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Primeira Edição: Resenha publicada por George Novack em fevereiro de 1938 no periódico The New International por ocasião da publicação de The Civil War in the United States (International Publishers), coleção dos artigos de Marx e Engels publicados entre 1861 e 1862 no New York Daily Tribune e no Die Presse (Viena) e das correspondências trocadas por eles entre 1861 e 1866. O livro foi editado por Richard Enmale [Dale Zysman] em 1937.
Tradução: Kamil Ourives Cruz a partir da versão disponível em https://www.marxists.org/archive/novack/1938/02/01.htm
HTML: Fernando Araújo.
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Engels chamou a Guerra Civil dos Estados Unidos de "a primeira grande guerra da história contemporânea". Marx mais tarde a saudou como "o maior acontecimento da época". Hoje, quando o século XIX ficou para trás e o poderio burguês que emergiu da Guerra Civil domina o mundo, podemos perceber a magnitude colossal do conflito muito melhor do que eles. A Segunda Revolução Americana se destaca como o ponto de inflexão decisivo da história do século XIX.
Mais valiosas, portanto, são as avaliações desses dois grandes líderes da classe trabalhadora sobre a Guerra Civil nos Estados Unidos enquanto ela ainda estava em curso, agora totalmente disponibilizadas pela primeira vez em inglês. Esses escritos consistem em sete artigos escritos para o New York Daily Tribune e trinta e cinco para o Vienna Presse(1) em 1861 e 1862, juntamente com sessenta e um excertos da correspondência de Marx e Engels entre 1861 e 1866. O editor também anexou duas cartas escritas por Marx em nome da Primeira Internacional: uma para o Presidente Lincoln e a outra para o Presidente Johnson.
Ao recorrer a esses escritos pela primeira vez, este leitor teve três impressões imediatas. Primeiro, a permanente qualidade desses artigos escritos há tantos anos. Quão pouco desbotados eles estão pela passagem do tempo! Depois, o conhecimento incrivelmente íntimo da história americana possuído por Marx e Engels, o que iria de longe dissipar o tolo preconceito de que esses europeus não estavam familiarizados com as condições peculiares dos Estados Unidos. Finalmente, a precisão de seus comentários mais casuais sobre personalidades e eventos juntamente com a percepção notável de suas observações. Mais uma vez vemos que inesgotável vitalidade e poder profético há na interpretação materialista da história descoberta por estes grandes pensadores, que lhes permitiu mergulhar profundamente sob a superfície ondulante dos acontecimentos e compreender as formações subjacentes e as forças motrizes da história em curso.
Essa genialidade brilha na seguinte citação do primeiro artigo, que resume em cinco frases sucintas os sessenta anos da política americana antes da Guerra Civil:
O abuso progressivo da União pelos escravistas, trabalhando por meio de sua aliança com a ala norte do Partido Democrata, é, por assim dizer, a fórmula geral da história dos Estados Unidos desde o começo deste século. Os sucessivos acordos marcam os sucessivos graus da usurpação pela qual a União se transformava cada vez mais no escravo do escravocrata. Cada um desses acordos denota um novo ganho do Sul e uma nova concessão do Norte. Ao mesmo tempo, nenhuma das vitórias sucessivas do Sul foi conseguida senão depois de uma acirrada disputa com uma força antagônica no Norte, aparecendo sob diferentes nomes partidários com diferentes palavras de ordem e sob diferentes cores. Se o resultado final e positivo de cada combate contou a favor do Sul, o observador atento da história não poderia deixar de ver que cada novo avanço da potência escravocrata era um passo à frente para sua derrocada final. (Marx, “The American Question in England”, New York Daily Tribune, 11 de outubro de 1861.)
A ascensão e queda do poder escravista é o maior exemplo da dialética na história americana. Os senhores de escravos tinham de ser elevados às alturas antes de serem jogados ao chão e aniquilados para sempre na Guerra Civil, um precedente histórico que é bom ter em mente quando a reação mundial em desenvolvimento parece estar arrastando tudo diante dela.
Os dois primeiros artigos da série elaborada para o Vienna Presse, escritos em resposta aos argumentos difundidos pelos simpatizantes do Sul na Inglaterra, são as partes mais substanciais desta coleção. Os defensores do regime escravocrata defendiam, em primeiro lugar, que a guerra entre o Norte e o Sul não passava de uma disputa tarifária, em segundo, que era travada pelo Norte contra o Sul para manter a União à força e, em terceiro, que a questão da escravidão nada tinha a ver com isso.
Marx facilmente destrói o primeiro argumento com cinco bem citados fatos em contrário. Em resposta ao segundo, ele destaca que a guerra emanou não do Norte, mas do Sul. A Guerra Civil originou-se como uma rebelião da oligarquia escravocrata contra o governo Republicano. Assim como o bombardeio a Fort Sumter começou a guerra, a eleição de Lincoln deu o sinal para a secessão. A vitória de Lincoln foi possível graças ao racha entre as alas norte e sul do Partido Democrata e ao crescimento do Partido Republicano no novo Noroeste. A chave para a secessão devia, portanto, ser encontrada no crescimento explosivo do Noroeste. Ao dividir as fileiras dos Democratas e apoiar o candidato Republicano, os estados do Noroeste alteraram a correlação de forças que havia permitido aos escravocratas governarem a República por seis décadas e, desse modo, tornou a separação necessária e inevitável.
Com o princípio de que qualquer extensão futura do território escravista devia ser proibida por lei, os Republicanos atacaram o domínio escravocrata em sua raiz. Um estrito confinamento da escravidão dentro de seus antigos limites conduziria necessariamente, de acordo com as leis da economia, à sua supressão gradual; levaria, na esfera política, ao aniquilamento da hegemonia que os estados escravistas exerciam por meio do Senado e, finalmente, exporia a oligarquia escravista, dentro de seus próprios estados, às ameaças dos "brancos pobres". A vitória eleitoral dos Republicanos levaria consequentemente à luta aberta entre o Norte e o Sul.
A conquista do poder pôs um laço nas mãos da burguesia Republicana com o qual poderiam apertar o tanto quanto quisessem o pescoço dos escravocratas até que conseguissem estrangulá-los. Tendo perdido o controle do governo contra seu adversário e confrontado com a perspectiva de uma morte lenta, os escravocratas decidiram lutar por sua liberdade – uma liberdade para escravizar os outros!
A disputa política que resultou em guerra civil nada mais foi do que a expressão de profundos antagonismos econômicos entre os estados escravistas e os estados livres. Segundo Marx, o mais importante deles foi a luta pela posse dos territórios necessários à expansão de seus respectivos sistemas de produção. Em uma frase notável, Marx afirma que “a disputa territorial que inaugurou esta terrível epopeia era decidir se o solo virgem de vastas extensões de terra deveria ser entregue ao trabalho do imigrante ou ser prostituído para o traste do senhor de escravos”. As terras a oeste eram a rocha onde o navio da União havia colidido.
Para aqueles que descreviam a rebelião escravista como uma guerra defensiva e, portanto, uma guerra justa, Marx respondeu que foi exatamente o oposto. A dissolução da União e a formação da Confederação foram apenas os primeiros passos no programa dos escravocratas. Após consolidar o seu poder, a escravocracia deveria inevitavelmente se esforçar para conquistar o Norte e estender seu domínio sobre os trópicos, onde o algodão poderia ser cultivado. “O Sul não era um país, mas um grito de guerra”; a guerra da Confederação é “uma guerra de conquista pela extensão e perpetuação da escravidão”(2). Os senhores de escravos pretendiam reorganizar a União sobre as bases da escravidão. Isso implicaria a subjugação da América do Norte, a anulação das instituições livres dos estados do Norte e a perpetuação de um método de produção bárbaro e obsoleto às custas de uma ordem econômica mais elevada. O triunfo do Sul atrasado sobre o Norte avançado traria um golpe irreparável ao progresso humano.
Para aqueles que argumentavam que a escravidão não tinha relação alguma com a Guerra Civil porque os Republicanos temiam erguer a bandeira da emancipação no início do conflito, Marx assinalou que a própria Confederação proclamou a fundação de uma república, pela primeira vez na história recente, tendo a escravidão como seu princípio inquestionável. Não apenas o movimento de secessão, mas a guerra em si foi, em última análise, baseada na questão da escravidão:
Não no sentido de se os escravos dentro dos estados escravistas existentes seriam emancipados ou não (embora este assunto também deva, mais cedo ou mais tarde, ser resolvido), mas se vinte milhões de homens do Norte deveriam se subordinar ainda mais a uma oligarquia de trezentos mil senhores de escravos; se os vastos territórios da República deveriam ser áreas de plantio para estados livres ou destinados para a escravidão; finalmente, se a União deveria assumir a defesa da escravidão no México, na América Central e na América do Sul como um instrumento de política nacional.
Assim, Marx prossegue do político ao econômico e finalmente ao núcleo social da Guerra Civil. Com habilidade cirúrgica, ele examina cada vez mais até alcançar o coração do conflito. “A luta atual entre o Norte e o Sul”, conclui ele, “não é nada mais do que uma luta entre dois sistemas sociais: entre o sistema de escravidão e o sistema de trabalho livre. O conflito teve início porque os dois sistemas não podem mais viver pacificamente lado a lado no continente norte-americano. Ele só pode terminar com a vitória de um sistema ou de outro”. Se essa conclusão nos parece elementar hoje em dia, assim o é apenas porque a história a confirmou completamente. Mas basta alguém comparar as palavras de Marx no início da Guerra Civil com os escritos de outros políticos do período para notar como eram proféticas.
Em conexão a este relato admirável das causas da guerra, Marx dá destaque à crucial importância política, econômica e militar dos estados fronteiriços. Esses Estados, os quais não eram nem escravos nem livres, eram, por um lado, um espinho para os sulistas e, por outro, o setor mais fraco do Norte. O governo Republicano estava voltado a uma política fraca, covarde e conciliatória de evitar a guerra em busca do apoio destes aliados ambíguos e apenas se livrou de sua influência limitadora quando a guerra estava a metade do fim.
Marx e Engels acompanharam os aspectos militares do conflito com grande atenção. “O General” [Engels], especialmente, estava absorvido pelas táticas e estratégias das forças em disputa. Ele estava, com justiça, impaciente com as políticas fabianas(3) de McClellan e seu “plano anaconda” de cercar, constringir e esmagar o Sul, defendendo, em vez disso, um golpe audaz e agudo lançado no meio daquela região. Assim, Engels antecipou, em 1862, a marcha decisiva de Sherman pela Geórgia dois anos depois. Irritado pelos múltiplos erros e pelo desinteresse dos generais da União, bem como pela relutância da burguesia Republicana em usar métodos revolucionários para conduzir a guerra, Engels, em certo momento, perdeu a esperança de uma vitória do Norte. Mas Marx, atento aos poderes latentes imensamente superiores do Norte e nas fraquezas inerentes do Sul, repreendeu-o por ser "muito influenciado pelo aspecto militar das coisas".
A maior parte destes artigos trata de vários aspectos internacionais da Guerra Civil, dentre eles a disputa diplomática das grandes potências europeias, lembrando-nos assim da atual Guerra Civil Espanhola, bem como das intrigas de Napoleão, o Pequeno, nas chancelarias da Europa e suas aventuras no México. Marx e Engels estavam atentos aos eventos internacionais como correspondentes estrangeiros, já que viviam na Inglaterra, mas acima de tudo como revolucionários proletários internacionalistas. Marx manteve um atento acompanhamento sobre os esforços para envolver a Inglaterra em uma guerra contra a União e expôs os fatores que mantinham o governo de Palmerston em cheque: a crescente dependência da Inglaterra dos alimentos americanos, a condição superior dos Estados Unidos para a guerra, a rivalidade entre os Whigs e os Tories no gabinete de coalizão e, por último mas não menos importante, o medo do povo. Marx desempenhou um papel fundamental na frustração dos planos dos falcões da guerra ao mobilizar os trabalhadores ingleses em enormes encontros públicos de protesto contra os membros da elite inglesa simpatizantes do Sul.
Esses escritos diversos não constituem um tratamento abrangente ou definitivo da Guerra Civil e a revolução entrelaçada a ela. Marx e Engels teriam indubitavelmente, à luz dos desenvolvimentos subsequentes, revisado e elaborado não poucos dos julgamentos que expressaram à época. Os últimos extratos de sua correspondência mostram que estavam alterando sua posição inicial sobre Johnson. Aqui estão alguns pontos que exigem correção ou amplificação. Ao se concentrarem nas causas mais imediatas da Guerra Civil, Marx e Engels não se aprofundam no contexto econômico geral do conflito. Sua pesquisa precisa ser complementada com uma descrição do amadurecimento da crise no sistema escravista e da ascensão impetuosa do capitalismo do Norte, fenômenos que proporcionaram as bases econômicas da Guerra Civil.
Marx errou ao atribuir a remoção de Frémont exclusivamente a intrigas políticas. Este general Republicano foi pego em flagrante delito. Sua esposa aceitou presentes caros de empreiteiros do exército, enquanto o Departamento do Oeste, sob seu comando, era um paraíso de corruptos. Em um acordo, Frémont comprou vinte e cinco mil mosquetes austríacos inúteis por US$166.000,00; em outro, financiado pelo J.P. Morgan, ele comprou, por US$22,00 a unidade, armas danificadas que o próprio Departamento de Guerra havia vendido ilegalmente alguns meses antes por US$3,50 cada! E a Comissão de Investigação da Câmara descobriu casos ainda piores de corrupção. Possivelmente Marx tenha se familiarizado com tais fatos quando estudou os relatórios oficiais. Isso explicaria sua falha em retornar ao assunto, como prometera.
Do nosso ponto de vista, a principal carência nesses escritos é a ausência de distinção entre as diferentes e potencialmente antagônicas forças de classe aliadas no lado da União. Em particular, pouca ênfase é dada à especial posição política, ao programa, aos objetivos e aos interesses da grande burguesia Republicana que chefiava o Estado e liderava o exército. Isso não foi acidental. Marx e Engels enfatizaram as linhas gerais e as principais questões do momento e deixaram mais ou menos de lado, para consideração futura, as forças e os problemas que espreitavam em segundo plano e que vieram à tona em um estágio posterior do conflito.
Algumas palavras devem ser ditas sobre a introdução do editor. Ela está claramente manchada com o stalinismo. Este substituto ao marxismo é, como certos substitutos à maionese, criado pela omissão ou adulteração dos ingredientes principais. O Sr. Enmale(4) gostaria que acreditássemos que, após a Guerra Civil, surgiu um governo verdadeiramente democrático nos Estados Unidos:
“Em sua fase da Guerra Civil, a revolução aboliu a escravidão e destruiu a antiga plantocracia”, observa Enmale. “Ao mesmo tempo, assegurou a continuação da democracia, da liberdade e do progresso, pondo fim ao domínio de uma oligarquia, evitando a supressão das liberdades civis no interesse da escravidão, e abrindo caminho para o movimento progressista dos trabalhadores americanos”.
Como um Marx irado teria lançado seus raios jupiterianos em um democrata vulgar que proferisse frases tão enganosas - e em seu nome! A Guerra Civil pôs fim a uma oligarquia e marcou o início de outra, que o próprio Marx caracterizou, numa carta posterior a Engels, como “a oligarquia associada do capital”, que por sua vez se tornou o baluarte da reação, suprimiu as liberdades civis e deu cabo a todos os esforços para restringir o avanço dos trabalhadores americanos. Não é impossível que o Sr. Enmale desconheça esta carta, escrita por ocasião da sangrenta repressão das grandes greves ferroviárias de 1877 pelas tropas federais, já que foi omitida da edição em inglês de Cartas publicada pela mesma editora. Mas a ignorância de Enmale sobre as posições de Marx não minimiza sua falsificação grosseira da história americana desde a Guerra Civil. Para ser justo com o editor, deve-se dizer que suas notas e seu índice biográfico são precisos e muito úteis.
A Guerra Civil abriu o caminho para o triunfo final da revolução democrático-burguesa nos Estados Unidos. Durante a luta até a morte com o sistema escravocrata, Marx e Engels, na sua capacidade de líderes revolucionários dos trabalhadores, corretamente salientaram o significado positivo, democrático, progressista e revolucionário da luta travada pela República burguesa. Eles basearam sua ação política prática no fato de que a luta da classe trabalhadora por sua própria emancipação seria fortalecida pela vitória do Norte e jogada para trás pelo triunfo da Confederação. Ao mesmo tempo, eles nunca proclamaram sua confiança política na burguesia Republicana, criticaram livremente sua forma de conduzir a guerra e mantiveram sua independência em relação a seus aliados temporários.
Nos anos que se passaram desde a conquista do poder, o regime capitalista tornou-se a base da reação nos Estados Unidos e em todo o mundo. Ao enaltecer as realizações da Segunda Revolução Americana, os marxistas contemporâneos estão, antes de tudo, obrigados a expor o negativo lado burguês e reacionário de seu caráter que o desenvolvimento histórico lançou à frente. Desta forma, eles permanecerão fiéis não à letra morta, mas ao espírito vivo do marxismo corporificado nessas páginas preciosas.
Notas de rodapé:
(1) Jornal Die Presse de Viena. (retornar ao texto)
(2) Sobre o interesse dos Confederados junto à Amazônia, ver Gerald Horne: O Sul mais distante (Companhia das Letras, 2010). (retornar ao texto)
(3) Referência à Sociedade Fabiana, movimento reformista inglês fundado em 1884 e caracterizado por suas teses não revolucionárias e por suas ações conciliatórias e hesitantes. Ingressam no Partido Trabalhista em 1900. (retornar ao texto)
(4) Pseudônimo utilizado por Dale Zysman. (retornar ao texto)
Inclusão | 29/05/2019 |