MIA> Biblioteca> Miguel Urbano Rodrigues > Novidades
Primeira Edição: ODiario.info - www.odiario.info/?p=3671
Fonte: http://resistir.info
Transcriçãoe HTML: Fernando Araújo.
No homem e na mulher gregos transparece uma cultura profunda, invisível, que não se confunde com a instrução. O camponês de poucas letras acumulou ali, na corrente de muitas dezena de gerações, uma serenidade, uma coragem, uma tenacidade, transmitidas pela espantosa aventura dos seus antepassados - uma sabedoria combativa que nos faz amar os heróis da Ilíada.
As Ilhas Gregas inspiraram poetas e romancistas célebres que as cantaram e descreveram como paraísos terrestres.
Santorini, nas Cíclades, é daqueles lugares que homens de qualquer nacionalidade têm dificuldade em crer que existam.
Estive ali em Maio.
A Ilha era muito maior há 35 séculos quando um vulcão submarino a destruiu. Quase metade afundou-se em águas profundas. Aquilo que sobrou (93 km2) tem a forma de uma meia-lua irregular. No centro da baía emergiu de erupções posteriores uma ilhota negra em cujo cume se abrem crateras de um vulcão atualmente adormecido.
Por muitos séculos, a nova ilha terá sido inabitável. Mas gentes do Arquipélago, atraídas pela sua beleza, fixaram-se ali. E no rodar do tempo, lavas e cinzas transformaram-se em terra fértil onde foram plantadas vinhas que produzem um vinho digno dos deuses do Olimpo.
Por ali passaram gregos, bizantinos, árabes, turcos, cruzados, venezianos.
A população residente ronda hoje 15 mil pessoas. Mas a Ilha é invadida permanentemente por densas hordas turísticas.
No lado voltado para a baía, uma escarpa rochosa despenha-se abruptamente sobre o mar de uma altura que oscila entre os 200 e os 300 metros.
Aldeias com a brancura das alentejanas aninham-se, encasteladas, à beira de precipícios medonhos. O casario desce pelas falésias hotéis, restaurantes, lojas, cafés, residências abobadadas (modestas e apalaçadas) em equilíbrios que assustam. Andei por duas, Fira e Oia. Recordadas, desfilam pela memória como criações humanas na aparência impossíveis.
Na costa leste, o planalto desce suavemente para morrer no mar. Em praias de areias negras, de lavas desfeitas, o mundo turístico exibe o seu rosto século XXI.
Mas Santorini projeta também o forasteiro para uma estranha cidade morta, que nasceu e morreu no extremo sul da Ilha a duzentos metros das águas azuis do Egeu. Akrotiri se chama. Escavações recentíssimas, empreendidas com a técnica da mais avançada arqueologia grega, arrancaram ali do solo vulcânico as ruínas de uma cidade pré-histórica onde floresceu uma civilização de raiz minoica da idade do bronze tardio.
Imaginei-me no século XVI antes da Nossa Era ao contemplar as ruas, as casas, as praças, talhas que lembram as alentejanas, o mobiliário, as esculturas e os frescos (hoje expostos no museu de Fira) de uma civilização desaparecida.
Como sintetizar a emoção do descobrimento de Santorini?
Aquela Ilha mágica fez-me viajar durante quatro dias pela esquecida capacidade do homem para criar formas de viver, e culturas contraditórias no planeta Terra.
Encostado ao mármore frio de uma coluna dos Propileus encimada por um capitel dórico, o meu pensamento subiu pelo tempo e revi-me em 1953 sentado nos degraus do Pártenon, contemplando Atenas.
Semanas depois escrevi um artigo sobre a Grécia no Diário de Noticias. Dele nada recordo. Mas sei que não estava preparado para compreender aquilo que via.
Desde então acumulei conhecimentos e difere muito a minha perspetiva sobre a aventura do homem na Historia.
A Acrópole foi tocada por múltiplas obras de restauração, a escadaria de acesso aos Propileus não existia, a imagem do Pártenon é outra e a Grécia do ano 2015 um país então inimaginável.
Nos Propileus é outra hoje a minha meditação.
O Tempo não parou, nunca pára, mas abraçando com o olhar parcelas da Acrópole sinto que os templos erguidos na pequena planura que coroa aquele paredão rochoso transmitem mensagens permanentes de uma cultura que marcou decisivamente o caminhar maravilhoso e trágico da humanidade.
Viajando por 25 séculos, tento imaginar a Atenas destruída pelo persa Dário e reconstruida por Péricles, o grande heleno a quem devemos o Pártenon, o estadista que foi arquiteto da muito citada democracia grega, antítese das tiranias coevas, mas que era afinal a ditadura de uma classe aristocrática que oprimia a esmagadora maioria, privada do direito de voto.
O cântico de elogios à Grécia como "pátria da democracia", tradicional nos políticos e intelectuais neoliberais da União Europeia e dos Estados Unidos, é hipócrita e falseia a História.
A Grécia foi o primeiro país dos Balcãs a libertar-se do jugo Otomano. Mas o sujeito da insurreição vitoriosa foi o povo e não a burguesia.
Já durante a ocupação turca se formara no país uma próspera burguesia que se expandiu após a independência. Essa classe nada tinha de democrática. A instalação da monarquia, implantada com o patrocínio da Inglaterra, da Áustria, da França e da Rússia favoreceu os interesses dessa burguesia que colaborou sempre com os reis estrangeiros e o imperialismo.
A luta de classes acentuou-se a partir do início do século XX. É significativo que o Partido Comunista da Grécia tenha sido o primeiro na Europa, depois do Búlgaro, a ser fundado após a Revolução Russa de Outubro de 1917.
Durante a II Guerra Mundial as camadas mais influentes da burguesia colaboraram com os ocupantes fascistas e posteriormente foram aliadas dos ingleses na feroz repressão desencadeada contra o Exército da Democracia ELAS.
Inimigos da democracia e da classe trabalhadora foram obviamente os armadores multimilionários que controlaram (e controlam) a marinha mercante grega. Dois deles, Onássis e Niarkos, tornaram-se figuras veneradas pelo chamado jet set internacional. Exemplificam bem a afirmação de Marx de que o capital não tem pátria.
A perversão desinformava do sistema mediático internacional não pode ocultar a realidade: quem na Grécia ao longo do tempo se bateu pela democracia foi a classe trabalhadora. A burguesia foi sempre incompatível com os seus valores e princípios.
Do lugar onde me encontro vejo o Pártenon e o templo de Atena, mas não o Erecteion.
O que sentiriam os atenienses ao participarem na procissão das Grandes Panateneias, na Acrópole, quando os templos da colina sagrada eram um festival de cores?
Sempre tive dificuldade em avaliar a atitude dos antigos gregos perante a religião. A sua mitologia com mais de 3000 divindades é fascinante. Mas o que significavam para eles os deuses? Até Alexandre procedia a sacrifícios. Acreditaria nesse ritual e na sua origem divina?
O que na Acrópole sobrou de múltiplas agressões que a atingiram ao longo dos séculos é ainda deslumbrante. A última foi o bombardeamento pelos ingleses, após a II Guerra Mundial. Mas o esforço de imaginação não permite atravessar o tempo e contemplar o que "aquilo" foi, os monumentos e os homens que os conceberam.
Percorri com lentidão os salões do Museu da Acrópole. Não creio que exista no mundo museu semelhante. Detive-me em meditação na galeria que exibe peças dos frisos dos Frontões do Pártenon. Algumas, poucas, são originais encontrados nas escavações. A maioria são réplicas dos frisos roubados por Lord Elgin, o magnate-pirata inglês que os levou para Londres e os ofereceu ao British Museum onde se encontram ainda.
Refleti ali sobre as guinadas da História. Quando os bretões da futura Inglaterra ainda viviam em cavernas e cabanas, a cidade-estado de Atenas na Península da Ática acumulava saberes que anunciavam uma civilização vocacionada para mudar o rumo da Humanidade Ocidental.
Em vésperas de uma saga inesperada, Atenas enfrentou um enorme desafio para sobreviver. Quando Temístocles e Milcíades derrotaram os invasores persas, a Grécia inteira era um pequeno país comparada com o império do Rei dos Reis.
As vitórias sobre Dario e Xerxes foram o prólogo do que parecia impossível. O pigmeu venceu o gigante.
Transcorrido um século, um príncipe da Macedónia, estadista e general superdotado, atravessou o Helesponto e levou a cultura grega ao coração do que da Ásia se conhecia. Polis helénicas surgiram nas remotas estepes da Báctria, à beira dos píncaros nevados do Pamir. Terá sido Alexandre o primeiro governante a conceber a ideia do Estado Universal.
Caminhando pelo Museu da Acrópole, acariciando com o olhar esculturas de Fídias e Praxiteles e dezenas de estátuas de deuses e deusas do panteão grego, senti-me invadido por uma certeza que contrariava a lógica aparente das coisas.
Trabalhando os mármores do Pentélico há 25 séculos, os artistas da época atingiram um nível de perfeição, harmonia e rigor quase insuperável. Somente após séculos de escuridão relativa seriam igualados na Itália renascentista pelos grandes mestres de Florença e Veneza.
A revolução nas artes, introduzida por um povo tão pobre de recursos naturais, foi alias acompanhada por uma revolução científica. Na filosofia, na matemática, na geometria, na geografia, na astronomia, na medicina, a Grécia foi precursora de inovações científicas prodigiosas. Os materialistas gregos, Epicuro e Demócrito, inspiraram Marx na formulação do materialismo histórico.
De Heródoto se diz que foi o pai da História. Eu penso em Xenofonte, no seu Anábase, para mim livro de cabeceira desde a juventude.
★ ★ ★
Encantou-me nos últimos dias palmilhar quilómetros pelas ruas de Atenas, numa despedida da cidade revisitada. Sabia que não voltaria. Mas essa certeza dolorosa era atenuada pelo sentimento de admiração pelo povo grego.
A crise não apagou nele a alegria de viver, a confiança de que o sol voltará a brilhar na boca do túnel, tal como ocorreu em muitas outras crises da sua dramática história milenar.
No homem e na mulher gregos transparece uma cultura profunda, invisível, que não se confunde com a instrução.
O camponês de poucas letras acumulou ali, na corrente de muitas dezena de gerações, uma serenidade, uma coragem, uma tenacidade, transmitidas pela espantosa aventura dos seus antepassados - uma sabedoria combativa que nos faz amar os heróis da Ilíada.
Ao contemplar a Acrópole sinto que ela ajuda a compreender o povo grego e a Humanidade.
Atenas, Junho de 2015