produção, quer pelo voto da maioria, se isso fosse possível, a vontade de alguém terá sempre que estar subordinada; isto é, as questões serão resolvidas autoritariamente. O mecanismo automático de uma grande fábrica é muito mais tirânico do que jamais foram os pequenos capitalistas que empregam operários. Na porta dessas fábricas poder-se-ia escrever, ao menos do que se refere ao período de trabalho: Lasciate ogni autonomia, voi che entrate!(1) Se o homem, com a ciência e o gênio inventivo, submete as forças da natureza, estas se vingam dele, submetendo-o, enquanto as emprega, a um verdadeiro despotismo, independentemente de toda organização social. Querer abolir a autoridade na grande indústria é querer abolir a própria indústria, é querer destruir as fábricas de fio a vapor para voltar à roca.

Tomemos, para dar outro exemplo, uma ferrovia. Também aqui é absolutamente necessária a cooperação de uma infinidade de indivíduos, cooperação que deve realizar-se com toda exatidão a fim de que não se verifiquem desastres. Também aqui, a primeira condição para que a empresa marche é uma vontade dominante que remova todas as questões secundárias. Essa vontade pode ser representada por um só delegado ou por um comitê encarregado de executar as decisões de uma maioria de interessados. Tanto em um como em outro caso existe uma autoridade bem evidente. Mais ainda: que se passaria com o primeiro trem que partisse se fosse abolida a autoridade dos empregados da ferrovia sobre os senhores viajantes?

Onde mais ressalta, porém, a necessidade da autoridade, e de uma autoridade imperiosa, é num barco em alto mar. Ali, no momento de perigo, a vida de cada um depende da obediência instantânea e absoluta de todos à vontade de um só.

Quando apresentei semelhantes argumentos aos mais furiosos anti-autoritários não souberam eles responder-me senão isto: “Ah! Isso é verdade, mas aqui não se trata de que nós demos ao delegado uma autoridade, trata-se de um encargo!” Creem estes senhores que modificam a coisa modificando-lhe o nome. Eis aí como zombam do mundo esses profundos pensadores.

Vimos, pois, que de um lado certa autoridade, delegada de que modo for, e de outra parte certa subordinação são coisas que, independentemente, de toda organização social, se nos impõe com as condições materiais nas quais produzimos e fazemos circular os produtos.

Vimos, ademais, que as condições materiais de produção e de circulação estendem-se inevitavelmente com a grande indústria, e tendem cada vez mais a ampliar o campo dessa autoridade. É absurdo, portanto, falar do princípio de autoridade como de um princípio absolutamente mau e do princípio de autonomia como de um princípio absolutamente bom. A autoridade e a autonomia são coisas relativas, cujas esferas variam nas diferentes fases do desenvolvimento social. Se os autonomistas se limitassem a dizer que a organização social do futuro restringirá a autoridade até o limite estrito em que as condições da produção a tornem inevitável, poderíamos entender-nos; mas, longe disso, permanecem cegos para todos os fatos que tornam a coisa necessária e arremetem furiosamente contra a palavra.

Por que os anti-autoritários não se limitam a clamar contra a autoridade política, contra o Estado? Todos os socialistas estão de acordo em que o Estado político, e com ele a autoridade política, desaparecerão como consequência da próxima revolução social, isto é, do fato de que as funções públicas perderão seu caráter político, passando a ser simples funções administrativas, destinadas a zelar pelos verdadeiros interesses sociais. Mas os anti-autoritários exigem que o Estado político autoritário seja abolido de um golpe, mesmo antes de terem sido destruídas as condições sociais que o fizeram nascer. Exigem que o primeiro ato da revolução social seja a abolição da autoridade. Será que esses senhores jamais viram uma revolução? Uma revolução é, indiscutivelmente, a coisa mais autoritária que existe; é o ato através do qual uma parte da população impõe sua vontade à outra parte por meio de fuzis, baionetas e canhões, meios autoritários desde que existam; e o partido vitorioso, se não quiser ter lutado em vão, tem que manter esse domínio pelo terror que as suas armas inspiram aos reacionários. A Comuna de Paris teria por acaso durado um só dia se não fosse empregada essa autoridade do povo armado frente aos burgueses? Não podemos, ao contrário, criticá-la por não se ter servido bastante dela?

Portanto, uma das duas: ou os anti-autoritários não sabem o que dizem, e nesse caso não fazem senão semear a confusão; ou sabem, e nesse caso traem o movimento do proletariado. Num e noutro caso, servem à reação.