Álvaro Cunhal, um grande da História

Miguel Urbano Rodrigues

10 de novembro de 2004


Fonte: http://resistir.info

Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.


Álvaro Cunhal nasceu ha 91 anos, no dia 10 de Novembro.

São os povos, colectivamente, como sujeito da história, que transformam a vida, mas é inegável que alguns homens e mulheres contribuem por vezes decisivamente para lhe inflectir o rumo.

Álvaro Cunhal ficará pelo tempo adiante como um desses seres excepcionais. Poucos portugueses marcaram tão profundamente a história do nosso pais no século XX. Talvez nenhum tenha sido tão caluniado e injuriado pelas forças da reacção e por todo um feixe de adversários de múltiplos quadrantes ideológicos.

Vasco Gonçalves afirmou recentemente que o 25 de Abril será recordado como a revolução mais importante e profunda que abalou a Europa Ocidental desde a Comuna de Paris. Enunciou uma evidência que a burguesia tenta esquecer. Mas é igualmente transparente que sem a sua intervenção pessoal e a de Álvaro Cunhal nos acontecimentos, a Revolução não teria sido aquilo que foi.

Lenine dizia que sem teoria revolucionária e sem organização revolucionária não ha revolução possível. No caso português, embora o derrubamento do fascismo seja devido a uma vanguarda armada, o MFA, a situação criada pelo golpe militar não teria desembocado numa ruptura revolucionária sem a adesão imediata e torrencial do povo. O papel dos comunistas nesse fenómeno social, que pelas suas características surpreendeu a Europa e o Mundo, ainda não foi suficientemente estudado. Mas a grande e generosa vaga inicial, marcada pelo espontaneísmo, teria baixado rapidamente, se o PCP não conseguisse com êxito canalizar, através de uma participação organizada, a combatividade das massas, nas cidades, nas áreas industriais e nos campos do Alentejo e do Ribatejo, para objectivos estratégicos que ultrapassavam largamente as reivindicações conjunturais.

Se é um facto que as grandes conquistas de Abril se concretizaram no breve período compreendido entre o malogro da intentona da "maioria silenciosa" e o 25 de Novembro, cabe recordar que a defesa tenaz dessas mesmas conquistas quando principiou a contra-revolução não teria sido também viável se na época uma percentagem importante dos trabalhadores não houvesse resistido com lucidez e firmeza à ofensiva restauradora das forças da direita tradicional dirigida pelo Partido Socialista.

É sobretudo ao longo da escalada contra-revolucionária que a intervenção de Álvaro Cunhal pesa no caminhar da Historia. Não foi algo inesperado. Em duas obras fundamentais escritas durante a clandestinidade — Rumo à Vitória e A Reforma Agrária em Portugal — os historiadores encontram já claramente definido o pensamento de um revolucionário no qual coexistem harmoniosamente o ideólogo, o estadista, o estratego, o dirigente partidário e o intelectual que consegue contemplar o movimento da história atento ao imediato e simultaneamente com o distanciamento e a serenidade de um artista.

Durante mais de uma década, tive a oportunidade de encontrar Álvaro Cunhal com muita frequência. Esse privilégio resultou de tarefas que eu, como militante comunista, cumpria. Mas abriu portas a um olhar diferente sobre o humanista que a secura aparente do dirigente político ocultava.

O secretário geral do PCP que surgia na televisão e discursava nos grandes comícios do Partido foi durante muitos anos um desconhecido para a esmagadora maioria dos portugueses. Mesmo para os seus camaradas não era fácil lançar as pontes entre a personagem que actuava no grande cenário da História e o autor de romances e novelas (editadas sob o pseudónimo de Manuel Tiago), o pintor, o ensaísta, o artista incompatível com exclusões dogmáticas, fascinado pelos génios do Renascimento e admirador e «explicador» de outros, contemporâneos, dos impressionistas a Picasso, capaz de sentir a beleza eterna de uma catedral gótica e o encanto intemporal de uma criação de Niemeyer.

É minha convicção que a Revolução Portuguesa, por força de uma guinada não prevista da História — a implosão da URSS — não teria podido sobreviver se houvesse seguido em frente no ano 75. O desaparecimento do Socialismo na Europa inviabilizaria a continuidade da experiência desafiadora que se propunha a transformar Portugal numa sociedade não capitalista, vocacionada para erradicar a exploração do homem pelo homem.

Mas o rumo da história não se decide a partir de acontecimentos que ainda não se produziram. No ano 75, quando a Revolução Portuguesa foi traída, era impensável o desaparecimento da URSS e a hegemonia bárbara e planetária dos EUA.

Defender as suas conquistas era uma exigência revolucionaria. Foi então, repito, que Álvaro Cunhal se agigantou e o Partido Comunista Português terá, sob a sua direcção, adquirido num batalhar permanente, dentro do quadro constitucional, a estrutura e o perfil que o projectaram no mundo como exemplo de organização partidária que utilizava na luta como guia para a acção o marxismo-leninismo, não como breviário escolástico, mas como teoria (e praxis) criadora em permanente renovação como a concebeu Lenine. Não foi por um capricho que o seu livro O Partido com paredes de vidro — reflexão sobre o PCP como partido revolucionário da classe operária — não foi publicado em alguns países da Europa Oriental. Os dirigentes dos partidos burocratizados no poder temiam os efeitos da frontalidade com que Álvaro Cunhal abordava a temática de desvios e erros incompatíveis com a concepção leninista do partido revolucionário. Na maioria desses países as organizações comunistas, distanciadas do povo e em ruptura com os princípios do marxismo, actuavam já como caricaturas do que deve ser um partido comunista.

Foi na fidelidade à sua opção revolucionária de comunista e ao seu respeito pela história profunda que Álvaro Cunhal num dos seus últimos livros — A verdade e a mentira sobre a Revolução Portuguesa - A contra-revolução confessa-se — iluminou o quadro nebuloso em que a revolução de Abril foi traída.

Tão fundo desceu na atribuição de responsabilidades que — o tempo enfraquece a memória — até mesmo personalidades progressistas admitiram que exagerou na culpabilização de Mário Soares.

Não estamos perante uma questão secundaria. Vasco Gonçalves — outro grande português — usando linguagem diferente, chega a idêntica conclusão.

Essa autenticidade de Álvaro Cunhal no rigor com que evoca a revolução traída é indissociável da sua grandeza humana.

O Partido foi para ele o instrumento da revolução concebida como um infinito absoluto sem o qual a existência perderia significado.

Encontramos a mesma grandeza na opção que precedeu a passagem do testemunho como secretario geral do PCP.

São muito escassos exemplos como o seu.

Não esqueço palavras que lhe ouvi um dia, já ultrapassados os 70:

— As tarefas de secretário geral de um Partido como o nosso exigem alguém em plena forma mental e física. Saberei deixar o cargo na altura própria...

E ele o fez de maneira exemplar, preparando a transição com o desprendimento próprio de um revolucionário ímpar.

Para terminar este texto, escrito no aniversario de Álvaro Cunhal, recordarei uma das muitas estórias ligadas à prolongada relação de trabalho com ele mantida.

No regresso de uma viagem à Bulgária eu, impressionado pela leitura de um ensaio de James West, da Comissão Política do Partido Comunista dos EUA, e de conversas com ele, publiquei um artigo intitulado, se a memória não falha, "As origens do eurocomunismo no browderismo ". Era uma reflexão que estabelecia a ponte entre a vaga do eurocomunismo e o revisionismo de Earl Browder que produziu efeitos devastadores em muitos partidos comunistas da América Latina.

A secretária de Álvaro Cunhal telefonou-me informando que ele tinha urgência em falar comigo.

Encontrei-o numa péssima disposição. Agitava na mão o jornal onde parágrafos do artigo estavam sublinhados a vermelho e azul.

Escutei uma catilinária devastadora. Durante minutos não tive oportunidade de pronunciar uma palavra em minha defesa.

Qualificou a publicação do artigo de atitude irresponsável, de erro imperdoável. Em tom duríssimo foi acumulando censuras.

Quando o fluxo de criticas abrandou um pouco, tentei expor a minha posição, sublinhando que um simples artigo meu, militante desconhecido em Paris e Roma, não poderia criar tanto problema ao Partido.

Logo me interrompeu:

— A esta hora, o artigo, transmitido para Itália e França, já estará em cima da secretária do Berlinguer e do Marchais. Vai ser interpretado como um ataque indirecto, não teu, mas do PCP ao PCI e ao PCF. Causaste um prejuízo irreparável, sem conserto possível. O mal está feito...»

Mas, subitamente, a expressão do seu rosto suavizou-se, o tom de voz mudou e, olhando-me de frente, falando pausadamente, pôs-me uma mão no ombro e atirou-me para o mundo do absurdo e do inesperado. As suas palavras ficaram para sempre gravadas na minha memória:

— Devo esclarecer que acho o artigo inteligente e bem escrito. Estou de acordo com o conteúdo. Noutras circunstancias poderia assiná-lo. Mas neste momento a sua publicação foi desastrosa.

O episódio ajuda a compreender a dimensão humana do dirigente revolucionário que completa agora 91 anos.

Parabéns, Álvaro!


Inclusão: 01/08/2021