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Primeira Edição:. O original encontra-se em www.odiario.info/?p=3627
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
O mais recente livro do escritor cubano Leonardo Padura tem sido largamente promovido, com numerosas edições em castelhano, português e outras línguas. O jornal Público consagrou três páginas ao livro e ao autor. O livro tem valor literário. Mas o que obviamente justifica este entusiasmo é que o autor abomina é a palavra - o socialismo e o comunismo. Embora não o afirme explicitamente nos seus livros, põe os seus personagens a falar por si.
Uma mensagem eletrónica de Alberto Dines empurrou-me para a leitura, muito lenta, de O homem que gostava de cães,(1) de Leonardo Padura.
Tinha lido algumas das suas novelas policiais. Admirava o escritor, mas o cidadão não me inspirava simpatia.
Interrogava-me. Que livro seria aquele recebido com entusiasmo pela crítica em França, em Portugal, em Espanha (10 edições), no Brasil?
O suplemento cultural do diário Publico, de Lisboa, dedicou há dias três páginas ao escritor.
Depois percebi. Creio não ter lido nos últimos anos um romance sobre o qual me é tão difícil transmitir aquilo que senti.
O livro tem na versão portuguesa mais de 600 páginas. A dificuldade resulta de a opinião ter mudado à medida que avançava na leitura. O romance é uma caixa de surpresas que semeia perguntas sem resposta.
Na primeira parte o talento literário do autor impressionou-me muito. Mas à medida que prosseguia, a admiração foi acompanhada por um grande mal-estar.
Como explicar a contradição aparente?
Duas personagens prendem o leitor: Trotsky e o catalão que o assassinou em 1940, Ramon Mercader, o "herói" do romance.
Padura recorre no seu livro a uma técnica nele inovadora. Um dos narradores, Ivan Cárdenas, é um cubano, escritor frustrado que, numa praia a leste de Havana, ouviu a estória do crime contada por um amigo de Mercader, que na realidade é o próprio Mercader.
Padura, numa arquitetura ficcional complexa, inspirou-se na história real e na estória escutada para construir um romance já traduzido em muitas línguas.
As narrativas são paralelas, mas duas surgem interligadas: a vida trágica de Trotsky desde a sua deportação em 1928 para o Cazaquistão ao assassínio no México em 1940; e a lenta metamorfose de Ramon Mercader, o catalão de origem aristocrática que, de combatente na batalha de Madrid sem formação ideológica evoluiu num processo traumático para o fanático operacional da NKVD (precursora do KGB) que matou Trotsky com uma picareta.
Ivan, o narrador cubano, não esconde, ao refletir sobre a vida, o seu distanciamento da Revolução. Não somente a desaprova, como anseia pelo fim do socialismo, de um regime que considera responsável pela pobreza, pelo atraso, pela corrupção que alastram pela Ilha. Destila aversão pelo comunismo.
A meditação é de Ivan, mas para o leitor é transparente que as suas ideias, criticas e aspirações são de Padura.
O escritor, como a grande maioria dos jovens da sua geração, apoiou a Revolução nos primeiros anos. Mas o funcionamento do Partido, o sectarismo e o voluntarismo dos dirigentes cansaram-no, desiludiram-no.
Conheci em Cuba intelectuais que percorreram a estrada que os conduziu da adesão à desilusão.
Não condeno todos aqueles que renunciaram à militância revolucionária. O homem é um ser em mudança permanente. Mas as transformações ideológicas não são uniformes; diferem muito.
O romance de Padura fez-me recordar Lisandro Otero, um grande escritor. De revolucionário inflamado, disciplinado, que exerceu funções diplomáticas na Europa e n a América Latina, deslizou lentamente para um ceticismo que se tornou transparente em artigos publicados no Monde Diplomatique.
Ao ler o seu romance El Arbol de la Vida procurei-o em sua casa para tentar compreender aquilo que o levara da apologia à crítica.
A resposta, confusa, titubeante, não me esclareceu.
A mensagem do seu romance, pessimista, é transparente: sucessivas gerações passaram em Cuba, desde a época colonial, da rebelião ao conformismo, à rutura com a moral e a ética. Porquê? Porque todas as revoluções, na sua opinião, acabam por devorar aqueles que desafiam a ordem preexistente.
Mas, nos últimos anos da sua vida, Lisandro Otero, naturalizado mexicano, inverteu surpreendentemente o rumo, retomou a defesa da Revolução e foi-lhe atribuído o Premio Nacional de Literatura.
Danton, ao contrário de Lisandro, não recuperou a esperança depois de a perder. Tinha sepultado a ideia de revolução. Surge na História como a antítese de Robespierre.
O percurso de Trotsky é sinuoso, em certos trechos, quase incompreensível, mas morreu acreditando na revolução mundial como meta ao alcance do homem.
Padura (o governo de Rajoy atribuiu-lhe a nacionalidade espanhola) desconcerta o leitor.
Destoa do perfil do anticomunista tradicional. Para convencer, utiliza um processo que o distância dos historiadores anti-soviéticos como o americano Robert Conquest, ou de escritores como o russo Soljenitsin que para condenar o socialismo não hesita em atribuir à Revolução Francesa de 1789 a origem de todos os males que culminaram, segundo ele, na Revolução bolchevique de Outubro de 17.
Padura esforçou-se por envolver o seu livro no manto de seriedade que conferiu prestigio ao romance histórico, de Walter Scott e Victor Hugo a Tolstoi.
Preparou-se durante muitos anos para escrever, de 2006 a 2009, a sua obra definitiva.
Estudou marxismo. Conhece a Historia das Revoluções Russas, leu muito sobre a geração de revolucionários profissionais que acompanharam Lenin na grande arrancada de 17. Quase todos (Kamenev, Zinoviev, Rikov, Smirnov, Preobrajensky, Piatakov, Radek, Rakovsky, entre outros) foram acusados nos processos de 36, 37 e 38 de trair a Revolução e - com a exceção de Radek fuzilados.
Padura reuniu uma Documentação volumosa. Consultou os Arquivos Russos após a desagregação da URSS. Deixa transparecer intimidade com a cidade de Moscovo.
Registei que algumas citações reproduzem os originais.
Esse rigor aparente na montagem do livro contribui para incutir confiança ao leitor e persuadi-lo com habilidade de que este regresso a Trotsky recria numa obra de ficção o revolucionário e o homem.
Essa eventual conclusão desrespeita a História.
O Trotsky de Padura é uma personagem muito diferente do Trotsky real.
O escritor é fiel no relato ao itinerário do exilado, erigido por Stalin em inimigo número um. Acompanha-o no exilio, na Turquia, em França, na Noruega e, nos anos finais, em Coyoacan, no México.
Alberto Dines, ao manifestar-me o seu apreço pelo talento de Padura, salienta o "extraordinário trabalho de pesquisa e armação literária".
O comentário é pertinente. Mas Padura não é um historiador. Deforma Trotsky. Abusando da liberdade de ficcionista, atribui ao revolucionário exilado, nas suas meditações sobre o passado, arrependimentos e dúvidas incompatíveis com a sua personalidade e mundividência.
Padura transcreve passagens do documento, um testamento político, em que Trotsky transmitiu as suas últimas vontades. "Morrerei afirmava sendo um revolucionário proletário, um marxista, um materialista dialéctico".
Mas insinua que Trotsky estaria arrependido da sua responsabilidade na repressão dos marinheiros de Kronstadt em 1921 e de falta de firmeza na defesa dos sindicatos durante o debate sobre o tema no Comité Central. Na realidade, Trotsky foi então um dos principais defensores da implacável repressão dos amotinados de Kronstadt e Lénine criticou-o por haver tomado a iniciativa da militarização dos sindicatos ferroviários durante a guerra civil.
Num dos capítulos do livro o escritor sugere que Trotsky, repensando o passado, era assaltado por dúvidas angustiantes sobre a própria validade do projeto comunista.
Padura atribui-lhe pensamentos como este: "seria o marxismo apenas mais uma ideologia, uma espécie de falsa consciência que levava as classes oprimidas e os seus partidos a acreditar que lutavam pelos seus próprios fins, quando na realidade estavam a beneficiar os interesses de uma nova classe governante?"(pág. 417).
Padura dedicou mais de três anos à escrita do seu romance. Mas concebeu o projeto muito antes.
Terá corrido pelo mundo, de Barcelona ao México, passando por Moscovo e Paris, em busca de inspiração, para se impregnar da atmosfera dos cenários onde Mercader-Mornard se tinha preparado para a sua entrada na História.
Tinha uma ambição desmesurada. Acreditou que iria construir uma catedral da literatura. Esperava elevar-se ao nível de Tolstoi.
Não atingiu a meta. Escritor muito talentoso, não conseguiu criar uma grande obra.
O romance prende pela técnica, por um suspense que lembra o de John Le Carré. As personagens principais, de Ramon Mercader (mascarado de Mornard-Jacson), à sua mãe Caridad Mercader e ao russo Kotov, Tom, Grigoriev, Roberts, Eifingon (o responsável pela operação Canard, concebida para o crime de Coyoacan, mudava com frequência de nome) são muito trabalhadas. Mas Sylvia Ageloff, a trotsquista amante de Ramon Mercader, uma mulher inteligente, surge como figura caricatural.
As referências a Frida Kahlo, que era companheira de Ribera, e à breve relação amorosa-sexual que a grande pintora manteve com Trotsky têm algo de telenovela.
O Trotsky do romance não convence; os agentes secretos soviéticos que desfilam pelo livro também não.
Padura exagera tanto na diabolização da NKVD (sucessora da Tcheka) que não atinge o objetivo.
Desconheço a estória das viagens do escritor para se documentar e inspirar. Mas é tão minucioso nas referências a cidades como Barcelona, Madrid, Moscovo, Paris, Nova York e México que o leitor tende a acreditar que Padura conheceu intimamente os bairros, os parques, as ruas, os hotéis, os cafés, os restaurantes por onde andou o seu "herói", candidato a assassino.
Na cidade do México tive a oportunidade de visitar em Coyoacan a Casa Azul de Frida Kahlo e a casa fortaleza onde Trotsky foi abatido. Recordei pormenores de ambas ao ler as páginas em que Padura descreve com vagares a maneira como Mercader fendeu o crâneo de Trotsky com a picareta de alpinista que levava na gabardina. Fui invadido por um sentimento de repulsa, náusea e mal-estar.
O romance perde qualidade como obra literária na terceira e ultima parte, O APOCALIPSE.
Ramon Mercader afirmou à Policia secreta e ao tribunal que a iniciativa do crime fora exclusivamente sua. Não falou sob tortura. Nos três presídios por onde passou insistiu sempre em afirmar ser o belga Jacques Mornard, embora a justiça mexicana soubesse que era o catalão Ramon Mercader.
Cumpridos os 20 anos de prisão a que foi condenado, viajou para Moscovo onde lhe foi atribuída por Krutschov a Ordem de Lenine e guindado a Herói da União Soviética. Passou a chamar-se então Ramón Pavlovitch.
Quando lhe foi diagnosticado um cancro incurável, pediu a Fidel que lhe permitisse acabar os seus dias em Cuba e o pedido foi atendido (faleceu em Havana em 1978). A sua larga permanência na Ilha terá contribuído para despertar o interesse de Padura.
Não há indícios de que tenha abdicado das suas convicções. Mas Padura submete Mercader a uma inesperada metamorfose politica após a sua instalação na União Soviética.
Quando em 1968 reencontra em Moscovo Eifingon, seu antigo tutor, Mercader que gozava então de privilégios excepcionais , o agente secreto que dedicara a vida à URSS e a Stalin, mantem com o ex-quadro da NKVD sempre segundo Padura diálogos que desconcertam o leitor.
Eifingon conta que, após a queda de Beria, passou quinze anos na prisão. E confessa ao companheiro que lhe mentiu. Diz-lhe que Stalin desejava que ele fosse morto pela segurança de Trotsky após o crime, porque vivo seria muito incómodo. Temia que falasse.
Mercader e ele, na evocação de episódios históricos, não falam como desiludidos; expressam-se com o rancor de vítimas de uma engrenagem trituradora que os teria utlizado como meros instrumentos.
Transcrevo duas reflexões de Mercader: "a confissão de que não só tinha sido usado para efetuar uma vingança, como fora considerado uma peça mais do que prescindível, fez afundar-se a ultima tábua de salvação que tinha à passagem daqueles anos cheios de desenganos e de descobertas dolorosas (pág. 567).
"Sentia o desengano a corroê-lo por dentro e a deixá-lo vazio. Os vestígios do orgulho a que, apesar das dúvidas e da marginalização, se tinha há muito agarrado com unhas e dentes, iam-se evaporando com o calor de verdades demasiado cínicas".
É a linguagem de alguém que já rompera com o comunismo.
Fica porem transparente para mim que quem fala por ambos é afinal Leonardo Padura, o escritor cubano que abomina é a palavra o socialismo e o comunismo, embora não o afirme nos seus livros.
De um amigo cubano, comentando os que emigram e os que ficam na ilha mas criticam o socialismo, recebi uma carta da qual transcrevo estas linhas:
"uma boa parte crítica porque isso é o caminho da fama, seja esta merecida ou não ( ) por vezes é também a via para a melhora económica ( ) Uma situação que dá muitos dividendos é caminhar pelo border line ".
A qualidade literária do romance cai aliás muito no último capítulo, quando Padura regressa ao narrador Ivan.
★ ★ ★
Um esclarecimento pessoal:
Desaprovei desde a juventude a trajetória de Trotsky. Mais tarde li muitos dos seus livros e critiquei em artigos e conferências o seu pensamento político, o seu frenético anti-sovietismo e a criação da IV Internacional. Mas condenei sempre a feroz perseguição de que foi alvo, o apagamento do seu nome da Historia e as acusações absurdas de cumplicidade com o nazismo.
Os erros, a intolerância, a arrogância de Trotsky não me impedem, contudo, de reconhecer que foi um revolucionário que se assumiu até ao fim como marxista e comunista.
Acrescentarei que os métodos, erros e crimes de Stalin não podem apagar que foi um revolucionário que viveu para a causa do comunismo e desempenhou um papel decisivo na derrota do Reich hitleriano, na vitória da guerra que salvou a humanidade do horror do fascismo.
Vila Nova de Gaia, 15 de Abril de 2015
Notas de rodapé:
(1) Leonardo Padura, O homem que gostava de cães, Porto Editora, 2011, 624 p., ISBN: 978-972-0-04550-8 (retornar ao texto)