O assalto à razão no desafio à humanidade

Miguel Urbano Rodrigues

20 de março de 2003


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


O presidente George Bush informou o mundo no 11 de Setembro de que os EUA em breve dariam inicio a uma guerra diferente de todas as anteriores.

Por uma vez não mentiu. O genocídio afegão foi o prólogo de uma tragédia. Os mísseis que explodiram sobre Bagdad na madrugada de 20 de Março dão-lhe continuidade. Serão recordados como instrumento de uma estratégia de poder demencial, sem precedentes pela ambição planetária e pelo espírito de barbárie a ela subjacente.

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Acabava de regressar do México quando, em Havana, a notícia me angustiou. Trazia ainda dentro as imagens e as emoções do combate pela paz do povo mexicano. Participara na maior cidade do mundo das manifestações contra a guerra do povo de Cuauhtemoc e Cardenas.

Aqui, em Cuba, não me era possível seguir, como ali, o andamento da crise mundial através de incontáveis canais de televisão. Passei a noite com o ouvido colado a emissoras de onda curta. Escutei, enojado, o discurso de George W Bush. O nome da «operação» genocida — Liberdade para o Iraque — tinha um toque de humor negro que me fez lembrar o discurso oficial da Alemanha nazi no dia 1 de Setembro de 1939, quando as bombas da Luftwaffe principiaram a explodir em Varsóvia. Também então os agressores — não esqueci — tentavam justificar o crime afirmando actuar em defesa de uma nova ordem civilizatória, prometendo uma era de felicidade e bem estar para o mundo.

A história nunca se repete da mesma maneira. Mas a ameaça à humanidade, essa sim, é outra vez global, embora o perigo, hoje, seja infinitamente maior, porque neste ano 2003 a guerra iraquiana pelos seus desdobramentos eventuais coloca em causa a própria sobrevivência do homem no planeta que é a sua pátria.

Transcorridas mais de seis décadas, um sistema de poder enraizado no irracionalismo opta também pela guerra para impor um projecto monstruoso de dominação que aspira à perpetuidade.

O porta-voz do desafio à humanidade não é desta vez um líder messiânico tresloucado. Quem aparece no vértice do poder do sistema imperial desafiador é um homenzinho agressivo mas ignorante, quase um analfabeto funcional que afirma contar com o apoio de deus para a cruzada genocida.

O paralelo não deve ser levado mais longe. No III Reich de Hitler, um regime ferozmente repressivo erigia o racismo em política de Estado e proclamava o primado da força sobre os direitos do homem, suprimindo as liberdades e ridicularizando a democracia.

Nos EUA as instituições são ainda formalmente democráticas, mas o sistema desenvolve já uma estratégia planetária de contornos neofascistas, tripudiando sobre o Direito Internacional e a Organização das Nações Unidas. Essa contradição dificulta extraordinariamente a compreensão extensiva do perigo que ameaça o planeta.

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Na Europa avança a consciência, tardia, de que os seus povos ou criam condições para a formação de um contrapoder ou o Continente, do Atlântico aos Urales, será transformado num protectorado. A derrota infligida no Conselho de Segurança a Washington e ao seu subserviente aliado, o Reino Unido (Aznar é um lacaio de terceira categoria) alertou centenas de milhões de cidadãos para uma evidência que não era transparente: o novo imperialismo não é invulnerável. A opção pela guerra — mais exactamente por uma cadeia ininterrupta de guerras ditas «preventivas» — aparece como consequência de uma crise estrutural do capitalismo. O sistema — como Istvan Meszaros e Samir Amin demonstram através de discursos diferenciados embora convergentes — não encontra soluções para os problemas que enfrenta; entrou num processo irreversível de decadência e aproxima-se do esgotamento no âmbito da sua própria lógica. Para sobreviver recorre, por isso, à violência como instrumento de acção permanente e imprescindível; a irracionalidade assume nele um papel primordial.

Daí que a farsa e a tragédia surjam tão intimamente ligadas. Goebbels, o ministro da Propaganda do Reich nazi, não foi tão longe na defesa do absurdo como os epígonos bushianos das guerras preventivas. Em Washington a apologia da irracionalidade adquire facetas de uma ópera trágica. A captura ou morte de dois homens — Osama ben Laden e o mullah Muhamad Omar — foi transformada em objectivo prioritário de uma guerra repugnante que devastou e recolonizou o Afeganistão. A meta, aliás, não foi atingida e ambos se encontram em paradeiro desconhecido. No caso do Iraque, o presidente Bush não somente fez de Sadam Hussein e dos seus filhos o alvo do seu ultimato como o fim confessado do primeiro bombardeamento de Bagdad era matar os três. A operação, concebida pela CIA, também fracassou.

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Nestes dias de angustia a resistência dos povos, como sujeito da historia, fortalece a esperança. O exemplo da França aponta o caminho a seguir. Parecia impossível o que aconteceu. A pressão firme do povo francês, na linha da sua grande tradição humanista, foi decisiva para que um governo conservador, alinhado com o neoliberalismo, membro do Clube dos 7, superasse a barreira do grande medo universal. As contradições de interesses económicos contribuíram para a oposição frontal de Paris à capitulação que Washington exigia do Conselho de Segurança. O apoio à atitude francesa de aliados de ocasião tão diferentes como a Alemanha, a Rússia e a China gerou uma situação inédita que mudou a correlação de forças, isolando os EUA, primeiro, para, numa segunda fase, obrigar Bush à montagem da grande farsa dos Açores, quando o lobo tirou a máscara. O ultimato destapou o rosto neofascista do sistema de poder planetário.

Agora, quando para «desarmar» um Estado que se tinha submetido a todas as exigências das Nações Unidas, uma tempestade de metralha devasta o Iraque, as Forças Armadas dos EUA, emergem perante o mundo como cúmplices directas de uma estratégia monstruosa. Por actos comparáveis, os feld marechais de Hitler responderam em Nuremberg como co-responsáveis pela prática de crimes contra a humanidade.

Bush é apenas uma peça na engrenagem. Mas apressa-se a identificar nas tropas incumbidas de consumar o genocídio iraquiano uma vanguarda da civilização, que cumpre disciplinadamente uma tarefa heróica. E, contudo, uma mentalidade neofascista, pela própria natureza do crime, contamina mais e mais, a cada dia, o corpo de oficiais do Exército, da Força Aérea e da Marinha dos EUA.

Neste contexto, a luta contra a barbárie torna-se dever colectivo das gerações do início do século, protagonistas e não apenas espectadoras, de uma época simultaneamente trágica e maravilhosa.

Parece improvável que um homem primário como o presidente Bush tenha da história uma noção mesmo brumosa de que a cidade ora esventrada pelos mísseis estadunidenses foi por muito tempo o pólo mais brilhante da cultura islâmica durante o Califado Abássida. E certamente ignora que as ruínas de Ctesifon, vizinhas de Bagdad, transmitem a memória eterna dos esplendores da Pérsia Sassânida que pôs fim à expansão do Império Romano para Oriente e sintetizou o melhor da herança civilizacional da Babilónia de Nabucodonosor e do helenismo, oferecendo uma contribuição fabulosa ao progresso da humanidade.(1)

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O esmagador poder desinformativo de um sistema mediático controlado hegemonicamente por transnacionais ao serviço do sistema de poder responsável pelo crime de lesa humanidade em curso atrasa, e em muitos países impede, a mobilização dos povos contra esta guerra abjecta.

O simples facto de um punhado de governos, tanto na Europa como na América Latina e na Ásia, se dobrarem á exigência de Washington e apoiarem a sua guerra com cheiro de petróleo, desconhecendo o repúdio dos respectivos povos à escalada bélica é esclarecedor da extrema complexidade da situação criada.

Talvez nunca o discurso sobre a liberdade e a democracia tenha sido tão perverso e farisaico como o debitado hoje por dirigentes como Bush, Blair e Aznar quando espezinham a democracia e a Carta das Nações Unidas. Não são os povos estadunidense, britânico e espanhol que estão em causa — como ficou evidente nas manifestações do 15 de Fevereiro e nas que se lhes seguiram. Eles situam-se na primeira linha do combate à engrenagem de terror que ameaça a humanidade.

A maré da resistência sobe em todo o mundo. Os exemplos belíssimos do povo da França, do povo da Alemanha, do povo da Turquia, entre outros, valem por uma exortação à luta. Com a sua firmeza confirmam que é possível assumir a defesa da humanidade neste momento decisivo da história, que é possível e necessário resistir, mesmo sem armas, que, afinal, está ao nosso alcance iniciar uma grande viragem.

É possível e necessário derrotar o assalto à razão que caracteriza a irracionalidade do projecto imperial planetário.

Uma palavra de ordem que incita ao combate adquire actualidade.

A guerra de genocídio contra o Iraque justifica um pungente apelo humanista e solidário:

Povos de todo o mundo uni-vos contra a barbárie neofascista!


Notas de rodapé:

(1) Um dos maiores exércitos romanos de sempre, comandado pelo imperador Valeriano, foi esmagado no ano 260 da Nossa Era, em Edessa, pelo exército persa, dirigido pelo imperador Chapur. Sessenta mil legionários renderam-se e Valeriano morreu, como prisioneiro, em 260. (retornar ao texto)

Inclusão: 01/08/2021