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Primeira Edição: Folha de SP
Fonte: http://resistir.info
HTML: Fernando Araújo.
A avaliação de determinado período histórico somente deve ser feita pelo exame das configurações que tomam períodos que lhe sucedem, comparando-se invariabilidades e mudanças marcantes. Ainda que os contemporâneos não possam nomear com segurança a marca dos períodos, no calor da hora, enquanto permanecem em ação os elementos definidores, devem tentá-lo, até porque isso faz parte da política.
O que definirá, para o futuro, os dois mandatos de FHC na Presidência e mais, desde seu exercício como ministro da Fazenda de Itamar Franco? Terá havido uma "era FHC", como os mais áulicos já trombeteavam desde os dias iniciais do primeiro mandato, pendurados apenas no fato de que chegava à Presidência um cientista social prestigiado nacional e internacionalmente? A honra de sermos governados por um Sartre, como declarou uma áulica do primeiro momento?
Avaliações são de variada índole. A mais frequente consiste no exame da performance econômica e das realizações materiais, o que não deixa de ser importante e talvez decisivo. Vista por esse ângulo, a surpresa da Presidência de FHC é que ela é de espantosa mediocridade. A Folha publicou nestes dias avaliações setoriais, das quais resultou a confirmação de que o período FHC não sobressai quando comparado a outros períodos presidenciais. Algumas "melhoras" são menos o resultado de incisiva ação do governo que se finda e mais a projeção de tendências históricas de longo prazo. Como nos casos da saúde e da educação, por exemplo, especificamente com a queda da mortalidade infantil e da taxa de analfabetismo. Mesmo nesses casos, no período FHC não se acelerou a melhoria de seus indicadores; pelo contrário, procedimentos metodológicos que medem incrementos marginais dizem que houve desaceleração da melhoria.
Breve estudo de Reynaldo Gonçalves, professor titular de Economia Internacional da Universidade do Brasil- UFRJ, que circulou na internet meses atrás, estabeleceu uma classificação dos principais indicadores econômicos, oficiais e usualmente utilizados, que mostrava a grande surpresa de, além de ser medíocre, o período FHC ter sido o pior na história republicana desde Prudente de Moraes. É quase inacreditável!
Em indicadores como o da inflação, o governo FHC ganha de lavada de todos os outros, empatando com o de Campos Salles, com quem é frequentemente comparado, sendo Pedro Malan seu Joaquim Murtinho. Importante é ressaltar que Vargas também não se saiu nada mal no capítulo da estabilidade monetária, mas seu período histórico é justamente reconhecido como tendo colocado a questão social, com os direitos trabalhistas, no centro da nova dinâmica da economia e da sociedade brasileiras.
Nos outros indicadores, crescimento total e per capita do PIB, vulnerabilidade externa medida pelo déficit da balança comercial, vulnerabilidade financeira medida pela dívida interna sobre o PIB e um indicador criado por Gonçalves, que ele chamou, quem sabe em irônica homenagem a FHC, de "índice de dependência", que mede a distância do PIB brasileiro em relação ao dos EUA, o período FHC perde de goleada para outros. Para Vargas, a quem FHC queria varrer da história brasileira, e para JK, com quem queria ser comparado no segundo mandato, a derrota do período FHC é humilhante.
O reconhecimento futuro de uma "era FHC" dependerá inicialmente do desempenho de seu sucessor, Luiz Inácio Lula da Silva. Mas, desde já, há que reconhecer que FHC fincou uma estaca forte de não-retorno, que desde logo balizará os desempenhos de seus sucessores.
Para além do desastre econômico que está à vista de todos, que ajudou a eleger alguém inteiramente imprevisto no esquema do Reich de 20 anos do sinistro Sérgio Motta, o que há de não-retorno é a consolidação, visto que este é um processo de "longue haleine", de uma sociabilidade do êxito a qualquer preço, que, nas condições de miséria, se transforma em violência no grosso, a falência do Estado e, a granel, as gangues e a criminalidade soltas, que aliás são faces da mesma moeda, são o lado perverso e sinistro da modernidade que levou tanto tempo para ser hegemônica no Brasil. Uma espécie de "revolução burguesa lúmpen". A contrapelo da reconhecida pavonice do personagem, que gostaria de ser lembrado como o arauto de uma modernidade civilizadora.
Suas reformas uma pirataria semântica , a violenta privatização de poderosos recursos estatais, que abalou as bases da propriedade burguesa e instaurou uma nova luta no interior dos grandes grupos econômicos, liquidando de vez o espaço privativo de empresas e grupos tradicionais e desqualificando as oposições, no que foi ajudado pela violenta erosão do emprego formal, levou a uma implosão das regras de relações entre classes, interesses e política.
José Serra é inegavelmente um mau ator, mas sua derrota deveu-se em parte à indeterminação da política que brotou dos oito anos de FHC, que o declarado oposicionismo de Lula e dos outros candidatos recolheu como cacos dispersos da implosão da política.
O que explica que a porcentagem de votos do PT em 20 anos, que ficava sempre nos 30%, tenha saltado para o dobro no segundo turno? Os mais otimistas dirão que o país queria mudar. Mas em que direção?
O não-retorno tem consequências sérias para o novo período que se abre. Em primeiro lugar, está o fato, visível, de que a política econômica do presidente Lula está grandemente determinada pela herança de FHC. Mas o mais importante é que seus opositores também estão imersos no mesmo "ethos", o que dificulta enormemente a percepção de caminhos distintos dos de FHC. Ficou evidente a enorme similitude formal entre os programas de todos os candidatos, incluindo-se o governista Serra.
No final, o que sobrou da indeterminação da política que resultou do turbilhão promovido por FHC, nas vagas da globalização? Ele descarta a permanência imediata de qualquer forma, vale dizer a coagulação de experiências a partir das quais se projeta o futuro. Essa não-forma está presente seja na flutuação diária do câmbio, seja na insegurança que faz o risco-Brasil dançar uma dança de são Guido, seja na ansiedade dos especuladores, seja na incapacidade dos movimentos sociais fixarem uma agenda de futuro que tenha por base o passado, mesmo que seja o imediatamente anterior, que torna as centrais sindicais quase irrelevantes para um programa de defesa dos direitos do trabalho. Que faz com que Porto Alegre esteja permanentemente a ouvir o relato dos milhares de experiências alternativas, sem que a soma delas possa constituir-se em contra-agenda unitária e global.
A formação do governo Lula é caracteristicamente um tatear nas sombras da indeterminação da política. Como comprova a formação do ministério, tenta colocar em cada pasta um representante dos variados interesses, na ausência de uma hegemonia. Mas quem define esses interesses?
Até onde a biografia social dos indicados permite conclusões, os critérios de representatividade correm o risco de anacronismo, pois parecem basear-se no fato de pertencerem a setores econômicos, nas experiências anteriores em variados lugares da chamada sociedade civil. É um experimento novo: dificilmente se reconhece a formação de uma hegemonia pela agregação heterogênea de interesses, que não deve ser confundida com a agregação de interesses heterogêneos, pois estes o são sempre como resultado da pluralidade da sociedade.
A formação da hegemonia se faz a partir de um centro irradiador, que atrai outras forças e as integra ao projeto hegemônico. A formação do governo e das alianças de FHC teve este claro sinal: apesar de a imprensa ter proclamado anos seguidos que ele era refém de Antônio Carlos Magalhães, o que se dava era exatamente o contrário.
O eixo que surge anunciado pela formação do governo Lula é o que sobrou da vasta indeterminação. Entre a avenida Paulista e São Bernardo: uma política econômica ortodoxa, para não dizer tucana, e uma política social petista, Palocci-Meirelles e Fome Zero Ministérios Sociais. Das experiências imediatamente anteriores, restaram a continuidade da política econômica, o que não é nada inovador, e uma difusa definição do social, que exclui o trabalho.
Alguém poderia pensar que finalmente emerge a social-democracia no Brasil da soma do PSDB e do PT, uma espécie de "síntese Felipe Gonzalez", único exemplo na história de uma transição em direção ao welfare num país da periferia capitalista, ou da "semiperiferia", como Boaventura de Sousa Santos qualifica o especial estatuto da Espanha e de Portugal no capitalismo contemporâneo.
A FHC faltava o lastro sindicalista, que, aliás, se esmerou em detonar. A Lula sobra, com folga, esse aval. Mas, até onde declarações de formuladores da política de Lula podem identificar um programa, o que parece é que se pretende realizar o que FHC não conseguiu: 13º salário e férias sendo tratados como "penduricalhos" vão na direção contrária do welfare .
Na agenda da "transição" em direção a um pós- neoliberalismo, o programa para o trabalho somente comparece no registro do neodesenvolvimentismo. E o programa para a segurança social permanece em brumas, mas sendo sugerida uma versão suave do sistema de capitalização e a derrogação dos "privilégios" do funcionalismo público. Comprou-se o discurso neoliberal ou ele já estava introjetado?
O programa que ficou conhecido como neoliberal e, entre nós, tucano, enquanto sociabilidade, menos que ideologia, está de corpo inteiro no par Palocci-Meirelles, e até na definição do social, que não se apresenta como antagônico ao econômico, mas como sua correção. E nos conselhos que renomados articulistas vêm repetindo à exaustão: autonomia do Banco Central, corte nas despesas do governo, uso implacável da taxa de juros, "sensatez" na negociação da ALCA, eliminação de privilégios corporativos (leia-se derrogação dos direitos constitucionais do funcionalismo público).
Pedem a Lula que ele se distinga de FHC levando a cabo o que ele não pôde fazer. Aliás, é notável como figuras geralmente tidas como racionais, imparciais e não-ideológicas, acham mesmo que FHC queria errar! Desaparece toda a objetividade e, em seu lugar, surgem análises e avaliações de um voluntarismo espantoso.
O governo Lula ou ultrapassa a "era FHC" ou estará definitivamente classificado dentro dela e, no futuro, historiadores e sociólogos reconhecerão um longo período de hegemonia neoliberal que englobará FHC e seus sucessores por um tempo que, hoje, ainda não é previsível.
Ultrapassar quer dizer estabelecer novas formas de propriedade social, redistribuir renda com um vigor e uma velocidade que não permita ao sistema adaptar-se e antecipar-se às transformações. A radicalidade estará em um programa que leve ao infinito a proposta de uma renda societal, para além das reengenharias do trabalho e do neodesenvolvimentismo, já que o velho e bom emprego formal não voltará.
Ultrapassar quer dizer inscrever a miséria e a desigualdade definitivamente como obstáculos intransponíveis, em vez de acidentes de uma má política econômica, que somente poderão ser resolvidas pela reestruturação do sistema que as supere. Quaisquer outras "políticas sociais" poderão ser apenas funcionalizações da pobreza.
É preciso dizer isso em alto e bom som. Programas como o Fome Zero não têm essa qualidade. Devem ser feitos, pois, como nos ensinou Betinho, a fome não espera por reformas estruturais. Mas o que alavancou decisivamente a Europa ocidental no pós-guerra foi a decidida implementação da segurança social como "custo" do sistema, que somente seria ultrapassado pelo aumento da produtividade do trabalho. O programa Fome Zero, ao ser financiado pelo Orçamento, não se inscreve como "custo". É um bom começo, mas será insuficiente. Ultrapassar, por isso, significa colocar a fome como obstáculo, e não como piedosa contrição.
Ultrapassar quer dizer cruzar o umbral do socialismo, na edificação de uma sociabilidade anticompetitiva, de uma cultura universalizante da política. O socialismo só está escanteado do debate e da agenda quando pensado nas velhas fórmulas da aceleração das forças produtivas e da produção do proletariado. Mas se propõe por outros modos, que reinventam a herança clássica. O capitalismo contemporâneo, movido a ciência e tecnologia, tem-se antecipado como os melhores zagueiros do futebol. É preciso desbordá-lo nos pontos em que ele não pode antecipar-se.
A agenda de Lula pede essa radicalidade. Que está no amplo movimento de contestação, na enorme expectativa que se formou, mesmo na boa vontade dos que se oferecem para colaborar. Falta tentar dar-lhe forma, e a única forma universal até agora conhecida é aquela que parte de políticas públicas estatais. A questão não é a de uma abstrata condenação do estatal, tipicamente liberal, mas de seu controle popular. Alguns que hoje aconselham Lula a evitar toda "tentação" estatizante, que estigmatizam logo como "populista", foram os que na ditadura exerceram com a maior implacabilidade a coerção estatal para forçar o crescimento econômico.
"Nenhum escrúpulo, senhor presidente", disse um deles com a concordância de todos os presentes, frase pronunciada em célebre e celerada reunião em que se decidiu pelo AI-5, confirmada outra vez pelos "arquivos implacáveis" de Elio Gaspari. E ainda se diz que o Banco Central não faz crescimento econômico, quem o faz é o setor privado. Dá vontade de rir, mas o caso é de chorar!