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Fonte: http://resistir.info
Transcrição e HTML: Fernando Araújo.
Foi em San Salvador há quase dez anos que conheci Schafik Handal. Encontrava-me na capital salvadorenha como observador internacional durante umas eleições legislativas.
A Frente Farabundo Martí de Libertação Nacional (FMLN) transformara-se em partido político e conquistou tantos lugares no Parlamento como a Arena, a organização de direita que governava o pais sob a tutela dos EUA.
Leonel Gonzalez, que era na época o coordenador da FMLN, marcou uma entrevista com Schafik, mas à ultima hora foi cancelada por um problema de agenda. Apenas trocamos meia dúzia de palavras. Ao despedir-se com um "fica para o próximo encontro" ele fez uma sugestão: "Estude um pouco a história de El Salvador se quiser compreender este povo".
Recordo o pormenor por dois motivos.
Quando voltei a encontrá-lo em Havana, a camaradagem estabelecida evoluiu para um sentimento de amizade. Ele estava na capital cubana para tratamento médico. Já fizera uma operação ao coração e os controles periódicos eram recomendados pelos médicos.
Como se hospedava no Hotelito de 41, do Partido, onde eu então residia, aproveitei a oportunidade. Comíamos juntos quando possível e, após o jantar, mantínhamos longas conversas.
Descobri que Schafik tinha um conhecimento profundo da história dos povos da América Central. Contrariamente ao que ocorrera no Caribe, onde os crioulos actuaram como detonador da revolução libertadora, a alta classe que descendia dos espanhóis permaneceu no México ao lado da Coroa e teve um papel decisivo no esmagamento das rebeliões populares lideradas pelos padres Hidalgo e Morelos. Após a independência, essa gente identificou um perigo na unidade da América Central e tudo fez, com êxito, para a fragmentar em pequenas repúblicas oligárquicas. No sec XIX, heróis centro americanos, como o revolucionário hondurenho Morazan, foram vítimas de tal política, obviamente incentivada pela Inglaterra e pelo nascente imperialismo estadunidense.
Historiador sem cátedra, Schafick evocou episódios do tempo da guerra que me ajudaram a compreender melhor a epopeia da FMLN e, sempre apoiado em situações vividas, esboçou o quadro social de El Salvador após os acordos do cessar fogo, quando a Frente, finda a luta armada, passou a actuar no quadro institucional como partido político.
Guardo dessas conversas uma lembrança muito forte porque cada uma delas continha lições de estratégia. Eu tinha consciência das dificuldades que nascem para um movimento revolucionário quando os seus quadros saem do mato para as cidades e são integrados, de repente, num quotidiano modelado pela burguesia. Em El Salvador houve ex-comandantes como Joaquim Villalobos que foram seduzidos pela atmosfera que os envolveu. De Oxford, onde lhe ofereceram um doutoramento, voltou tão contaminado pelo sistema que acabou líder de um partidinho por ele fundado, que acabou pró-EUA e aliado da direita.
Schafik que fora um dos principais comandantes da guerrilha contou-me que até nos EUA, durante as conversações para o fim da guerra o cumularam de gentilezas, com altos funcionários do establishment a insinuar-se como "amigos" num processo de sedução de objectivos transparentes.
Não esqueço a impressão desfavorável que na primeira visita a San Salvador me causou o então comandante Facundo Guardado. Era então um dirigente tão destacado que foi candidato pela FMLN à presidência da Republica. O seu discurso conciliador, tímido, aplaudido em Washington não ajudou. Mas conseguiu chegar à liderança do Partido.
Quando em 2002 voltei ao país a fim de participar numa conferencia internacional de solidariedade com as forças progressistas da Colômbia, estava no auge a campanha mediática que apresentava os "renovadores" da FMLN como a alternativa aos revolucionários marxistas da velha guarda, satanizados como "conservadores", incompatíveis com a modernidade e com a democracia. Facundo, ainda na FMLN, mas já afastado da direcção, fora transformado pela direita no bom revolucionário, o homem no qual a esquerda, se lúcida, poderia encontrar o seu guia e salvador.
Em Portugal os auto-intitulados "renovadores" do PCP, faziam então muito barulho nos media. A linguagem era muito semelhante apesar de diferenças abissais entre as sociedades salvadorenha e portuguesa. As afinidades impressionaram-me tanto que abordei o tema numa entrevista com Schafik, publicada no "Avante".
Lá como cá, a campanha "renovadora" não passou da gritaria.
Facundo é hoje um cadáver político e os portugueses que então proclamavam a sua impaciência militante para lutar pela "renovação" do marxismo comportam-se como anticomunistas e alguns não hesitaram mesmo em apoiar candidatos à Presidência da Republica do Partido Socialista, que é um partido vocacionado para administrar o capitalismo melhor do que a direita quimicamente pura. Na América como na Europa, a febre renovadora não está, aliás, mais na moda. Os seus porta vozes perderam toda a credibilidade.
O Partido da FMLN, entretanto, cresceu na fidelidade aos princípios.
A capital dos pais e as principais cidades são governadas por quadros seus. Schafik foi candidato à Presidência nas ultimas eleições e somente não venceu porque os EUA intervieram na campanha, ameaçando suspender as remessas de divisas dos imigrantes salvadorenhos se o candidato da oligarquia local o homem de Washington não fosse eleito. Num pais onde esse dinheiro é a principal fonte do PIB, a manobra de chantagem funcionou.
O prestígio de Schafik permaneceu, porem, intacto. Era o deputado mais querido do povo de El Salvador e o mais combatido e caluniado pelas forças da direita.
Fidel Castro tinha por ele uma grande admiração e tornou-a publica muitas vezes em Havana. Schafik era como revolucionário simultaneamente um homem de acção e um ideólogo.
Não esqueço nem os seus ensaios políticos sobre grandes problemas do nosso tempo, nem as intervenções que lhe ouvi em conferências internacionais. Ajudou-me a compreender melhor a América Latina.
Descendente de palestinianos, lembrava pelo perfil, apesar da barba, um romano antigo. Não sorria com muita frequência, mas tinha um sentido de humor que desmontava os adversários.
Mais de uma vez, em conversa, lamentou não conhecer Portugal. Esteve quase a concretizar essa aspiração no ano passado, por ocasião do Encontro "Civilização ou Barbárie", em Serpa, mas o projecto foi adiado.
Escrevi-lhe então e tinha a esperança de o reencontrar, finalmente, nesta cidade alentejana. O convite era permanente.
Não virá. A morte abateu o combatente internacionalistra de maneira fulminante no regresso da Bolívia onde fora representar o FMLN na posse de Evo Morales.
De Schafik Handal se pode dizer que lutou e viveu como um revolucionário exemplar.