O Problema da Terra e a Constituição de 1946

Luiz Carlos Prestes

17 de Junho de 1946


Primeira Edição: Discurso pronunciado na 86ª Sessão da Assembléia Nacional Constituinte.
Fonte: Luiz Carlos Prestes, Problemas Atuais da Democracia, pág. 363-414. Editorial Vitória, 1947, pág: 363-414.
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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O SR. PRESIDENTE — Tem a palavra o Senhor Carlos Prestes.

O SR. CARLOS PRESTES (Lê o seguinte discurso): — Sr. Presidente, Srs. Constituintes: votamos nós, da bancada do PCB, contra o Projeto de Constituição ora em debate. Assim procedendo, não deve, no entanto, ser aquele nosso gesto tomado no sentido de combate, de intransigência, de luta irreconciliável contra um inimigo ou um obstáculo que se pretenda derrubar. Nosso desejo nesta casa tem sido sincero no sentido da colaboração com todas as correntes e de luta permanente contra toda tendência exclusivista. Não tomamos jamais posição sistemática contra ninguém e se podemos ser anti alguma coisa, só será antifascistas. Lutamos, no entanto, por nossas idéias e defenderemos sempre o programa mínimo em o qual solicitamos os sufrágios da Nação e em razão do qual fomos certamente eleitos.

Mas se defendemos um programa, não pensamos de forma alguma impô-lo a quem quer que seja e aqui, nesta Casa, como alhures, havemos sempre de fazer política democrática, o que significa colaborar, buscar a linha média capaz de harmonizar todas as tendências em benefício da maioria da Nação, da solução progressista de seus problemas, de paz e de tranqüilidade pública.

Votamos contra o Projeto por ser no seu todo e na maioria de seus capítulos a negação daquilo por que prometemos lutar nesta Casa. Em declaração de voto já dissemos das razoes fundamentais de nossa atitude. O projeto no entanto, foi aprovado pelo plenário da Casa e aqui estamos para colaborar, para participar da tarefa de melhorá-lo na medida do possível, de espungí-lo em parte, ao menos, daquilo que se nos afigurar incompatível com a Carta Constitucional que reclama a Nação. Errar é dos homens, mas acreditamos, no predomínio da inteligência e na força dos argumentos, e aceitamos a premissa de que todos nós aqui estamos agindo de boa fé, dispostos a correr erros e a reformar nossas opiniões, se nos provarem serem prejudiciais ao nosso povo, à democracia, ao progresso do Brasil.

Não vamos insistir nas críticas já feitas desta tribuna por oradores ilustres, especialistas e mestres muitos deles em Direito Constitucional, sobre os defeitos gerais do Projeto. Estamos em geral de acordo com a crítica já feita sobre a extensão do Projeto, seus detalhes e minúcias desnecessários, a má distribuição da matéria, etc..

Pensamos, também, que a Constituição deve se limitar à afirmação de princípios fundamentais do regime que se adota e não entrar em detalhes mais próprios das leis ordinárias ou mesmo de regulamentos.

A grande extensão do Projeto não significa que trate de novos assuntos importantes, como chegaram a afirmar alguns de seus defensores. É extenso porque multiplica exceções, e inúmeras vezes se põe a limitar, senão a negar, direitos, preceitos e afirmações do próprio Projeto.

Não se diz nada de prático sobre a reforma agrária, sobre a maneira de acabar com os restos feudais na agricultura, sobre a necessidade do ensino gratuito, sobre a gratuidade indispensável da Justiça, sobre medidas práticas que assegurem o progresso do Brasil.

Concordamos também com aqueles que criticam a má distribuição das matérias com evidente falta de técnica na elaboração da lei. Um mesmo preceito apreciado em diversos artigos ou distribuído por capítulos diversos. Afirma-se aqui para logo se negar ou apreciar sobre novo aspecto o mesmo conceito mais adiante.

Quanto ao conteúdo, já dissemos o essencial em nossa declaração de voto. Prende-se exageradamente o Projeto a fórmulas políticas antiquadas, já condenadas pela nossa experiência política, como tentaremos provar ainda hoje no decorrer do meu discurso.

Os componentes de nossa bancada ao defender as emendas que apresentaremos hão de tratar sucessivamente de nossa principais objeções ao Projeto, especialmente no que toca aos direitos do cidadão, particularmente o de voto, à autonomia municipal, à organização da Justiça, especialmente a Eleitoral e Trabalhista, à separação do Estado da Igreja, ensino religioso, constituição da família, etc.

Mesmo o preâmbulo exige de nós reparos, já que constitui evidente coação, inútil e desnecessária obrigar ateus, que os há nesta Assembléia, a fazer afirmação em que não podem crer.

Nossas principais emendas, são relativas ao art. 150, para suprimir seus números I, II e III e parágrafo único, relativo ao voto. Ao art. 159, mandamos acrescentar o direito de asilo.

No art. 164, onde o confronto é favorável à Constituição 1934, quanto ao estabelecimento do direito de asilo, mandamos suprimir a parte final dos parágrafos 26 e 27, e totalmente o parágrafo 30. Mandamos acrescentar mais o ensino gratuito.

O Sr. Mario Brant — Os parágrafos 1.º 2º e 39, do art. 164 são quase comunistas.

O SR. CARLOS PRESTES — Não nos referimos aos primeiros parágrafos, mas aos de números 26 e 27 — cuja parte final, pedimos suprimir, e parágrafo 30, que desejamos também ser eliminado.

Quanto aos artigos 122 e 123, relativos a autonomia e organização dos territórios, apresentaremos modificações.

O artigo 27, que se refere ao número de deputados, mandamos suprimir os parágrafos.

Apresentamos também emenda ao Título concernente à organização dos poderes, a fim de ser suprimido o Senado, se bem que oferecemos substitutivo especial sobre o assunto, se hoje ainda houver tempo.

A justiça gratuita, eleita pelo povo, merecerá emenda de nossa parte, assim como a propósito do novo conceito de propriedade, visto como não é possível que, nos dias em que vivemos, continue o conceito de propriedade a ser obstáculo ao progresso do Brasil. Essa evolução, entretanto, deverá se processar dentro da lei e da Constituição.

Senhores, em discurso anterior, tive ocasião de tratar do programa do nosso partido, com que lutamos pela solução pacífica e não revolucionária dos graves problemas nacionais desta hora. Referimo-nos, então, à inflação e às suas conseqüências desastrosas sobre toda a economia nacional. Aí acentuamos que a própria inflação constitui por si só o sintoma de um organismo abalado, de um organismo doente.

Toda a nossa estrutura econômica que nos dias de hoje se estiola está a exigir reformas profundas, que tirem o Brasil da miséria, do atraso que diríamos, parodiando Lenine, ao se referir à Rússia tzarista de 1913 e 1914: «atraso progressivo em que marchamos».

Srs., o atraso de nosso povo, o atraso do Brasil é, se dúvida, dos maiores do mundo contemporâneo e permito-me citar alguns números de documentos de nosso Partido de Janeiro deste ano.

Dizíamos naquela época, buscando justamente as causa desse atraso, mas constatando previamente este atraso: (Lendo):

«Nosso atraso, dizíamos, se acentua cada vez mais tornando mais sérias as contradições que ameaçam fazer saltar toda a nossa economia nacional. Nossa indústria secundária, por exemplo...»
Quando digo indústrias secundárias, refiro-me às de tecido e calçados, as mais importantes de nossa pátria.
«... não pode crescer por falta de mercado interno, pela precariedade dos meios de transportes, pela debilidade de nossa indústria pesada, pela falta de energia barata, etc., A produção de energia elétrica no Brasil não passa de 65 Kw/h por habitante, segundo os últimos dados, enquanto nos Estados Unidos em 1938 já era de 1.160 Kw/h por habitante, isto é, quase 18 vezes maior. A de ferro gusa, 7 vezes maior; a de aço, 11 vezes maior; a de carvão, mais de cem vezes maior; e a de cimento, mais de 8 vezes maior. O nosso trabalhador, tecnicamente desarmado e enfermo no seu trabalho de sol a sol, mal consegue arrancar da terra uma quinquagésima parte do que obtém o camponês médio norte-americano. Esses são alguns índices apenas do nosso atraso, da gravidade crescente da situação da economia nacional que está a exigir um ritmo novo e maior na solução de problemas fundamentais se queremos evitar o caos, a guerra civil, a completa colonização do país».

Senhores, há patriotas sinceros que se deixam levar pelo entusiasmo e proclamam o desenvolvimento e o crescimento do progresso em nossa pátria. Nos últimos anos da ditadura, que nos dominou por 15 anos, se falava muito em progresso industrial. É falso, senhores. Como haver progresso industrial se não temos, na verdade, mercado para nossa indústria? Chegou-se mesmo a dizer, partindo de números relativos à exportação de tecidos, que o Brasil já era um país industrial. Não é admissível afirmação dessa natureza para quem conheça algo de economia; não há país industrial em que falte justamente a indústria pesada, a siderúrgica, a de energia carbonífera, petrolífera ou, pelo menos, de energia elétrica. Já vimos os números ridículos de quilowatts-hora por habitante do Brasil, em comparação com os países realmente avançados.

Nossa própria indústria de tecidos, a mais desenvolvida de todas, é ridícula, se a compararmos com as mais modernos. O tecelão norte-americano trabalha com 18 a 20 teares; o brasileiro, nas nossas míseras fábricas, trabalha no máximo, com dois ou três. E não faço referência à União Soviética, onde os operários especializados, em grupos de quatro, cuidam até de 160 teares.

O autor norte-americano Eng. Morris Llewellyn Cooke, que aqui esteve, a convite da Coordenação da Mobilização Econômica, publicou um livro — «Brazil on the march», onde, entre outras observações, alude justamente à nossa indústria de tecidos, para afirmar:

«O consumo per capita de produtos têxteis de algodão é muito baixo no Brasil, sendo mais ou menos um quarto do consumo per capita nos Estados Unidos. Além do fato de serem os salários industriais muito baixos, que já por si mesmos tendem a reduzir o consumo de todos os artigos manufaturados, é muito alto o preço dos produtos têxteis acabados, o que reduz ainda mais o consumo interno».

Este, o testemunho de um economista que realmente estudou e aprofundou-se na análise de nossa situação industrial.

Há poucos dias, Senhores, tivemos a decepção de ler, nos jornais desta capital, um pretenso memorial apresentado pelo General Von Der Beck, nos Estados Unidos. Não nos interessa no momento, saber se é ou não verídico o memorial, mas os números que contém são, sem dúvida, exatos. Pois bem, esses números colocam a nossa pátria em situação econômica muito inferior à da Argentina. O «Jornal do Comércio» de 15 deste mês, publicou a notícia, cujos dados são os seguintes: «Caminhões e automóveis, há na Argentina, 55% e, em todo o restante da América Latina, apenas 45%; Carne — a Argentina produz 56% e os demais países 44%; papel de impressão – o consumo, na Argentina, atinge mais de metade de todo o consumo do Continente Latino Americano, isto é, 55%». E outros números são citados nesse memorial, cujo objetivo é alcançar o apoio dos Estados Unidos para a construção de um arsenal naquela República.

Quero ainda ler palavras de pessoa insuspeita — porque não se trata de comunista — divulgadas também pelo «Jornal do Comércio», se não me equivoco, transcrevendo uma conferência do Sr. Armando Vidal. Dizia o conferencista:

«A muitas pessoas ingênuas que não estão habituadas a compulsar dados da produção dos grandes países industriais e do comércio internacional das grandes nações — não agradará falarmos que ainda nos encontramos numa fase de indústria incipiente ou, como disse recentemente o Sr. Roberto Simonsen, «a expansão industrial brasileira está apenas em seu início». Aqui nos dirigimos, porém, a pessoas que sabem que a produção do aço nos EE. UU. monta anualmente a 90 milhões de toneladas, devendo subir em 1942 a 100 milhões; no Império Britânico a 23 milhões, na Rússia a 20 milhões, etc. e que, assim, a futura usina de Volta Redonda com a capacidade de 300 mil toneladas de aço, é um modesto começo que será rapidamente ultrapassado». (Armando Vidal, conferência publicada no «Jornal do Comércio», de 1 de março de 1942).

Li estas considerações para acentuar nossa opinião, que afirmamos ser a única patriota, porque ser patriota não é mentir nem enganar-se a si mesmo a respeito de um progresso inexistente.

A verdade é que o Brasil chegou, nos dias de hoje, a constituir um dos países mais atrasados do mundo.

No entanto, quais as causas desse atraso?

Esta a atitude científica do patriota: buscar a causa. Muitos dos patriotas, em nosso país, anos seguidos, isso investigam. Fala-se de raça, de geografia, do clima, da densidade demográfica. Procura-se explicações para esse atraso, desde Euclides da Cunha com seu célebre livro dividido em dois capítulos — a Terra e o Homem — repetido depois pelos que lhe sucederam em obras publicitárias da mesma natureza, mas nenhum encontrando a razão científica, real, desse atraso.

Quanto à justificação racial, foi afastada há poucos anos debate público, porque Hitler, utilizando o racismo, deu a estas tendências para explicações de fenômenos sociais a marca definitiva do nazismo, da chantagem, da preocupação e de enganar o povo ocultando a verdadeira causa do atraso e da miséira.

A respeito ainda da geografia e do clima, muito se fala aqui em nossa Pátria. Não são poucos os nossos sociólogos e economistas, homens sinceros, que buscam a explicação simplista do nosso atraso no clima tropical, na situação desgraçada — dizem eles — de nossa geografia; explicação, no entanto, que a todos nós patriotas muito devia comover, pois, se a causa do nosso retardamento está na geografia, em nossa situação tropical, precisaríamos esperar um terremoto para alcançar o progresso que todos almejamos.

Nós, marxistas, porém, encontramos outros motivos. Quem no-lo diz é a ciência social, a única verdadeira para nós — o materialismo histórico, o materialismo dialético, o marxismo. É a ciência da evolução social que nos aponta, com exemplos, com a realidade dos próprios dias que atravessamos, que o adiantamento de cada povo está, sem dúvida, dependendo de um fator fundamental — as condições materiais de vida. São as relações de produção entre os homens que determinam realmente a etapa social de cada povo.

Senhores: sobre o assunto seria necessário estender-me, mas prefiro sintetizar tudo em páginas esclarecedoras do maior continuador de Marx nos dias que vivemos. Refiro-me, naturalmente, a Stalin, sucessor de Lenine, que enriqueceu o marxismo na época nova da construção do socialismo na União Soviética.

Aludindo às condições materiais de vida, procurando explicá-las aos operários nos termos mais simples diz Stalin: (Lê)

«Resta somente responder a esta pergunta: Que se entende, do ponto de vista do materialismo histórico, por «condições de vida material da sociedade», quais são as que determinam, em última instância, a fisionomia da sociedade, suas idéias, suas concepções, instituições políticas, etc.?

Quais são essas «condições de vida material da sociedade», quais são seus traços característicos?

É indubitável, que, neste conceito de «condições de vida material da sociedade», entra, antes de tudo, a natureza que rodeia a sociedade, o meio geográfico, que é uma das condições necessárias e constantes da vida material da sociedade e que, naturalmente, influi no desenvolvimento desta. Qual é o papel do meio geográfico no desenvolvimento da sociedade. Não será, por acaso, o meio geográfico o fator fundamental que determina a fisionomia da sociedade, o caráter do regime social dos homens, a transição de um regime para outro?

O materialismo histórico responde negativamente a essa pergunta.

O meio geográfico é, indiscutivelmente, uma das condições constantes e necessárias do desenvolvimento da sociedade e influi, indubitavelmente, nele, acelerando-o ou amortecendo-o. Mas essa influência não é determinante, uma vez que as transformações e o desenvolvimento da sociedade se operam com uma rapidez incomparavelmente maior do que as que afetam o meio geográfico. No transcurso de três mil anos, a Europa viu desaparecer três regimes sociais: o do comunismo primitivo, o da escravidão e o do feudalismo, e na parte oriental da Europa na URSS, feneceram quatro! Pois bem, durante esse tempo, as condições geográficas da Europa não sofreram mudança alguma, ou se sofreram, foitão leve que a geografia não julga que mereça sequer registrá-la. E compreende-se que seja assim. Para que o meio geográfico experimente modificações de certa importância, são precisos milhões de anos, enquanto em algumas centenas ou em um par de milhares de anos podem operar-se, inclusive mudanças da maior importância no regime social.

Dai se depreende que o meio geográfico não pode ser a causa fundamental, o fator determinante do desenvolvimento social, pois, como é que o que permanece quase invariável através de dezenas de milhares de anos vai poder ser a causa fundamental a que obedeça o desenvolvimento daquilo que no espaço de algumas centenas de anos, experimenta mudanças radicais?

Do mesmo modo, é indubitável que o crescimento da população, a maior ou menor densidade da população é um fator que também é parte do conceito das «condições da vida da sociedade», uma vez que entre essas condições materiais se conta, como elemento necessário, o homem e não poderia existir a materialidade da vida social sem um determinado mínimo de seres humanos. Não será, acaso, do desenvolvimento da população o fator cardial que determina o caráter do regime social em que os homens vivem?

O materialismo histórico também responde negativamente a essa pergunta.

É indiscutível que o crescimento da população influi no desenvolvimento da sociedade, facilitando ou entorpecendo esse desenvolvimento, mas não pode ser o fator cardial a que obedece, nem sua influência pode ter um caráter determinante quanto ao desenvolvimento social, uma vez que o crescimento da população por si só não nos oferece a chave para explicar por que um dado regime social é substituído precisamente por um determinado regime novo e não por qualquer outro, por que o regime do comunismo primitivo foi substituído precisamente pelo regime da escravatura, o regime escravagista pelo regime feudal e este pelo burguês, e não por quaisquer outros.

Se o crescimento da população fosse o fator determinante do desenvolvimento social, a uma maior densidade de população teria de corresponder forçosamente, na prática, um tipo proporcionalmente mais elevado do regime social. Mas, na realidade, isso não se verifica. A densidade da população da China é quatro vezes maior do que a dos Estados Unidos, e apesar disso, os Estados Unidos ocupam um lugar mais elevado do que a China no que se refere ao desenvolvimento social, pois enquanto na China continua imperando o regime semi-feudal, os Estados Unidos há muito tempo chegaram à fase culminante do desenvolvimento do capitalismo. A densidade da população da Bélgica é dezenove vezes maior do que a da URSS e, entretanto, a América do Norte ultrapassa a Bélgica no tocante ao seu desenvolvimento social, e a URSS leva-lhe de vantagem toda uma época histórica, pois enquanto na Bélgica impera o regime capitalista, a URSS já liquidou o capitalismo e instaurou o regime socialista.

Daí se depreende que o crescimento da população não é e nem pode ser o fator cardial do desenvolvimento da sociedade, o fator determinante do caráter social, da fisionomia da sociedade.

Qual é, então, dentro do sistema das condições materiais de vida da sociedade, o fator cardial que determina a fisionomia daquela, o caráter do regime social, a passagem da sociedade de um regime social para outro?

Esse fator é, segundo o materialismo histórico, o modo de obtenção dos meios de vida necessários à existência do homem, o modo de produção dos bens materiais, do alimento do vestuário, do calçado, da habitação, do combustível, dos instrumentos de produção, etc., necessários para que a sociedade possa viver e desenvolver-se.

Para viver, o homem necessita de alimentos, vestuário calçados, habitação, combustível, etc.; para obter esses bens matéria, tem de produzi-los e, para poder produzi-los, necessita dispor de meios de produção, com ajuda dos quais se consegue o alimento, se fabrica o vestuário, o calçado, se constrói a habitação, se obtém o combustível, etc., necessita aprender a produzir estes instrumentos e a servir-se deles.

Instrumentos de produção, com a ajuda dos quais se produzem os bens materiais e homens que os manejam e efetuam a produção dos bens materiais, por terem uma certa experiência produtiva e hábitos de trabalho: tais são os elementos que, em conjunto, formam as forças produtivas da sociedade.

Porém as forças produtivas não são mais do que um dos aspectos da produção, um dos aspectos do modo de produção, o aspecto que reflete a relação entre o homem e os objetos e as forças da natureza empregadas para a produção dos bens materiais. O outro fator da produção, o outro aspecto do modo de produção, é constituído pelas relações de uns homens com outros, dentro do processo da produção, pelas relações de produção entre os homens.

Os homens não lutam com a natureza e não a utilizam para a produção de bens materiais isoladamente, desligado uns dos outros, mas juntos, em grupos, em sociedades.

Por isso, a produção é sempre e sob quaisquer condições uma produção social. Ao efetuarem a produção dos bens materiais, os homens estabelecem entre si, dentro da produção tais ou quais relações mútuas, tais ou quais relações de produção. Essas relações podem ser relações de colaboração e ajuda mútua entre homens livres de toda a exploração, podem ser relações de domínio e subordinação, ou podem ser, por último, relações de tipo transitório entre uma forma de produção e outra. Porém, qualquer que seja o seu caráter, as relações de produção constituem — sempre em todos os regimes – um elemento tão necessário da produção como as próprias forças produtivas da sociedade.

«Na produção — diz Marx — os homens não atuam somente sobre a natureza, mas atuam também uns sobre os outros. Não podem produzir sem associar-se de um certo modo para atuar em comum e estabelecer um intercâmbio de atividades. Para produzir, os homens contraem determinados vínculos e relações e através desses vínculos e relações sociais, e só através deles é como se relacionam com a natureza e como se efetua a produção» (Karl Marx e F. Engels, Obras Completas, ed. cit., t. V, pág. 429. «Trabalho Assalariado e Capital»).

Consequentemente, a produção, o modo de produção, não abarca somente as forças produtivas da sociedade, mas também as relações de produção entre os homens, relações que são, portanto, a forma em que toma corpo sua unidade dentro do processo da produção de bens materiais». (Stalin — «Materialismo Dialético e Materialismo Histórico»).

Desculpem-me os Srs. Representantes a extensão da citação mas é preferível essa síntese a qualquer outra explanação.

Chegamos à conclusão — e é essa também a nossa experiência — de que devemos buscar as causas do nosso atraso na análise aprofundada das relações de produção em nossa pátria. É aí, sem dúvida, que descobriremos as causas do atraso nacional. Isso, para a burguesia nos dias de hoje é como o comunismo, é querer desmascarar a forma de exploração do trabalho humano. Mas a burguesia, quando revolucionária, tinha uma alta consciência da importância desse fator econômico. Jean Jaurés na sua monumental obra sobre a Revolução Francesa, revolução burguesa, refere-se a Barnave. Há um trabalho de Barnave escrito durante a grande revolução do século XVIII, na França, no qual como que antecede a Marx. Já naquela época explicava que o fator fundamental na análise do fenômeno social está justamente nas relações de produção.

Analisa a sociedade francesa daquela época e chega a conclusões que são quase marxistas sobre as verdadeiras causas da Revolução Francesa.

Citaremos fragmentos bastante extensos desta obra, que demonstra até que ponto tinha consciência do movimento econômico a burguesia revolucionária, cujo idealismo abstrato denuncia nésciamente Taine.

«Não poderíamos formar uma idéia da grande Revolução que acaba de agitar a França, considerando-a de uma maneira isolada, separando-a da história dos impérios que nos rodeim e dos séculos que nos precederam. Para julgar a sua natureza e conhecer suas verdadeiras causas é necessário olhar mais longe, ver o lugar que ocupamos em um espaço mais extenso. É contemplando o movimento geral que, desde o feudalismo até os nossos dias, guia os governos europeus para que mudem sucessivamente de forma, que distinguiremos claramente o ponto a que chegamos e as causas gerais que a ele nos levaram. Não resta dúvida de que as revoluções dos governos, como todos os fenômenos naturais que dependem das paixões e da vontade do homem, não podem submeter-se àquelas leis fixas e calculadas que se aplicam aos movimentos da matéria inanimada; porém, entre esta multidão de causas cuja influência combinada produz os sucessos políticos, algumas tão enlaçados com a natureza das coisas, cuja ação constante e regular domina com tanta superioridade no influxo das causas acidentais, que em certo espaço de tempo chegam quase necessariamente a produzir ainda efeitos. Essas são quase sempre as que mudam a face das nações e envolvem os pequenos acontecimentos em seus resultados gerais, preparam as grandes épocas da história, ao passo que as causas secundárias a que são quase sempre atribuídas não fazem mais do que determiná-la».

Senhores, é justamente a convicção profunda que temos, de que depende da análise de suas causas a solução dos problemas nacionais, que nos levou a ela.

Procuramos investigar quais as relações de produção no Brasil. Sem dúvida, o Brasil, como a maior parte do mundo, nos dias de hoje, à exceção da União Soviética, vive em regime capitalista. É o sistema predominante na sociedade atual. Isto quer dizer que o regime é o de produção de mercadorias, de relacão monetária, do trabalho assalariado, porque são essas as características econômicas do capitalismo. Sem dúvida vivemos no regime capitalista; no entanto, se aprofundarmos a análise das relações de produção em nossa pátria, vamos verificar que na sua parte mais importante, naquela que determina o fator fundamental da economia nacional, as relações de produção não são tipicamente capitalistas. As relações de produção principalmente na nossa agricultura são tipicamente pré-capitalistas. São relações de regime anterior ao capitalismo. Os restos de regime escravagista ainda existem em nossa pátria, e a eles me referi no meu último discurso. Os restos do feudalismo também ainda estão vivos. Por isso, nós, comunistas, definimos de semi-feudal o regime social predominante principalmente no nosso campo.

Ora, Senhores, se o Brasil, não é país industrial, se ainda é país agrário, é claro que a economia agrária é ainda a predominante em nossa pátria. São produtos de exportação, matérias primas e produtos agrícolas que determinam a economia nacional, no que tem de fundamental. Não é a indústria, não é essa indústria de tecidos que temos, indústria secundária, que possa ser o fator predominante de nossa economia.

O Brasil ainda é um país agrário. Além disso, a maior parte de nossa população, 70% dos brasileiros vivem ainda no campo. E em que condições? Vivem por acaso em regime capitalista, recebem salário em dinheiro, pelo que produzem? As trocas são, de fato, monetárias?

Senhores, nas grandes propriedades brasileiras, ainda não predomina o assalariado. Este predomina na economia agrária brasileira somente nas regiões açucareiras em Pernambuco ou em Campos. Já relativamente ao café, em S. Paulo, o regime é de meação. É um regime em que o salário, é pago parte em dinheiro, parte pelo arrendamento da terra. Na verdade, o campônio brasileiro não é operário, não é um assalariado, nem ideológica e nem praticamente. É camponês, não recebe salário e é ele quem paga o arrendamento da terra com o seu trabalho ou com os produtos que retira da própria terra. Essas são as raízes feudais, a que nos referimos. O regime social, predominante na maior parte da nossa economia é, realmente, ainda semi-feudal.

Nesses assuntos riquíssima é também a nossa própria experiência, adquirida no contacto íntimo com o sertão brasileiro, durante a marcha da Coluna, e, posteriormente, no estudo aprofundado que vimos fazendo, das relações sociais no campo brasileiro.

Podemos, ainda, trazer outros elementos em apoio da nossa tese, para demonstrar como são vivos, ainda, os restos feudais na nossa agricultura.

Quero citar, Senhores, um ilustre engenheiro, J. A. Trindade, já falecido, que trabalhando na Diretoria de Obras da Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas, publicou interessante trabalho no n.º II do volume 13 do «Boletim» daquele Serviço, a respeito dos postos agrícolas criados pela referida Inspetoria. É preciso notar que o engenheiro agrônomo Trindade não pode ser taxado ou acoimado de comunista.

Diz ele:

«A sociedade rural daquele sertão divide-se em duas classes: a dos grandes proprietários de terras e a dos meeiros. A meação constitui para o meeiro apenas um expediente para não morrer de fome».

O meeiro diz aquele ilustre profissional, funciona na grande propriedade que seu trabalho explora, como «máquina quase gratuita de produção». E mais adiante acrescenta:

«É justamente entre os meeiros que se acha a massa da população que a seca atira à miséria ou obriga a emigrar: o grande proprietário, este resiste.

Fica patente que ao Estado cumpre dar solo e água, ou apenas água aos meeiros do Nordeste que formam a massa da população nacional».

Mas o ilustre agrônomo que viu e sentiu a realidade vai mais longe e quase que chega ao programa do PCB.

«Não se compreende o grande proprietário nas bacias de irrigação dos açudes construídos com o dinheiro do povo, a concorrer, a afastar, a tomar o lugar daqueles que constituem a figura potencial do flagelado do Nordeste e que realmente fazem a lavoura da região».

É este, Senhores, o estado de relações semi-feudais — a falta de dinheiro, de moedas, nas mãos dos camponeses. Porque o camponês não recebe salário. Uma parte de sua produção ele entrega ao patrão, e a outra, muitas vezes, é obrigado a vender ao mesmo patrão, ao mesmo senhor da terra, pelo preço que lhe é imposto. Isto acontece também aqui nas vizinhanças da Capital da República.

O Sr. Galeno Paranhos — Vossa Excelência tem toda razão. Ainda agora, nossa bancada apresentou emenda no sentido de que nessa parceria agrícola jamais o trabalhador pagasse mais de 20 por cento, pois sabemos que realmente fazem isso a meias.

O SR. CARLOS PRESTES — Atualmente, em São Paulo, vai além da meação. Para o algodão adotava-se esse sistema: ou trinta, quarenta, no máximo cinqüenta por cento. Mas tenho em mãos contratos para a lavoura do algodão, em que a taxa a pagar ao dono da terra está fixada. Este ano, por exemplo, o alqueire de algodão contratado a 20 arrobas, deu 35 escassas. Isto quer dizer que o lavrador que trabalhou o ano inteiro, tem de entregar mais da metade daquilo que com seu suor tirou da terra ao dono do solo, são contratos já superiores ao de meação, devido a uma crise, resultante das intempéries. O patrão, ao invés de adotar uma percentagem, já estabelece uma taxa fixa de pagamento.

Desejaria, Senhores, ler, também, um artigo publicado por um médico, o Sr. Cleto Seabra Veloso, há poucos dias, no «Diário de Notícias», contestando «aqueles que julgam que o Brasil devia e deve, sem dúvida, ajudar a UNRRA e atender aos apelos de Mr. Hoover. Refere se o articulista, então, a um nível de vida, considerado catastrófico pelo Sr. Herbert Hoover, para os camponeses e para a população européia, e demonstra como esse nível, assim considerado para os povos europeus, é muito superior ao das nossas massas rurais.

Diz ele (lê):

«Sou nutricionista há mais de dois lustros. Tenho vários livros tratando do problema alimentar brasileiro. Pois bem, jamais vi tanta fome no Brasil como agora.

Vi e estudei a fome no Norte através dos inquéritos de Josué de Castro, Orlando Peraim e Pedro Borges; vi e estudei a fome no Sul através do inquérito de Cleto Seabra Veloso; vi e estudei a fome em São Paulo através dos inquéritos de Paula Sousa e Horácio Davis; vi e estudei a fome no Distrito Federal através dos inquéritos de Helion Póvoa, Barros Barreto, Castro Barreto, Dante Costa, Paula Rodrigues e outros. Pois bem, jamais vi tanta fome no Brasil como agora.

Mister Hoover, o embaixador da alimentação que nesta hora nos visita descreve a crise alimentar na Europa nos seguintes termos: ração de pão em França — 290 grs. por dia e por pessoa; ração de gordura 20 grs. por dia; ração de açúcar, 16 grs.. Com relação à Polônia diz que os laticínios são praticamente desconhecidos ali e que a mortalidade infantil sobe ultimamente a 20 por cento. Que os casos de tuberculose também aumentam por causa da insuficiência alimentar. E conclui dizendo que a ajuda voluntária dos Estados Unidos de 1939 a 1945, já atinge a cifra de 500.000.000 de dólares.

Mister Hoover não menciona qual a ração de carne e outros alimentos azotados, qual a ração de verduras e de frutas do europeu. No entanto, podemos asseverar que o europeu come carne diariamente, come verduras e frutas, dentro do racionamento a que está sujeito.

Cotejemos agora, leitores essa situação com a situação alimentar de milhões — 20 milhões pelo menos — de brasileiros. Esses nossos patrícios não sabem o que é pão de trigo, nem uma grama diária, quanto mais 290. Comem, sim, farinha de mandioca e de milho, arroz e feijão, cujo valor nutricional é inferior ao do trigo. E isto mesmo em quantidade nem sempre adequada. A gordura que usam não obedece ao critério de ração diária, mesmo em pequena porção, como no caso europeu. A banha de porco, o toucinho, certos óleos vegetais como o dendê, o coco, figuram na alimentação em quotas irrisórias. O açúcar que há é a rapadura, ou então, o açúcar mascavo ou preto, e não atinge a cifra de 16 gramas por pessoa. Os laticínios — leite, queijo, manteiga — jamais figuram na ração do camponês brasileiro. A carne mais usada nos bons tempos era charque, jabá no nordeste; o bacalhau e outros peixes secos; e uma ou duas vezes por semana, a carne fresca de vaca, ou de porco, ou de carneiro ou de bode, ou de ave, ou de caça. Finalmente, as verduras e as frutas, pelo que se conhece através dos inquéritos nacionais, são os elementos mais deficitários da dieta do nosso homem rural e do proletário citadino. Via de regra essa gente não usa tais alimentos.

Resta ainda, a questão da mortalidade infantil, que nos países europeus, conforme disse Mister Hoover, cifra-se em 20 por cento, ou melhor 200 mortos em cada mil crianças nascidas vivas; e a questão da tuberculose.

Imagine-se, agora, quando Mister Hoover vier a saber, pela boca do ministro e médico, Sr. Sousa Campos, que no Brasil a mortalidade infantil atinge as cifras astronômicas de200, 300, 400 e até 500 por mil, perfazendo um obituário demeio milhão de crianças todos os anos! Quando souber que temos no Brasil, para mais de 400 mil tuberculosos, e que em plena Capital da República morrem em média 20 tuberculosos por dia!

Se a fome de milhões de brasileiros não tem até hoje despertado a atenção dos nossos administradores, dos nossos políticos, do Continente Sul-Americano e do resto do mundo civilizado, como devera, — não é porque não exista um problema de fome no Brasil. Esse problema sempre existiu e, agora, assume aspectos de calamidade pública, com tendência a agravar-se. O que acontece é que o nosso caipira, o nosso Jeca-Tatu já acostumou-se a sofrer calado, resignado e descrente dos homens públicos do país e de sua famigerada política.

Por isso mesmo, não é de admirar que em plena Assembléia Nacional Constituinte surjam representantes do povo afirmando que no Brasil não se passa fome. Um homem desse deveria ser exorcizado e, a seguir, exilado, como exemplo para tantos outros insensatos que se arvorem em defensores da democracia».

Desejaria argumentar com elementos estranhos ao nosso Partido e ao marxismo a respeito das causas reais de nosso atraso e, facilitando, assim essa análise, chegar à conclusão de que são justamente os restos feudais que determinam o atraso e a impossibilidade do progresso de nossa Pátria.

O ilustre publicista argentino, Bernardino C. Horne, antigo deputado ao Parlamento daquela República, há alguns anos, referindo-se, em obra de sua autoria, à questão agrária, diz e mostra como a situação em nossos países é realmente de predomínio dos grandes senhores da terra sobre os lavradores, sobre os que trabalham e não recebem salários mas entregam os seus produtos para pagar o arrendamento da terra.

Eis o que afirma Bernardino C. Horne: (lê):

«Regimes há onde eles vivem uma vida miserável isolados e sem defesa alguma. Como o comércio dos produtos está em poder de firmas internacionais estas controlam os negócios internos e externos. O frete e o transporte também são elevadíssimos, de maneira que se pode afirmar que o seu trabalho é uma pura perda.

Esta causa, unida à situação de instabilidade explica o pauperismo da classe agrária e a sua fuga para as cidades.

O proletariado rural vive à margem de toda a legislação orgânica protetora. Arrasta seus passos cansado e miserável, pelas terras que foram de seus antepassados, Índios, mestiços, crioulos e muitos descendentes de europeus, procuram ganhar a vida onde quer que haja trabalho. E assim vão às colheitas de algodão, do açúcar, do cacau, da borracha, onde são explorados, recebendo salários insignificantes. O álcool, os vícios, as enfermidades e a desnutrição vão extinguindo-os, como se o melhor capital de um país não fosse o valor humano».

Senhores, analisando profundamente as relações sociais no campo brasileiro, chegamos a uma conclusão muito interessante. Se compararmos essas relações sociais com as existentes na França, descritas nas obras que se referem às condições do campônio e da gente francesa nos anos que antecederam à Grande Revolução, veremos que elas têm singular semelhança com as atuais do nosso povo.

Todos os publicistas, todos aqueles que analisaram a situação da França naqueles anos, assinalam essa identidade.

Vejamos como as descreve K. Kaustsky, no seu trabalho «A Questão Agrária», onde cita palavras de La Bruyére:

«Vimos como o camponês, no século XVI, tornou-se vegetariano; no século XVII e no XVIII ele deixou, em muitas regiões, de comer com fartura. É conhecida a descrição que La Bruyére fez, cem anos antes da grande revolução, do camponês francês: «Vê-se certos animais selvagens, machos e fêmeas, dispersos pelos campos, negros lívidos e todos queimados do sol, presos à terra que eles varejam e revolvem com uma teimosia invencível; eles tem como que uma voz articulada, e quando se erguem exibem uma face humana. De noite, recolhem-se às cavernas, onde vivem de pão negro, água e raízes...»

Em muitas aldeias, os camponeses só se alimentavam de repolho e de ervas. Massillon, bispo de Clermont-Ferrand, escrevia, em 1740, a Fleury: «Nossa população agrícola vive em uma miséria terrível... a maioria carece mesmo, durante uma boa parte do ano, do pão de cevada e de aveia que constitui a sua única alimentação».

Durante os anos adversos, a situação do camponês era simplesmente terrível, e devido à esteriliado crescente do solo, as más colheitas tornavam-se cada vez mais freqüentes. De 1698 a 1715, a população da França decresce, como conseqüência das crises repetidas, de 19 para 16 milhões».

Vemos como esta situação é semelhante à do nosso camponês, que vive em condições já conhecidas, comendo mandioca, um pouco de feijão ou milho.

O Sr. Adelmar Rocha — Esta não é a situação real do Brasil. Conheço o interior.

O SR. CARLOS PRESTES — Também conheço o interior do Brasil e infelizmente a situação é muito semelhante.

O Sr. Adelmar Rocha — Não se passa fome.

O SR. CARLOS PRESTES — Prossigo na leitura de Kaustsky:

«O governo de Luis XV foi mais pacífico que o de Luis XIV; os gravames causados pela guerra foram menores; mas a pressão das contribuições feudais persistiu. Estas tornaram-se insuportáveis, muitos camponeses fugiram voluntariamente de suas propriedades que os acorrentavam à miséria, e acharam mais vantajoso fazer-se operários assalariados ou mesmo mendigos ou ladrões».

Isto é o êxodo rural, que nesta Casa, já foi tantas vezes assinalado e que não vai absolutamente ser sustado com simples medidas legais, ou impedindo o serviço militar para que os soldados não venham para os quartéis nas cidades. O êxodo rural é conseqüência da miséria do campo, das relações sociais pré-capitalistas semifeudais, do interior do Brasil.

E conclui K. Kaustsky:

«Já em 1750, Quesnay declarava que uma quarta da terra própria para a lavoura estava inculta; pouco antes da Revolução Francesa, Artur Young declarava que um terço da terra arável (mais de 9 milhões de hectares) não cultivada.

A situação não era em todas as partes tão precárias como na França, onde o poder governamental dominava o camponês de uma maneira absoluta, e se achava, ao mesmo tempo, nas mãos de uma nobreza de corte tão insolente como despida de consciência, cúpida e cega. No entanto, também na Alemanha a condição dos camponeses era miserável, e o abandono das terras, da parte deles, muito freqüente.»

Senhores, o quadro pintado por A. Mathiez sobre o povo francês, na época, é muito igualmente semelhante à situação de nosso povo nos dias que atravessamos:

«Os camponeses são as bestas de carga desta sociedade. Dízimos, censos, contribuições, corvéias, impostos reais, milícia, todas as contribuições pesam sobre eles. Os pombos e a caça do senhor destroem impunemente as suas colheitas. Vivem em casas de chão batido, quase sempre cobertas de colmo, às vezes sem chaminé. Só conhecem a carne nos dias de festa e o açúcar, em caso de doença. Comparados aos nossos camponeses de hoje são muito mais miseráveis e, no entanto, são menos infelizes do que o que o foram os seus pais ou do que o são os seus irmãos, os camponeses da Itália, da Espanha, da Alemanha, da Irlanda ou da Polônia. À força de trabalho e de economia alguns têm podido comprar um pedaço de terra ou de prado. A alta dos produtos agrícolas favoreceu o início de sua libertação. Os mais dignos de lástimas são aqueles que não conseguiram adquirir um pouco de terra. Estes se irritam com a partilha dos bens comunais pelos senhores, com a supressão das pastagens livres e da limpeza que lhes rouba os poucos recursos que obtinham do comunismo primitivo. Numerosos são também os jornaleiros que se encontram com freqüência sem trabalho e que se vêem obrigados a ir de fazenda em fazenda à procura de trabalho. Entre eles e a multidão de vagabundos e mendigos é difícil traçar um limite. É no seu meio que se recruta o exército de contrabandistas em luta perpétua contra os que arrecadam os impostos especialmente o imposto sobre o sal». — (A. Mathiez — «La révolution française», tome I, pág. 16).

É esta a verdade, Srs. Constituintes. Conheço o interior Brasil. O pobre camponês teme o Governo porque este só lhe aparece com o imposto, com a polícia ou com o serviço militar. Não leva qualquer benefício, na realidade, para o campônio, que vive as vezes, anos sem ver dinheiro. Isso se dá até mesmo nos centros mais civilizados, de economia mais elevada. Em São Paulo, no litoral na zona da Estrada de Ferro Central do Brasil, no noroeste — temos cartas, documentos e contratos de Araçatuba, de Presidente Prudente a Presidente Bernardes — as condições de vida do nosso camponês são as mais trágicas, nos dias de hoje.

O Sr. Adelmar Rocha — O que não impede que muitos, em São Paulo, se tornem milionários.

O SR. CARLOS PRESTES — É possível que entre milhares e milhares que vivem em estado de pauperismo um ou dois se tornem milionários. Posso citar a V. Excia. algarismos muito significativos sobre o assunto. Entraram, no Brasil, milhões de imigrantes, notadamente de italianos, que se dirigiram sobretudo para São Paulo. Surgiram, sem dúvida, milionários como Matarazzo e Crespi. Mas quero perguntar a V. Excia.: — Quantas são as propriedades agrícolas, italianas, em São Paulo?

O Sr. Adelmar Rocha — Milhares.

O SR. CARLOS PRESTES — Dos dois milhões de italianos entrados no Brasil, temos, apenas, um total de 27 mil proprietários. Quer dizer que são 27 mil em milhões e em sua maioria, proprietários de minifúndios, de pequeninos lotes de terra, com os quais não podem, realmente, alimentar a família.

Sr. Presidente, no estudo da persistência dessas relações feudais, apesar da penetração do capitalismo no Brasil, dessa defesa de um regime pré-capitalista, dessas relações sociais anteriores às relações capitalistas, às relações de salário, às relações de trocas monetárias, devemos buscar as causas de nosso atraso. E vamos encontrar a explicação disso no monopólio da terra, na propriedade privada da terra e na concentração da propriedade.

A propriedade da terra em nossa pátria está concentrada nas mãos de uma minoria. Enquanto na França, para população idêntica à do Brasil, com extensão muitas vezes menor do que a do nosso território, existem para mais de cinco milhões de proprietários, o número de proprietários, em nosso país, segundo o recenseamento de 1940, é de um milhão 3 novecentos e tantos mil.

Esta, em verdade, é situação realmente catastrófica. Além disso, a maior parte dessas propriedades, as mais úteis, as mais próximas dos centros de consumo e das vias de comunicação, está nas mãos de uma minoria que mal atinge a algumas centenas de milhares.

A esse respeito, vou ler algumas conclusões extraídas do recenseamento de 1940, que bem definem o caráter semi-colonial de nossa economia:

  1. — Dos 41.574.894 habitantes do Brasil, 28.432.831 ou seja, 68,39%, vivem no campo.
  2. — Destes, 9.166.825 constituem a população ativa, de 10 anos e mais, na lavoura e pecuária, isto é, as pessoas diretamente ligadas à produção agro-pecuária. Representam elas 67,40% de toda a população do Brasil, de 10 anos e mais, 32,24% de sua população rural.
  3. — Para 9.166.825 de pessoas que têm ocupação ativa na agricultura e pecuária, existem apenas 1.903.868 propriedades rurais (a França, com uma população igual à do Brasil e uma superfície muito menor, possui 5.000.000 de propriedades). Admitindo que cada proprietário tenha apenas uma única propriedade (não raro tem mais de uma), chegamos à conclusão de que são proprietários somente 20,8% dos que labutam na agricultura e pecuária, ou 6,7% dos moradores do campo, ou ainda 4,6% dos habitantes do Brasil.
  4. — A área total das propriedades agrícolas — 197.626.914, hectares — representam apenas 23,2% da superfície do território nacional. Isto significa que grande parte deste continua ainda despovoado.
  5. — A área cultivada do Brasil — 12.921.000 hectares — (62.8% da qual se encontra em São Paulo, Minas, Rio Grande do Sul) não ultrapassam 6,5% da área total das propriedades rurais, ou 1,5% do território brasileiro. Isto significa que a maior parte delas permanece inexplorada, constituindo autênticos latifúndios.
  6. — A área cultivada com milho, café e algodão (os dois últimos, produtos típicos de exportação), representa 56% de toda a área cultivada no Brasil. Se incluirmos o feijão, arroz, mandioca e cana de açúcar, a percentagem sobe a 90%. Isto significa que a nossa economia agrária repousa na exploração extensiva de uns poucos produtos, dos quais os mais importantes, o café, e o algodão, se destinam à exportação. Estes se acham atualmente em plena crise.
  7. — Vistos os dados gerais, vejamos a situação em cada Estado:
    Estados
    % do número de proprietários rurais
    sobre o número de habitantes ativos
    (10 anos e mais na agricultura e pecuária)
    % da área cultivada
    sobre a área das
    propriedades agrícolas
    Acre
    14
    0,16
    Amazonas
    32
    0,13
    Pará
    31
    0,65
    Maranhão
    .
    2,1
    Piauí
    16
    1,0
    Ceará
    18
    3,8
    R. G. do Norte
    16
    7,8
    Paraíba
    16
    9,5
    Pernambuco
    18
    14,9
    Alagoas
    18
    13,3
    Sergipe
    26
    11,9
    Bahia
    21
    4,2
    Minas Gerais
    17
    8,9
    Espirito Santo
    20
    17,1
    Rio de Janeiro
    14
    18,9
    São Paulo
    16
    20,6
    Paraná
    21
    9,9
    Santa Catarina
    32
    7,1
    R. G. do Sul
    36
    6,5
    Goiás
    26
    1,2
    Mato Grosso
    12
    0,4
  8. — Uma vez comprovado que os sem terra no Brasil constituem imensa legião, vejamos como se distribui a propriedade rural entre os que a possuem.

O Censo de 1940 revela os seguintes fatos bem expressivos:

a) Mais ou menos 18% dos proprietários possuem 2/3 da área total das propriedades rurais, ou em números absolutos: uns 340.000 proprietários, isto é, apenas 3,7% de todos os que labutam na terra, ou seja, um pouco mais de 1% dos habitantes do campo, são donos de 2/3 da área total das propriedades agrícolas.

Isto significa que a terra no Brasil é de fato monopolizada por uma minoria afortunada.

b) Há no Brasil cerca de 1.000 propriedades com mais de 10.000 hectares e o que é mais espantoso, 60 propriedades com mais de 100.000 hectares. Isto faz com que apenas 60 proprietários sejam donos de 6.000.000 hectares, ou seja 3,2% da área total das propriedades rurais.

c) Em contraposição, certos Estados há em que grande parte dos pequenos proprietários possui parcelas ínfimas de terra, tornando a sua exploração absolutamente antieconômica.

Assim, por exemplo, têm menos de 5 hectares: 81,5% de todas as propriedades do Maranhão; 54,3% das de Sergipe; 44% das de Alagoas; 41% das de Pernambuco; 28% das do Amazonas e do Pará; 23% das de Paraíba e 18% das do Estado do Rio e Rio Grande do Norte.

O Sr. Galeno Paranhos — V. Excia. deve lembrar também que a maioria dessas terras está empobrecida pela perda de húmus.

O SR. CARLOS PRESTES — Estão empobrecidas pela erosão, pela brutalidade de sua exploração, pelas próprias condições semifeudais da nossa agricultura. O camponês não está preso à terra que, no Brasil, é motivo de especulação. As fazendas avançam. É a célebre marcha para o Oeste, que vai deixando à retaguarda grandes extensões de terras abandonadas e impróprias para a, cultura, as quais exigirão novos recursos, novos trabalhos, adubos e lavra muito mais profunda, a fim de poderem ser reconquistadas para a agricultura.

d) Analisando-se a distribuição das propriedades, segundo a escala de áreas, verificamos que a concentração da propriedade no Brasil é maior do que em qualquer outro país do mundo.

De todo o exposto, só cabe uma conclusão: sem uma redistribuição de propriedade latifundiária, ou em termos mais precisos Sem uma verdadeira reforma agrária, não é possível debelar grande parte dos males que nos afligem entre os quais merecem citação:

a) Produção agrícola baixíssima, rotineira; pouco diversificada e de todo insuficiente para as necessidades de consumo das nossas populações;

b) Condições precárias de existência no campo, no que concerne à alimentação, vestuário, habitação, saúde e educação;

c) Fraca densidade demográfica (4,8 habitantes por Km2);

d) Falta de mercado interno para as nossas industrias;

e) situação aflitiva de nossos transportes; em que se congregam de um lado, o estado deplorável dos equipamentos, obsoletos, gastos e supertrabalhados, e de outro a falta do que transportar.

A respeito de concentração da propriedade, poderemos citar diversos autores. Aguinaldo Costa, sobre Pernambuco, depois de aludir a um quadro da distribuição da terra, diz com a simplicidade dos números, que na Zona da Mata

«o latifúndio é uma realidade palpável principalmente na região mais fértil, isto é, no litoral e mata, onde apenas 0,9% da população é proprietária».

Com alguns dados numéricos que trazemos a respeito de São Paulo, vemos que de 52% do número total das propriedades menores, somente 0,4% da área total estão na posse de pequenos proprietários, enquanto por outro lado, apenas 1/4do número total de propriedades representam grandes fazendas de mais de mil hectares, possuindo em conjunto 20% da área total.

O mesmo se passa em Minas Gerais. Com exceção apenas da parte Colonial do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná, é esse o quadro de todo o Brasil.

Os mesmos apontamentos de Aguinaldo Costa para uma reforma agrária, a respeito da distribuição de terras em Minas Gerais, esclarecem o seguinte:

«92,7% da população não possuem qualquer propriedade sujeita ao imposto territorial».

Essa, a situação do Estado de Minas. O mesmo se dátambém na vizinhança das grandes cidades, pois, não se diga que os latifúndios só existem em Mato Grosso, Goiás e Amazonas. Nos arredores de São Paulo, por exemplo, num círculo de 60 Km., tomando-se ali como centro a Praça da Sé, diz o agrônomo José Calil, ao estudar o assunto:

«A Região Agrícola da capital de São Paulo é constituída pela sua própria zona rural e mais dos seguintes municípios circunvizinhos: Cotia, Guarulhos, Itapecerica, Juquerí, Franco da Rocha, Santo André e São Bernardo. Essa região forma um grande círculo que partindo da praça da Sé, atinge em seu raio máximo cerca de 60 quilômetros. Aí se desenvolve a atividade de mais de 20.000 pequenos produtores, atividade essa que se caracteriza pela sua extraordinária diversidade de culturas e sistemas de trabalho, de produção, de organização, de rendimento, de distribuição, etc.

O problema da terra e sua distribuição está na ordem do dia. Realmente, sua importância é transcendental, especialmente quando se trata de terras existentes nas proximidades de grandes centros consumidores.

Nos lugares que apontamos existe um total de 10.884 propriedades rurais, correspondendo a 106.898,07 alqueires paulistas. Predomina, pois, a grande propriedade. Apenas 1,5% possui mais da metade da área total (59,94%). E 43,40% de pequenos proprietários possuem apenas 15,61 das áreas.

Esse fato apresenta uma importância capital, sobretudo quando se considera que aquela área, subdividida em pequenas chácaras de 10 alqueires, representaria mais de 7 mil chácaras para o abastecimento da capital. Para melhor compreender-se a necessidade da instalação de pequenas propriedades nos arredores da capital basta dizer que apenas 13.500 alqueires estão sendo cultivados, o que representa, tão somente 12,62%da área total das propriedades existentes na região».

Senhores, é essa a grande propriedade. É o latifúndio que determina o atraso da nossa agricultura. Sabeis o que é esse atraso; é a agricultura da enxada, agricultura semelhante à do Egito dos Faraós da qual não podemos sair porque é impossível, é impraticável a aplicação da técnica agrícola enquanto existir essa massa de milhões de operários sem trabalho. Os agrônomos bem intencionados procuram a solução do problema na técnica, mas como aplicá-la? Para que adquirir a maquinaria se o dono da terra pode fazer a colheita sem empregar um centavo do seu capital? E esse capital vai ser utilizado em outras atividades: no comércio, na especulado de compra e venda de terras, no açambarcamento de produtos, na grilagem. O capital é levado para a usura, para os barracões dentro do latifúndio, mas, jamais, para a técnica agrícola.

Os fazendeiros de nossa pátria costumam, em nome da agricultura, recorrer ao crédito do Banco do Brasil, mas este destina-se à indústria do café, ao beneficiamento, não à sua lavoura. Assim, o dinheiro tirado do Banco do Brasil é aplicado realmente com outros fins, que não o da melhoria da técnica agrícola.

O Sr. Jales Machado — O Banco do Brasil apenas empregou 359 mil contos na exploração agrícola.

O SR. CARLOS PRESTES — É muito pouco. O crédito agrário é indispensável no Brasil. Os que querem, realmente cultivar a terra são prejudicados pelos maiores proprietários, pelos mais fortes que, agindo em nome da agricultura, conseguem crédito no Banco do Brasil e vão empregá-lo em outras atividades, jamais, repito, na melhoria da técnica agrícola.

O Sr. Adelmar Rocha — A cultura do café em São Paulo não tem similar no mundo.

O SR. CARLOS PRESTES — A cultura de café, em São Paulo, é feita por processos semifeudais. As relações de trabalho entre fazendeiros e camponeses são semifeudais, insisto em afirmá-lo. O camponês é contratado e paga arrendamento do pedaço de terra de que tira, com seu trabalho nos cafezais, com sua atividade, mais tarde, na colheita, o indispensável para comer.

Gomes Carmo, num artigo do «Jornal do Comércio» de 28 de dezembro de 1941, referindo-se ao atraso da nossa agricultura, teve ocasião de dizer:

«Ford não podia avaliar o que seja no Brasil um trabalhador de enxada; o nosso enxadeiro não tem tipo parelho nos EE. UU. e mesmo alhures; um plonghman (arador) em confronto com o nosso enxadeiro e até mo com o nosso sitiante é um gentleman, um doutor bem posto».

Duncan Aikman, publicista, que percorreu a América Latina, examinou profundamente as causas do atraso de nossa agricultura, referindo-se com acerto à impossibilidade desenvolvimento da técnica agrícola, enquanto a terra continua nas mãos de uma minoria e existirem, portanto, esses milhões de brasileiros miseráveis, esses camponeses sem terra que precisam viver em alguma parte e vão trabalhar, de fato de graça nas grandes propriedades. Diz ele, em «The All-American Front» pág. 50:

«Numa economia em que abunda a oferta de trabalho barato não tem sentido o emprego de máquinas para executar tarefas que as mãos podem levar a efeito sem elas».

Senhores, já me referi ao problema do crédito e não vou insistir sobre ele.

A verdade é que o latifúndio, as relações pré-capitalistas determinam, como conseqüência mais séria para a riqueza nacional, a destruição das riquezas naturais. As matas são destruídas sistematicamente. A falta de fixação do homem à terra pela pequena propriedade, a exploração, a agricultura ligada ao comércio de exportação, orientado pelos grandes bancos estrangeiros, determinam esse avanço sucessivo para o interior, trazendo o aniquilamento da riqueza nacional pela devastação das florestas, pela diminuição das próprias fontes e dos cursos d’água, como foi muito bem apreciado e analisado por Alberto Torres, especialmente numa frase de «As Fontes da Vida no Brasil».

«O problema do reflorestamento, o da restauração das fontes naturais e o da conservação e distribuição das águas, são, em nosso país, problemas fundamentais, extraordinários, mais importantes que o da viação comum, e muitíssimo mais do que o das estradas de ferro».

Estamos inteiramente de acordo, porque reconhecemos que isso leva à destruição do nosso solo. Exportamos a riqueza nacional por ninharias, como acontece em referência ao café, ao algodão, etc., e — conforme, se tiver ocasião, ainda hoje, hei de demonstrar, — sem a compensação devida, sem a troca de produtos que venham enriquecer a economia brasileira.

Senhores, o latifúndio, essas relações semifeudais no campo, essa disseminação do homem nas grandes propriedades constituem a causa fundamental dos déficits de nossas estradas de ferro — doença crônica, doença que não é determinada pela incapacidade dos seus dirigentes, engenheiros cultos, administradores capazes e homens honestos, os quais no entanto, não conseguem, livrar-se dos déficits permanentes, dos déficits eternos.

Tocou em um ponto sensível o engenheiro José Batista Pereira quando no VI Congresso. Nacional de Estradas de Rodagem, teve ocasião de dizer:

«Temos também estudado com algum detalhe o problema econômico das nossas estradas de ferro, especialmente da rede rio-grandense (do Sul), e chegamos à convicção de que o seu maior mal é a desproporção entre o tráfego e a extensão da rede, em outras palavras, a baixa renda quilométrica de linha».

O problema crônico dos déficits de nossas estradas de ferro é conseqüência de falta de proporções entre sua extensão e o valor da produção transportada. A culpa principal corresponde aqui ao latifúndio. As estradas de ferro atravessam milhares de quilômetros de terras inaproveitadas, avaramente conservadas pelos proprietários na expectativa de bons negócios futuros. Como conseqüência, a marcha para o interior, cada vez a maiores distâncias dos centros consumidores, de todos aqueles que buscam um pedaço de terra para bons negócios futuros. Como conseqüência, a marcha para o Oeste, mas de utilização econômica de todas as terras que já são servidas por estradas de ferro. Só assim estas terão um transporte quilométrico capaz de econômica utilização da via permanente.

Senhores, depois dessa análise que tive de fazer, a traços breves e de maneira tão rápida, chego à conclusão que está no latifúndio, que é a má distribuição da propriedade territorial, o monopólio da terra — causa de atraso, da miséria e da ignorância de nosso povo.

A necessidade da reforma agrária já foi compreendida em nosso Continente, vem sendo feita no México, graças ao Art. 27 da Constituição de 1917.

A reforma agrária já teve início na Colômbia, no Paraguai e no Chile. Na Argentina, dela também se tratou. Há poucos anos, Alfredo Palácios apresentava a respeito, no Parlamento, um projeto, ainda cheio de defeitos, mas sem dúvida um passo que ainda não foi dado em nossa pátria, porque não saímos dessas tímidas experiências de colonização de que, na verdade, nada resultou até hoje a não ser a colonização de três Estados meridionais com emigrantes estrangeiros.

E agora nos dias de hoje, ao assumir o governo da República Argentina, Perón fala, clara e categoricamente, na necessidade de uma reforma agrária para resolver os problemas fundamentais no país.

Diz ele no seu discurso de posse:

«A política agrária pode resumir-se neste conceito que, reiteradamente, tenho exposto: «A terra não deve ser um bem de renda, mas sim um «bem de trabalho», (O aspeado é nosso. L. C. Prestes) porque só assim poder-se-á justificar moralmente que um elemento da natureza, que não foi criado pelo homem, possa submeter-se a apropriação particular. O trabalho tudo dignifica e converte em aceitáveis, costumes e normas jurídicas que de outro modo resultariam abusivas. Para conseguir essa finalidade que não pode ser atingida de golpe, mas sim escalonadamente, se há de procurar que os organismos do Estado dêem terra a todos aqueles que a queiram trabalhar para que, ademais, nenhum filho de chacareiro se veja obrigado a abandonar os campos fugindo da miséria e deixando-se atrair pelas luzes enganosas das cidades, onde a luta é áspera e às vezes sem as compensações espirituais que proporcionam o trabalho rude, porém agradável e são, do camponês, quando seu trabalho não está submetido a um salário misérrimo ou a uma produção insuficiente. A terra proporcionada pelo Estado deve ser terra barata, isto é, ajustada a seu valor produtivo e não a um valor elevado por uma especulação determinada pela procura incessante das multidões espoliadas, sempre disposta a sacrificar as condições de vida própria e dos seus, no afã de encontrar um sítio onde levantar seu rancho. Só assim poderemos fazer de nossa agricultura uma indústria estável e converter nosso campo em um mundo cheio de fé e de otimismo. Aumentar o número dos proprietários é o melhor caminho para aumentar o número dos satisfeitos: e acentuamos bem, que não é este o momento de tratar do árduo problema dos latifúndios e dos minifúndios. Limito-me a lançar o princípio, que há de inspirar minha atuação, de que a terra há de ser instrumento de trabalho e não de renda».

Perón desenvolve sua tese para concluir reafirmando que a terra precisa passar, realmente, às mãos dos que a trabalham, isto é, à pequena propriedade, ao pequeno proprietário, aquele que se torne dono da terra em que vai mourejar.

O Sr. Mario Brant — Nesse caso, V. Excia. se declarou contrário ao sistema dos kolkozes.

O SR. CARLOS PRESTES — Exatamente, e o motivo é não ser a época ainda propícia à coletivização. Esta só é possível em sociedade muito mais desenvolvida industrialmente. Só poderemos convencer o camponês, cuja ideologia é individualista e que deseja ter sua economia independente, só poderemos convencê-lo da vantagem da coletivização através da experiência do cooperativismo e com o auxílio do Estado, fornecendo-lhe maquinaria e tratores. E o Brasil não está em condições de fazer isso ainda. A União Soviética alcançou a coletivização, porque ela realmente pôs à disposição dos camponeses tratores e máquinas agrícolas, prestando-lhes auxílio técnico e estimulando durante muitos anos o cooperativismo.

Os camponeses compreenderam na prática, que no sistema dos kolkozes teriam de chegar a nível de vida mais alto que utilizando a sua pequena economia individual. Nós marxistas, não temos ilusão alguma a respeito da pequena propriedade; sabemos que esta leva, inevitavelmente, à hipoteca, à exploração dos trabalhadores e, consequentemente, à miséria destes.

Mas não se pode passar em nossa pátria da fase de atraso que essa etapa se encontra para a coletivização, sem ela, intermédio da pequena propriedade, sem atender a esse desejo a essa aspiração das grandes massas camponesas.

Por isso, somos democratas, porque desejamos atender às aspirações das massas e da grande maioria dos camponeses, que não almejam a coletivização nem mesmo ainda à nacionalização da terra. O camponês quer ser dono de um pedaço de terra para trabalhar independentemente, na hora em que bem entender, na época que achar mais conveniente e vender livremente os produtos que dali tirar graças ao seu esforço ao seu trabalho e como resultado de sua economia independente.

O Sr. Aureliano Leite — Quais as emendas que V. Excia praticamente apresenta ao projeto, para corrigir todos esses males?

O SR. CARLOS PRESTES — Chegarei lá.

O Sr. Aurellano Leite — V. Excia. está quase no fim do tempo e ainda não chegou...

O SR. CARLOS PRESTES — O pronto progresso da URSS foi alcançado através da divisão da terra, em 1917. Os camponeses, realmente, se apropriaram da terra...

O SR. PRESIDENTE — Acha-se sobre a Mesa um requerimento de prorrogação da sessão por meia hora.

Os Srs. Representantes que estiverem de acordo com o mesmo queiram levantar-se. (Pausa).
Aprovado.

O Sr. Galeno Paranhos — V. Excia. não acha que as cooperativas rurais de produção e consumo, são úteis aos pequenos agricultores, principalmente para evitar os intermediários?

O SR. CARLOS PRESTES — As cooperativas de produção serão estimuladas criando-se a pequena propriedade em nossa Pátria, o pequeno proprietário. Será indispensável o auxílio técnico, o fornecimento de semente, o frete barato se possível gratuito, para as cooperativas.

Senhores, nos dias de hoje, as reformas agrárias na Europa, principalmente no oriente europeu, têm sido incrementadas: e quero ler uma notícia sobre a experiência que está sendo posta em prática na Alemanha, na Prússia Oriental o jornalista norte-americano Norman McDonald, que esteve lá, em contacto com os camponeses, naquela zona justamente dos latifúndios dos junkers, dos generais da Wermacht, disse:

«Dentro dessa propriedade havia uma aldeia, onde viviam uns 450 trabalhadores. Ajuntamento típico, coisa que há no norte germânico, com casas de tijolos, baixas e cercadas de olmos muito altos. O prefeito do lugar, camponês rude e fichado como comunista desde 1923, explicou ao jornalista como fizera a divisão dessas terras confiscadas. Primeiro, nomeou um «comitê» incumbido de registrar os nomes de todos que quisessem o seu quinhão. Raríssimos foram os que não quiseram. Operou-se então o levantamento do latifúndio e estabeleceu-se a seguir um plano. Este consistia em dividir-se o total em lotes de 50 a 62 hectares, conforme a qualidade da área. Cada lote recebeu um número e o mapa foi exibido ao público durante três dias. Depois, convocou-se uma reunião geral, discutiu-se o serviço e processaram-se os ajustamentos de acordo com as sugestões dos camponeses presentes. Tudo aprovado, não só pelos interessados, como pelas autoridades, chegou o dia da festa. A população aglomerou-se na Casa Grande ouvindo-se discursos. Tocou uma banda de música. Imposto o silêncio, cada camponês tirou um papelzinho de dentro de um chapéu transformado em urna, papelzinho que indicava um número, correspondendo a um lote, gravado no mapa».

Essa, a divisão que o nosso camponês também deseja, divisão indispensável, na verdade, para que possamos dar um passo para adiante no caminho do progresso. A verdade é que a situação das massas camponesas é insuportável, de maneira que o problema será resolvido de qualquer forma.

Já em 1934, o Sr. Teixeira de Freitas alarmava-se com a situação econômica do nosso país. Em conferência que então pronunciou, teve ocasião de dizer:

«Mas, senhores, ou a Nação desperta para a plena consciência desta tremenda diátese que lhe mina surdamente as fontes de vida e lhe destrói aos poucos os liames de sua unidade, ou os momentos calamitosos não tardarão a chegar. Quem semeia ventos colhe tempestades... O mal-estar vai ganhando todas as camadas sociais e mesmo que não se saiba o que se deve corrigir, vai-se implantando em todos os espíritos a convicção de que é preciso um grande abalo, uma radical mudança de rumo na vida nacional. Uma tentativa fizemos, cautelosa, prudente, conservadora, e nada se conseguiu. E todos vão concluir que tudo continuou tão mal quanto ante porque a medicina não foi bastante enérgica. Mas então essa terapêutica de choque há de tender a direções novas, além do que, pela sua violência, romperá o estado de equilíbrio em que social e politicamente nos mantivemos até agora, e fará surgir de improviso as forças ocultas que os nossos erros estão inconscientemente acumulando. E um impulso de dissociação insopitável nos surpreenderá, visando afastar a ordem atual, procurando os antípodos da estruturação vigente, na simplista preocupação das tentativas empíricas. Se a ordem atual está fundada politicamente na grande unidade brasileira e socialmente na organização capitalista, mais provável será que a subversão se oriente na destruição das duas condicionantes fundamentais da organização vigente. E quem poderá prever o caos que daí resultará? Quem poderá avaliar, numa solução brusca de continuidade, até onde chegará o entrechoque das forças elementares desencadeadas de todos os quadrantes sociais, no seio de uma comunidade já tão combalida nas suas energias vitais?

Esta prefiguração é de fazer tremer. É de causar horror». (Pág. 703).

«As gambiarras de nossa falsa civilização nos ocultam aos olhos a intimidade do quadro de miséria, de sofrimento e de revolta que, mesmo em nossas capitais, essa situação mantém e agrava. E na vida interior, esse doloroso espetáculo de milhões de criaturas embrutecidas, vergadas ao peso de morbidezas incontáveis, sem um amparo, sem um conforto, vivendo em pocilgas segundo o mais baixo teor de vida imaginável, e trabalhando de sol a sol para colher um mísero salário que mal lhes mata a fome, tal a inferioridade do alimento utilizado, esse espetáculo já não nos fere a sensibilidade embotada, porque nisso tudo vemos o quadro normal da vida campesina no Brasil, algo como que uma fatalidade cósmica contra a qual nada há que fazer, nada vale tentar.

Esse é o fadário dos homens do campo — gado para o trabalho, para a exploração e para o sofrimento. Se assim sempre foi, que assim continue sempre a ser, pois que tudo isto de tão velho e de tão imutável na ordem natural das coisas, parece estar também na ordem providencial que nos deu complacente e amiga essa infindável teoria de servos da- gleba para sustentar os «brasileiros», os homens privilegiados das metrópoles, os que fazemos a «civilização» do Brasil. E continuemos a tratar as coisas e a gente da «roça» com a superior indiferença que a sua distância e o seu atraso nos mereceram até hoje como o pediram as nossas imediatas e tão exigentes necessidades, pouco se nos dando, por exemplo, que a lavoura cafeeira produza penosamente ao peso de exorbitantes impostos e mantendo em exploração sob o engodo dos preços artificialmente elevados, velhas plantações em zonas que vantajosamente se poderiam dedicar a outras culturas, nem tampouco que essa produção haja sido toda ela beneficiada e transportada, e que afinal se tenha tornado preciso destruí-la na quantidade assombrosa de 30.000.000 de sacas, sem atender ao doloroso prejuízo da economia mundial, e em detrimento, afinal, da própria economia brasileira, como prêmio e estímulo aos países cafeicultores nossos concorrentes...» (pags. 706-707) «Revista Brasileira de Estatística». Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística — Ano IV — Outubro-Dezembro de 1943 — N.º 16.

De então para cá, a situação só tem se agravado e exige cada vez mais remédios urgentes e vigorosos. Cabe a nós encontrar solução legal, constitucional, armar constitucionalmente o Governo para que, de fato, fique em condições de resolver o problema sem maiores dificuldades. E foi isto, justamente, o que não encontramos no projeto de Constituição. Julgamos imprescindível a providência, para evitar o caos, a guerra civil, porque o progresso do país não pode ser barrado por uma classe dominante, senhora da terra, proprietária das maiores extensões do nosso solo, e que não admite essa divisão, indispensável aos próprios grandes proprietários, os quais já sentem as conseqüências dessa miséria, desse atraso e dessa ignorância.

Foi por isso, Senhores, que oferecemos algumas emendas, as mais modestas, procurando justificá-las com a argumentação até agora desenvolvida.

Outras referem-se aos parágrafos 21, do artigo 159, e 4.º do artigo 164; ambos tratam do conceito de propriedade, o conceito de propriedade, como atualmente está na Constituição, é, ainda, obstáculo terrível para qualquer reforma agrária, reforma constitucional como a que defendemos neste momento. As emendas que propomos substituem a redação desses parágrafos por outra. Quanto ao § 21, do artigo 159, sugerimos esta:

«É garantido o direito de propriedade, desde que não seja exercido contra o interesse social ou coletivo ou quando anule, na prática, as liberdades individuais proclamadas nesta Constituinte ou ameaçam a segurança nacional;».

Aí nos referimos mais aos «trusts» e cartéis, aos bancos estrangeiros; quanto aos direitos elementares, sabemos que nas grandes propriedades, os direitos dos cidadãos não são absolutamente respeitados. Na maioria das nossas grandes propriedades os direitos dos proprietários são superiores a todos os direitos de seus trabalhadores, aos mais elementares direitos dos cidadãos, que vivem sujeitos ao chicote do capataz, ao regime brutal dos restos do feudalismo.

E quanto ao § 4.º do art. 164 — (aliás, esse e o § 21 do artigo 159, por tratarem do mesmo assunto, talvez possam ser reunidos em redação conjunta):

«O direito de propriedade e seu uso serão condicionados ao bem estar social, de modo que permitam a justa distribuição deles com iguais oportunidades para todos».

O Sr. Nestor Duarte — Com a emenda de V. Excia. poderá ser supresso o artigo.

O SR. CARLOS PRESTES — Não pode ser supresso, porque aqui se trata do direito de propriedade.

Propomos, ainda, modificar-se o § 17 do artigo 164, dando-se-lhe a seguinte redação:

«A lei facilitará a fixação do homem no campo, tomando as medidas necessárias para o fracionamento dos latifúndios, para o desenvolvimento das pequenas propriedades para a criação de novos centros de população agrícola, com as terras e as águas que lhes sejam indispensáveis para o fomento da agricultura e para evitar a destruição dos elementos naturais e os danos que a propriedade possa sofrer em prejuízo da sociedade».

Em relação ao § 18 do mesmo artigo 164, sugerimos redigir-se assim:

«As terras aproveitáveis para exploração agrícola ou pecuária, não utilizadas, nas zonas de maior densidade demográfica e à margem das estradas de ferro e de rodagem, bem como as terras beneficiadas por obras públicas e as grandes propriedades mal utilizadas ou abandonadas, passarão ao Estado, mediante lei especial, para que, da mesma sorte que as terras devolutas, sejam distribuídas, gratuitamente aos camponeses sem terra».

Ao § 22 do artigo 164, aditamos emenda, a respeito de justiça gratuita para os camponeses, nos contratos de arrendamento e outras relações com os proprietários da terra.

O Sr. Galeno Paranhos — A simples distribuição das terras não resolve o problema. A questão dos latifúndios é, justamente a das terras não exploradas economicamente. Quer dizer: o proprietário desses tratos de terra uma vez que as explore intensamente, está atendendo às necessidades sociais.

O Sr. Nestor Duarte — É, exatamente, o que diz a emenda.

O SR. CARLOS PRESTES — Temos de partir da distribuição da terra, para que sejam criadas e estimuladas as pequenas propriedades, por meio do cooperativismo e do crédito barato, ajudadas pelo Estado, para que a agricultura se possa desenvolver no Brasil.

O Sr. Galeno Paranhos — A medida é antieconômica.

O SR. CARLOS PRESTES — Senhores: o progresso do Brasil exige que seja modificado o conceito de propriedade monopolística da terra.

É a miséria da grande massa camponesa sem terras que determina a miséria da renda nacional e, consequentemente, da renda pública. A medida que o mundo avança aumentam, necessáriamente as despesas públicas com instrução, saúde, defesa nacional, estradas, obras públicas, etc.

O aumento do mercado interno é indispensável para possa realmente desenvolver-se a indústria nacional.

Nesse sentido Sr. Presidente, pretendia fazer alguma considerações a respeito do que tem havido de precário no desenvolvimento de nossa economia industrial.

Citarei, então, o Sr. Roberto Simonsen, que se refere ao aviltamento progressivo ou continuado de nossa moeda, conseqüência, ainda, da grande propriedade, conseqüência também da monocultura e da exploração de determinados produtos, ligados aos grandes banqueiros estrangeiros. É o que diz S. S. à pág. 37, de seu trabalho «A indústria em face da Economia Nacional».

Não há dúvida que o fator essencial no encarecimento dos produtos de importação e na elevação continuada do custo da vida está no aviltamento de nossa moeda. Mas, a que é devido esse aviltamento? À política econômica de colonização do país adotado pelos latifundiários e seus sócios, os grandes industriais nacionais ligados aos Bancos estrangeiros — toda a nossa política econômica foi e é orientada visando o comércio com o exterior, e este está inteiramente nas mãos dos Bancos estrangeiros. A linha seguida consiste em diminuir, cada vez mais o valor ouro dos produtos exportados de maneira a aumentar, cada vez mais a diferença entre o que efetivamente recebemos e o que em troca entregamos. Esta política de aviltamento da moeda, de inflação continuada, é a que interessa aos industriais que ganham fortunas, principalmente quando, proibidas as greves operárias, podem manter salários de fome e retardar um reajustamento econômico inevitável. Feito o reajustamento econômico, uma nova baixa da moeda nacional se sucede, e assim continuadamente.

Senhores, são os reajustamentos repetidos, as baixas sucessivas da nossa moeda, a que o Sr. Roberto Simonsen se refere, que geram o aviltamento continuado da nossa moeda; porque se hoje estamos em inflação, ela é todo um processo na vida econômica nacional. Os exportadores querem preço papel cada vez maior para os seus produtos, determinando a queda do câmbio, a baixa do cruzeiro, e essa baixa do cruzeiro determina o encarecimento da vida no País; o reajustamento se dará, mais dia menos dia, e, dado o reajustamento, volta o fazendeiro a exigir novos preços.

Agora mesmo dá-se novo reajustamento no interior de São Paulo ou aumentam inevitavelmente salários rurais ou fogem os trabalhadores para a cidade. A falta de braços no interior do Estado exige a alta dos salários tanto nas fazendas de café como nas plantações de algodão. O que leva os fazendeiros já pedirem novos e mais altos preços para os produtos de exportação.

Como conseguir porém, melhores preços quando eles dependem do mercado internacional? A solução é baixar o câmbio,passar o dólar de 20 para 25, 30 ou 40 cruzeiros, precipitando assim uma nova fase de inflação.

Senhores, sobre o assunto, organizei um quadro em que está suficientemente analisado esse aviltamento continuado de nossa moeda.

Tomemos o valor da tonelada importada correspondente ao da tonelada exportada. Veremos que no Brasil, em 1926 o valor médio da tonelada exportada era, em libras, 50,73 e, em 1940, baixou para 9,88, enquanto que a tonelada importada baixava de 16,16 para 7,02. Quer dizer, se comprávamos, com uma tonelada exportada, 3,14 toneladas, comprávamos em 1940, somente 1,41.

Em 1938, com o valor de uma tonelada exportada, só foi possível adquirir 1,27 toneladas de mercadorias estrangeiras, em vez das 3,14, de 1926, ou mesmo das 3,00, de 1929. Prejuízo, portanto, de 59%, relativamente a 1929. O trabalho nacional está sendo dilapidado crescentemente, a terra esgotada e, em troca, torna-se cada vez mais difícil a substituição da aparelhagem, a compra de adubos, etc. Um exemplo prático: a máquina que nos custava £ 500, em 1929, podia ser adquirida em troca da exportação de 11,5 toneladas de nossa exportação, enquanto, em 1938, a mesma máquina cujo preço já tinha sido reduzido a metade, £ 250, só pode ser comprada em troca da exportação de 27,2 toneladas de nossa produção.

É a desvalorização continuada, é o desperdício, a entrega da riqueza de nosso solo, de nosso trabalho, por valores cada vez menores. Portanto, a depreciação completa de nosso trabalho, o empobrecimento, a pauperização do País, enfim, de sua fortuna nacional.

Eis, completo, o quadro a que fiz referência:

Ano
Toneladas importada
com o valor correspondente
de uma tonelada exportada
Valor médio de
toneladas exportadas
em £
Valor médio de
toneladas importadas
em £
1926
3,14
50,73
16,16
27
2,91
41,99
14,43
28
3,02
46,95
15,53
29
3,06
43,32
14,18
1930
2,63
28,91
10,99
31
2,75
22,16
8,06
32
3,44
22,44
652
33
2,62
18,73
7,15
34
2,52
16,13
6,41
1935
1,89
11,95
6,32
36
1,92
12,57
6,54
37
1,66
12,90
7,78
38
1,27
9,14
7,17
39
1,37
8,92
6,52
40
1,41
9,83
7,02

Mas, Senhores, devemos ainda, ter olhos para ver e sinceridade para confessar as conseqüências do monopólio da terra que assegura o predomínio político de uma minoria. Essa é a realidade nacional, e é a realidade desde o Império, em que predominavam os senhores de escravos, e, depois, durante toda a República, em que a classe dominante tem sido e é precisamente a dos grandes proprietários da terra.

Nesse sentido, foi notável a coragem com que o nobre Deputado Sr. Aliomar Baleeiro, cujo nome pronuncio com respeito e admiração, há poucos dias, nesta Casa, assinalou justamente isso. Disse ele:

«Representantes de uma elite, saída das classes beneficiárias pela situação atual. Se se fizer um inquérito a respeito da composição social e profissional desta Assembléia, verificaremos que todos nós ou pelo menos nossos parentes, saímos das classes agrárias, que se têm libertado sempre do pagamento de impostos, que então passam a recair sempre diretamente sobre o proletariado.

Devemos confessar que somos fieis a uma tradição velha; mas por outro lado, devemos reagir, e então, impregnarmo-nos dos princípios de moral política, cumprindo o nosso dever leal, consciente e deliberadamente antes que no-lo exijam. Não esperemos que a revolução social bata às nossas portas, se podemos conjurá-la, matando a fonte de ressentimentos, de inquietações, de desgostos, de recalques, que há no coração do povo brasileiro».

Refere-se S. Excia. justamente a essa minoria, que é, sem dúvida, a minoria prevalente na classe dominante. Junto a essa minoria hoje já existem grandes industriais, alguns deles desligados de propriedade da terra. Mas na verdade, a maioria dos nossos grandes industriais também estão ligados à propriedade da terra, porque são os antigos fazendeiros que empregaram recursos na indústria. Industriais que em nossa pátria estejam mais livres dessas ligações com a grande propriedade, somente no Rio Grande do Sul.

É que a indústria no Rio Grande do Sul teve origem diferente; seu industrial de hoje foi em geral o artesão de ontem que enriqueceu na zona colonial.

E sobre o mesmo assunto desejava citar páginas de Bernardino Horne a respeito da influência nefasta desses grandes proprietários, como classe que impede, que procura barrar o progresso do país.

«A estância e o latifúndio dão origem à formação de uma classe de grandes proprietários rurais, que governa o país e que constitui uma barreira intransponível para a subdivisão da terra e para a formação de uma classe agrária baseada nessa subdivisão, que é o caminho seguido por outras nações, transformadas, devido a essa organização, em grandes e progressista potências.»

E. Echeverria denunciava, em plena ditadura, em 1848, o estado de pobreza e de servidão em que vivia o proprietário rural, que havia sido saqueado pelas classes governantes.

«Proclamou-se a igualdade — acrescentava — e reina a mais espantosa desigualdade; gritou-se liberdade e ela só tem existido para um certo número; ditaram-se leis e estas só têm protegido ao poderoso. Para o pobre não há leis, nem justiça, nem direitos individuais, mas violência, perseguições injustas». («Política Agrária y Regulación Econômica». B. C. Horne — Ed. Losada B. Aires — pág. 54).

E, mais adiante, à pág. 55:

«Sarmiento, em «Facundo», descreve em palavras exatas a situação de nossa campanha naqueles anos. Diz: «Imaginai uma extensão de duas mil léguas quadradas, todas povoadas, mas colocadas as populações a quatro léguas de distância uma de outra, a oito léguas, às vezes, e as mais próximas a duas. A sociedade desapareceu completamente; só resta a família feudal, isolada, reconcentrada». (Op. cit.).

É o monopólio da terra que gera as oligarquias estaduais e municipais, que anula na prática a democracia e a própria autonomia municipal. Vivemos, os do povo, sob o predomínio dos coronéis, chefes e chefetes, senhores de baraço e cutelo.

A solução pacífica, legal, constitucional, é possível. E quando a afirmamos, repetimos palavras de Lenine.

A muitos parece que os comunistas, os marxistas têm mania de violência. É o contrário. Ninguém mais do que nós sabemos e conhecemos as conseqüências da violência para os trabalhadores, para as grandes massas populares. São os trabalhadores, são os homens do povo que vão morrer nas barricadas ou sofrer no fundo dos cárceres. Não são nem os generais golpistas, nem os políticos demagogos: é o povo.

Não somos, portanto, pela violência. A violência aparece como conseqüência da violência da classe dominante. E ao que estamos assistindo ainda nos dias de hoje, porque enquanto o Partido Comunista procura lutar pela solução pacífica dos problemas nacionais — e continua a lutar por essa solução, estendendo a mão aos governantes e a todos os partidos políticos para que se unam na busca dessa solução pacífica — a resposta que recebemos são os fuzilamentos em praça pública, são as brutalidades nos cárceres policiais. A violência não é indispensável para nós e, sempre que é possível encontrar solução pacífica, lutamos por ela.

Lenine, no artigo escrito justamente um mês antes da revolução de Outubro mostrava às classes dominantes e ao povo russo que ainda existia a possibilidade — mas a última, dizia ele — de solução pacífica dos problemas da revolução democratica-burguesa, que devia completar-se no país para iniciar-se a revolução socialista.

Eis o que diz Lenine:

«Diante da democracia da Rússia, diante dos Soviets, diante dos partidos dos social-revolucionários e mencheviques, abre-se hoje a possibilidade, que se dá raríssimas vezes na história das revoluções, de assegurar, dentro do termo assinalado, sem novos adiamentos, a convocação da Assembléia Constituinte, a possibilidade de salvar o país do perigo duma catástrofe militar e econômica, a possibilidade de assegurar o desenvolvimento pacífico da revolução.

Se os Soviets assumirem hoje, integral e exclusivamente, a responsabilidade do Poder do Estado para pôr em prática o programa que deixamos traçado, terão assegurado não só o apoio das nove décimas partes da população da Rússia, da classe operária e da imensa maioria dos camponeses, como também contarão, além disso com o maior fervor revolucionário do exército e da maioria do povo, sem o qual é impossível vencer na luta contra a fome e a guerra.

Hoje nem se poderia falar de fazer resistência aos Soviets se estes, por sua parte, não vacilassem. Não haverá uma só classe que se atreva a sublevar-se contra eles; e os proprietários rurais e capitalistas, doutrinados pelos ensinamentos do golpe de Kornilov, cederão pacificamente o Poder, tão logo o exijam os Soviets, em forma de ultimatum. Para vencer a resistência dos capitalistas contra o programa dos Soviets, bastará fazer com que os operários e camponeses vigiem os exploradores e adotem contra os recalcitrantes medidas tais como por exemplo, a confiscação de todos os bens, combinada com um breve período de cárcere.

Assumindo o Poder, os Soviets poderiam assegurar hoje mesmo — e o mais provável é que seja esta sua última oportunidade — o desenvolvimento pacífico da revolução, a possibilidade de que o povo eleja pacificamente seus deputados, a luta pacífica dos partidos dentro dos Soviets, a contradição prática dos programas dos diversos partidos, a passagem pacífica do poder das mãos de um partido às mãos de outro.

Se se deixar passar esse ensejo, os rumos que a revolução vem seguindo desde o movimento de 20, de Abril até o golpe de Kornilov, demonstram que é inevitável a mais encarniçada guerra civil entre a burguesia e o proletariado.

A catástrofe, irremissível, acelerará essa guerra civil que, julgando por todos os dados e razões acessíveis à inteligência humana, terminará forçosamente com o triunfo completo da classe operária, apoiada pelos camponeses pobres, para a realização do programa aqui exposto. Porém esta guerra civil pode ser muito dura e muito sangrenta, pode custar as vidas de dezenas de milhares de latifundiários, capitalistas e oficiais que simpatizam com eles. O proletariado não retrocederá diante de nenhum sacrifício para salvar a revolução, a qual não é possível senão aplicando o programa que aqui deixamos traçado. Entretanto se os Soviets se decidissem a aproveitar esta última ocasião para imprimir à revolução um rumo pacífico, o proletariado os apoiaria com todas as suas forças. (Lenine — Obras Escogidas — Tomo III págs. 132-133. Ediciones en lenguas estrangeras — Moscou — 1943).

Mas além do latifúndio, dificulta também e impede o nosso desenvolvimento econômico a dominação do capital estrangeiro. Além de semifeudal é também semicolonial o nosso país.

Estradas de ferro, portos, serviços públicos dos mais importantes, está tudo nas mãos dos grandes banqueiros estrangeiros direta ou indiretamente. A penetração do capital estrangeiro «explora e especula com o nosso atraso», como afirma com justeza Bernardino Horne:

«As terras, os recursos naturais, suas enormes riquezas, as estradas de ferro, os serviços públicos, as vias de comunicações e de transporte, o comércio e, enfim, toda a atividade econômica dessas jovens nações, passa ao poder de grandes empresas capitalistas que dominam toda a sua vida. Explora-se e especula-se com o atraso. Não se deseja a subdivisão das terras, nem se povoam as mesmas com imigrantes, a não ser de forma precária. Não há a preocupação de levantar o nível de vida nem de cultura dos povos. Isso constituiria um perigo, pois daria lugar à formação de urna consciência própria, como a que conduziu à independência.

Nessa situação, em graus diferentes, encontram-se as nações do novo mundo no século XX. Suas economias, apoiadas quase exclusivamente na produção agro-pecuária, não têm uma base sólida, uma vez que a terra continua em mãos de urna minoria que a açambarcou, há tempos, e não se formou uma classe produtora próspera, educada, independente. Algumas leis destes últimos anos e os movimentos que os camponeses vêm realizando, permitem abrigar a esperança de que, com o despertar de sua consciência, um novo período se iniciará.

O atraso em que tem vivido, a falta de associação e a despreocupação de todos, fazem com que não saiam da prostração em que se encontram.

Nestes podemos distinguir várias situações, que nos diversos países são mais ou menos análogos. P0r um lado, os camponeses que têm a propriedade de suas terras, cuja percentagem é mínima; por outro lado, os quearrendam a terra ou a exploram de acordo com um contrato de parceria, pagando a sua utilização com uma porcentagem dos produtos.

A situação de todos esses camponeses, em geral é pouco próspera». («Política Agrária e Regulacion Econômica» — Bernardino C. Horne — Editorial Losada II Buenos Aires — pág. 47).

É o imperialismo que explora impiedosamente os povos dos países potencialmente ricos, mas na verdade ainda atrasados e cada vez mais atrasados. Sua ação é no fundamental prejudicial à economia nacional, ao progresso, já que deforma segundo seus interesses os rumos da economia nacional. Os lucros, sempre exagerados, ou são enviados para o estrangeiro ou, no caso de aplicação no país, servem para justificar lucros futuros cada vez maiores.

Basta examinar o caso da Light. Em 1910, tinha um capital de 30.000.000 de dólares. Esse capital não foi realmente aumentado com outras somas de dinheiro estrangeire trazido para o Brasil. Em 1942, proclamava aquela Companhia possuir capital no valor de 181.000.000 de dólares. Seus lucros são superiores ao capital histórico inicial, que realmente empregou. Quanto ao preço dos seus serviços, a Comissão nomeada pelo Ministério da Viação, em 1931 e 1932, examinando-os naquela época, verificou que o custo de produção do «Kw/h» que se cobrava a quase Cr$ 1,10 foi calculado em Cr$ 0,03.

O poder dos trustes, dos monopólios, dos grandes banqueiros é suficiente para tudo dominar. É o suborno dos homens e a espionagem, e as perseguições aos que se não dobram.

Um governo progressista precisa estar suficientemente armado para agir com energia e presteza, dentro da lei e da Constituição, contra os poderosos das finanças. É indispensável assegurar desde já a nacionalização (passagem ao poder do Estado) das empresas que ocupam postos estratégicos da economia.

Nesse sentido, formulamos emendas substitutivas dos §§ 5, 6 e 7 do Art. 164 e uma aditiva às disposições Transitórias todas a respeito dos grandes trustes, e nos seguintes termos:

Art. 164 — § 5.9 — Redigir assim:

«Em nenhuma hipótese será permitida a constituição de trustes, cartéis, monopólios, entendimentos ou ajustes de qualquer organização, grupo, empresa, ou indivíduo, sejam de que natureza forem, para dominar os mercados internos, eliminar os concorrentes e explorar os consumidores pelos preços ou qualquer outra forma de opressão».

Art. 164 — § 6.9 — Redigir assim:

«A lei regulará a nacionalização progressiva dos bancos, das empresas de seguro e de capitalização, e de outras de fins análogos, em todas as suas modalidades».

Art. 164 — § 7.9 — Redigir assim:

«A lei regulará a nacionalização das empresas concessionárias de serviços públicos, federais, estaduais e municipais.»

Serão revistos todos os contratos lesivos aos interesses nacionais e será determinada a fiscalização e a revisão das tarifas dos serviços explorados por concessão, que deverão ser calculadas com base no custo histórico, não se permitindo a evasão de lucros para o estrangeiro, mas aplicando-os em benefício do melhoramento e expansão dos serviços e elevação do nível de vida dos empregados. A lei se aplicará às concessões feitas no regime anterior de tarifas estipuladas para todo o tempo de duração do contrato.

Disposições transitórias:

Art. — Onde convier — «A lei regulará a nacionalização dos trustes e monopólios que pelo seu poderio econômico ameaçam, na prática, ou possam ameaçar o gozo das liberdades asseguradas nesta Constituição, bem como aqueles que pelo seu poderio ameacem ou possam ameaçar a independência nacional».

Senhores, apreciados dessa maneira sumária, rápida, do ponto de vista econômico, os dois grandes males que estão, de fato, impedindo o progresso do Brasil, — as grandes propriedades ou o monopólio de terras, e a exploração do povo pelo capital estrangeiro monopolizador, — passamos agora ao lado político do problema.

Porque, reciprocamente, para que os dispositivos constitucionais progressistas sejam postos em prática, para que seja mesmo respeitado o espírito da Lei Magna, indispensável se torna que nela fique assegurada a efetiva participação das forças populares no governo e que tudo seja feito para impedir o retrocesso a novas ditaduras.

O presidencialismo de nossas Constituições republicanas não foi nem é ainda, neste Projeto que discutimos, fruto do acaso, do simples critério dos homens. Traduz o predomínio de uma classe de senhores feudais, sucessores de senhores de escravos que, habituados a mandar, não podem admitir na prática livre discussão, nem aceitam a possibilidade de governar em colaboração com outras classes. O Presidente da República substituiu o monarca que, se tinha a denominação de poder moderador, era de fato, no entanto, chefe hereditário dos senhores de escravos, cujos interesses sempre defendeu. No final das contas, o nosso parlamentarismo na monarquia era, na verdade uma tão grande caricatura do verdadeiro parlamentarismo burguês europeu, quanto o nosso presidencialismo republicano, do presidencialismo norte-americano. O problema, pois, não é teórico e não está propriamente na escolha entre uma ou outra forma de governo republicano, mesmo porque, como já disse nesta casa o Sr. Nestor Duarte, o Direito Constitucional é o mais nacional dos direitos. Trata-se de estudar a realidade brasileira, trata-se de meditar sobre toda a experiência política de nosso povo, a fim de buscar a forma mais apropriada ao progresso e à verdadeira prática da democracia no país.

Além disto, vivemos hoje em nova época, em que os povos que não querem parecer precisam progredir. A própria classe dominante que forneceu todos os ditadores está abalada e, como já não conta com o apoio externo de tiranos como Hitler e Mussolini, se quiser governar ainda e evitar os choques de classe violentos, precisa aceitar a colaboração das outras classes. E essa colaboração, no presidencialismo, é das mais difíceis, senão impossível. É indispensável que o poder supremo da Nação seja exercido por uma Assembléia em que estejam representados todos os Partidos, todas as correntes políticas, na proporção de suas forças, e que em uma tal Assembléia, que será legislativa, tenham origem os outros ramos do poder.

A objeção teórica da separação dos poderes não pode abalar o argumento da necessidade prática e já não tem razão de ser depois da experiência mundial e brasileira.

Montesquieu, com sua teoria da separação dos poderes, doutrinou em uma época em que era necessário liquidar o poder absoluto da monarquia, que precisava ser abolida através daquela separação.

O Sr. Nestor Duarte — Muito bem, apoiado.

O SR. CARLOS PRESTES — Hoje vivemos uma época diversa e o contrário se passa. Tal separação jamais existiu em parte alguma, e, aqui no Brasil, foi sempre substituída pelo predomínio do Executivo.

Permito-me, ainda, citar palavras do grande advogado francês, Marcel Willard, que participou da resistência francesa. Há poucos meses, referindo-se justamente a essa, separação de poderes num país como a França, onde foi sempre mais respeitada do que em nossa pátria, diz:

«Na verdade, essa pretensa separação dos poderes absolutamente não separava os poderes entre si, mas os separava de sua origem, e somente dela, quer dizer, do povo; separação entre o eleitor e o eleito; separação entre a Assembléia eleita e os órgãos do poder; e, nas brechas, infiltrava-se insidiosamente um quarto poder, oculto mas real este último, o da oligarquia financeira, dos bancos, dos monopólios e, a partir de um meio século, o dos trastes, donos e senhores verdadeiros do aparelho estatal».

Ouvimos, há poucos dias, a palavra do Senador Hamilton Nogueira, a respeito do Major Mac Crimmon, agente audacioso de uma empresa estrangeira, de um dos trustes mais poderosos em nossa terra, que procura jogar um poder contra o outro, no intuito de abrir uma brecha para dominar, como, realmente, está dominando, no Brasil.

Diz o Senador Hamilton Nogueira, cujas palavras também pronuncio com o devido respeito e a data vênia necessária:

«Quanto ao trabalho da Comissão Parlamentar declarou mais o Major Mac Crimmon que a sua intervenção, com espírito conciliador, era uma forma de negociar, apesar de que só o Poder Público, por meio de medidas de caráter administrativo, estaria em condições de decidir sobre o caso, pois somente o Poder Executivo tem dentro das suas atribuições, os característicos de crítico, perito e juiz que falecem à Comissão Parlamentar.

Sr. Presidente, essas declarações merecem alguns reparos. O primeiro deles, de ordem jurídica. Não sou advogado, não sou jurista, mas tenho bom senso, e o que verificamos aqui é o seguinte: o Senhor Mac Crimmon no sentido de defender os lucros excessivos de sua empresa contra a justiça que se deve fazer aos trabalhadores, quer jogar o Poder Legislativo contra o Executivo».

Quero terminar minhas palavras.

Não há razão, também, para o sistema bicameral, com um Senado eleito por sufrágio não proporcional. Uma Câmara de tal natureza será mais um instrumento para a dominação absolutista da classe dominante, dos senhores latifundiários, da oligarquia possuidora do monopólio da terra que ainda exerce predomínio absoluto no interior do país. O sufrágio majoritário fará do Senado um organismo terrivelmente reacionário.

O Sr. Nestor Duarte — Apoiado. Ainda hoje, no conclave da UDN, discutiu-se esse assunto e ficou assentada a conclusão de que o Senado, pelo processo de eleição majoritária, torna-se um órgão de prepotência.

O Sr. Adelmar Rocha — Foi a tese ali defendida.

O SR. CARLOS PRESTES — Estes os motivos por que apresentamos um substitutivo aos Capítulos II, III e IV (Art. 7.ºao Art. 111) do Título II do Projeto, e propomos seja suprimida o Art. 6.º que trata da separação de poderes. Baseamo-lo no, ante-projeto oferecido a esta Casa pelo Sindicato dos Advogados, com algumas modificações.

Quero ler, no momento, entre outros os seguintes artigos:

Art. — A Assembléia Nacional é eleita pelo povo e exerce o poder supremo da nação.

Art. — A Assembléia Nacional se compõe de deputados eleitos por sufrágio universal, e pelo voto direto, igual e secreto, na proporção de um deputado para 25 mil eleitores, por Estado, Território e Distrito Federal.

Art. — De dois em dois anos, a Assembléia Nacional elegerá um Conselho Legislativo composto de um presidente, 2 Vice-Presidentes, 3 Secretários e mais 31 membros, tendo nele representação obrigatória e, na medida do possível, proporcional, todos os partidos políticos nela representados.

Art. — O Conselho elegerá dentre os seus membros uma Comissão Executiva, que funcionará permanentemente como órgão executivo.

Art. — A Comissão Executiva é composta de 1 Presidente da República e dos seguintes ministros... todos responsáveis pelos seus atos perante a Assembléia Nacional.

Senhores, não é possível continuar. Este o substitutivo que apresentamos aos capítulos II, III e IV do Título II do projeto.

Propomos Executivo e Judiciário subordinados à Assembléia e o Judiciário em parte eleito diretamente pelo povo.

Enfim, o que julgamos sumamente perigoso é insistir no presidencialismo na maneira por que o foi no Projeto. Cometeríamos um crime insistindo em estabelecer novamente a ditadura de fato do Executivo, porque assim agindo estaríamos apontando com a Revolução para todos aqueles que querem o progresso do Brasil e não se conformam com a morte da democracia em nossa Pátria.

O Presidente da República, eleito por voto majoritário será sempre o representante de uma só classe, a mais poderosa, interessada na conservação do «status-quo» por maiores que sejam os sofrimentos do povo. O Presidente eleito pela Assembléia muito mais facilmente poderá ser o representante de uma coligação partidária em que ao lado de reacionários entrem representantes de classes progressistas.

O SR. PRESIDENTE — Atenção: Peço licença ao nobre Representante para comunicar-lhe que se acha sobre a mesa requerimento pedindo a prorrogação da sessão por mais meia hora. Entretanto restam ao orador, nos termos do Regimento apenas 10 minutos, que concederei a S. Excia. se a Casa deferir o requerimento.

Os Srs. que concedem a prorrogação, queiram levantar-se. (Pausa).

Aprovada.

O SR. CARLOS PRESTES — Enfim, Senhores, para nos se voltam as esperanças da Nação e temos sem dúvida em nossas mãos, ao elaborar a Carta Constitucional que regerá nossos destinos nos anos mais próximos, força bastante para segurar a democracia e abrir perspectivas no caminho do progresso para nossa Pátria.

Apesar de todos os erros que já tenhamos podido cometer, nosso prestígio é ainda dos maiores e se soubermos continuar lutando em defesa da democracia e da soberania desta Assembléia nenhuma força poderá vencê-la nem será mesmo capaz de ameaçá-la.

Mas utilizemos este posto, e cônscios de nossas responsabilidades perante a Nação, promulguemos a Constituição democrática que reclama a nova era em que vivemos, Constituição capaz de liquidar todos os privilégios, de assegurar os Direitos sagrados do Homem e de impedir a volta de Ditaduras retrógradas e obscurantistas. E que a nossa Lei Magna, assegure aos governos progressistas que hão de vir a possibilidade de resolver pacificamente, dentro da Lei, quer dizer, constitucionalmente, os problemas fundamentais de nossa economia, — a liquidação do latifúndio, pela Reforma Agrária, e a emancipação econômica de nosso povo do Capital imperialista, pela nacionalização, passagem ao poder do Estado, dos Bancos e grandes empresas exploradoras imperialistas.

É o que espera de nós, de nossa inteligência, previsão, coragem e patriotismo, não só o povo brasileiro, como todos os povos da América e toda a Humanidade progressista que venceu o fascismo e marcha a passos cada vez maiores para um futuro radioso de bem-estar e de cultura, afinal livre da exploração do homem pelo homem.

Era o que tinha a dizer. (Muito bem. Muito bem. Palmas. O orador é cumprimentado).


Inclusão 04/10/2011