Lutas dos presos políticos do pavilhão “B” da cadeia do forte de Peniche

(Relatório)

Francisco Martins Rodrigues

Setembro de 1973


Transcrição: Ana Barradas.

HTML: Fernando Araújo.

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Estes apontamentos clandestinos foram feitos passar para o exterior da cadeia por intermédio de familiares ou amigos, possivelmente em Setembro de 1973. O regime prisional tinha-se tornado menos duro graças às muitas lutas que estes presos, concertados entre si, desencadeavam desde 1970 contra a direcção da prisão e os seus agentes, os guardas carcerários. Mas continuava a ser muito pesado, como se pode ver pelo relato abaixo, necessariamente esquemático por causa das condições em que foi elaborado. Contudo, dele transpira, por parte dos presos, a determinação indómita pela conquista de direitos, o espírito de unidade e a evidente organização colectiva das acções e atitudes assumidas e, por parte das autoridades prisionais, a crueldade, perversão e demência da repressão fascista. [Os textos entre parêntesis rectos são da autoria de Ana Barradas]

CASTIGOS DESDE JUNHO DE 70

15/6/70
— 4 dias de segredo a João Pulido Valente
19/6/70
— 15 dias de corte de visitas a João Pulido Valente
— 6 dias da mesma punição a Fernando Branco, J[osé] Luís d’Espiney e Rui d’Espiney
22/6/70
— 60 dias de corte de visitas a Fernando Brederode Santos e Vítor Catanho
25/6/70
— 30 dias de cela de habitação [encerrado na própria cela, em isolamento] a Sebastião Martins dos Santos
— 20 dias de cela de habitação a Joaquim Ramos
— 15 dias de cela de habitação a Fernando Brederode Santos e Vítor Catanho
— 60 dias de cela de habitação a Domingos Arouca, Fernando Branco, Francisco [Martins] Rodrigues, João Pulido Valente, J. Luís d’Espiney, Rui d’Espiney e Vítor Soares
26/6/70
— 10 dias de cela de habitação a Nuno Rebocho
4/7/70
— Cortados os recreios, sem notificação prévia, por dois dias, a [José] António Condeço, António Pereira, Carlos Biló Pereira, Fernando Marques, Henrique Guerra [angolano], José Inácio Caetano e Manuel Torrão Correia
5/7/70
— Privação de visitas, sem notificação prévia, e até ao dia 9, a António Condeço, Carlos Biló Pereira e Fernando Marques
22/9/70
— 5 dias de privação de recreio a Fernando Brederode Santos, Fernando Marques, Joaquim Ramos e José Guerreiro
23/9/70
— 20 dias de privação de recreio a Fernando Brederode e José Guerreiro
2/10/70
— 10 dias de cela de habitação a Fernando Brederode Santos, Joaquim Monteiro Matias, José Saldanha Sanches e Nuno Rebocho
--/11/70
— 5 dias de cela disciplinar a José Lucas
30/11/70
— 4 dias de segredo a José Saldanha Sanches
--/1/71
— 3 dias de cela de habitação a Ângelo Veloso [este no pavilhão A, que não participava nas lutas]
8/2/71
— 3 dias de segredo a José Lucas
15/2/71
— 12 dias de segredo a Nuno Rebocho
(Entre outras restrições arbitrárias, registou-se, ao longo deste período, a interdição de entrada de géneros para a celebração dos seus aniversários a [José] António Condeço, Filipe Aleixo, Francisco [Martins] Rodrigues, Henrique Guerra, Manuel Torrão Correia, Nuno Rebocho e Saul Nunes. Foi ainda indeferida, por ocasião do seu aniversário, visita em comum com familiares a José Saldanha Sanches — tudo sob o pretexto de “mau comportamento”)
25/12/71
— 3 dias de segredo a José Lucas
13/8/72
— Despacho do Director não permitindo a Eurico falar francês com os filhos. Protesto de Eurico. Castigo de corte de visitas em comum por 8 dias
14/8/72
— Exposição ao Director. Vamos às visitas e [depois] abandonamos [o parlatório, como forma de protesto]
15/8/72
— Vamos ao início da vista e abandonamos em solidariedade com Eurico por 8 dias
21/8/72
— Casamento de Eurico sem problemas e falando francês com os filhos. Levantamento da greve das visitas

AGRESSÕES

Para além das ameaças de violência, múltiplas vezes formuladas, ou mesmo esboçadas, houve agressões:

6/7/70
— sobre Nuno Rebocho por resistir à alimentação artificial forçada [estando em greve de fome]
2/10/70
— sobre [José] António Condeço, Fernando Branco, Manuel Torrão Correia e Francisco [Martins] Rodrigues, num brutal espancamento a cassetete

GREVES DE FOME

Como medida reivindicativa, a maioria das vezes, de levantamento de castigos, praticaram a greve da fome os seguintes presos:

25/6/70
— Domingos Arouca, Fernando Branco, Francisco [Martins] Rodrigues, João Pulido Valente, José Luís d’Espiney, Rui d’Espiney e Vítor Soares (greve de três dias)
26/6/70
— [José] António Condeço, António Pereira, Carlos Biló Pereira, Fernando Brederode Santos, Fernando Marques, Henrique Guerra, Joaquim Ramos, José Inácio Caetano, Manuel Torrão Correia, Sebastião Martins dos Santos, e Vítor Catanho (3 dias)
27/6/70
— Filipe Aleixo, José Saldanha Sanches, Nuno Rebocho, Saul Nunes (1 dia)
2/7/70
— Domingos Arouca, Fernando Branco, Filipe Aleixo, Francisco [Martins] Rodrigues, João Pulido Valente, J. Luís d’Espiney, J. Saldanha Sanches, Nuno Rebocho, Rui d’Espiney, Saul Nunes, Vítor Soares (6 dias)
(Ao 3º dia foram transferidos da cadeia João Pulido Valente, Rui d’Espiney e Vítor Soares; ao 5º foram submetidos a alimentação artificial forçada, através de sonda, os restantes presos, à excepção de Domingos Arouca [advogado originário de Moçambique, possivelmente o preso mais idoso e sofrendo de vários padecimentos])
2/10/70
— [José] António Condeço, Fernando Branco, Fernando Brederode Santos, Filipe Aleixo, Francisco [Martins] Rodrigues, Joaquim Monteiro Matias, J. Saldanha Sanches, Manuel Torrão Correia e Nuno Rebocho (3 dias)
30/11/70
— J. Saldanha Sanches (4 dias)
8/2/71
— [José] António Condeço, António Pereira, Carlos Biló Pereira, Joaquim Ramos, José Lucas e Sebastião Martins Santos [Capilé], (3 dias)
15/2/71
— Alexandre [Alhinho] Oliveira, Fernando Branco, Filipe Aleixo, Francisco [Martins] Rodrigues, J. Saldanha Sanches, Nuno Rebocho e Saul Nunes (3 dias)
26/12/71
— Nuno Rebocho, José Lucas, Francisco [Martins] Rodrigues, Henrique Guerra, Sebastião Capilé, Joaquim Ramos, Daniel Beles, Rui Ramos [angolano]
24/12/72
— [Greve] política, por Domingos Arouca não ter sido abrangido pela supressão de medidas de segurança: Domingos Arouca, Francisco [Martins] Rodrigues, Rui d’Espiney, Henrique Guerra, Rui Ramos, Fernando Branco, Joaquim Pinto de Andrade [angolano], João Pulido Valente, José Lucas e Daniel Beles (3 dias)
26/7/73
— Brígido da Palma, José Eurico, António Quintas, Carlos Cardoso e Luís Pedro Coelho para mudança do pavilhão A para o 1º B
27/7/73
— Mudança de Eurico, Palma, Quintas, Carlos Cardoso, Luís Pedro Coelho do pavilhão A para o 1º B. Separação dos presos à bruta, não deixam subir companheiros [para o pavilhão B]. Participam: Francisco [Martins] Rodrigues, Rui d’Espiney, Nuno [Cunha] Porto, José Mário [Costa] Fernando Branco, Henrique Guerra, Rui Ramos, Joaquim Vieira, Carlos Saraiva da Costa, Charters [de Almeida], João Pulido Valente, Raul Caixinhas, Fernando Reis [Rex], Pedro Malho, José Eurico, Brígido da Palma, António Quintas, Luís Pedro Coelho, Carlos Cardoso, Licínio Silva, Carlos Tomás, Rui Teives, Pedro Alves e Luís Fraga.

INOBSERVÂNCIA DO NOVO REGULAMENTO E RECUSA DE CONCESSÕES NELE PREVISTAS

2/6/71
— indeferido almoço e visita em comum a Vítor Soares pelo seu aniversário
5/6/71
— proibido Vítor Soares de escrever ao seu advogado (decisão sancionada pela DGSP [Direcção Geral dos Serviços Prisionais])
6/6/71
— indeferido pedido de Nuno Rebocho para visita de um primo
12/6/71
— proibida a entrada da revista “Seara Nova” a Francisco [Martins] Rodrigues
13/6/71
— embargada a carta de Filipe Aleixo para um familiar além do 3º grau
16/6/71
— embargada carta de Henrique Guerra para uma prima
— indeferido pedido de Henrique Guerra para visita em comum com uma prima no aniversário (não tem familiares mais próximos)
20/6/71
— proibida a entrada da revista “Vida Mundial” para Fernando Brederode
23/6/71
— embargada a carta de Nuno Rebocho para uma prima
26/6/71
— arquivada uma carta de Henrique Guerra para o Instituto Industrial de Lisboa, a tratar da matrícula que está autorizada pela DGSP
27/6/71
— apreendido um jogo de xadrez que José Lucas [que o fez com miolo de pão] pretendeu oferecer à família
— embargado um recurso de Fernando Brederode para a DGSP, impondo-se um anti-regulamentar pedido prévio ao Director
2/9/71
— recusada a entrada de livros em francês e inglês a Francisco [Martins] Rodrigues e José Lucas
3/9/71
— recusada a entrada de uma publicação oficial a Nuno Rebocho

Não tendo até hoje recebido qualquer resposta à sua exposição de 7 de Outubro, na qual se dava conhecimento de um brutal espancamento praticado por guardas desta Cadeia sobre si e os seus companheiros Manuel João Torrão Correia, [José] António Condeço e Fernando Branco no dia 2 desse mês, vem o exponente manifestar a V.E. a sua indignada estranheza por um facto de tal gravidade ser deixado passar em claro, sem o necessário inquérito para apuramento de responsabilidades e procedimento contra os culpados.

É do conhecimento dos presos que a direcção da Cadeia e a DGSP, para ocultar as suas responsabilidades, puseram a correr uma versão fantástica dos acontecimentos, pretendendo que os presos apenas foram “metidos na ordem”, por meios “moderados”, devido a terem-se amotinado, destruído instalações prisionais e inclusivamente agredido um guarda.

Torna-se necessário portanto repor a verdade dos factos, de forma a que não subsistam quaisquer equívocos, tanto mais que a direcção da Cadeia impede por todas as formas que os presos revelem essa verdade, não só às suas famílias, mas até mesmo aos seus advogados constituídos.

1. O que se passou afinal na noite de 2 de Outubro?

A verdade é que os quatro presos referidos protestaram nesse dia pela 20, 40 horas, com gritos e socos numa porta, contra restrições que vinham sendo introduzidas à sua movimentação no piso onde se encontram;

Estes são os factos que nenhuma mentira pode alterar. Não houve motim; nem agressão a guardas, nem destruição de instalações. Houve sim, uma agressão brutal sobre quatro presos, agressão que nada justifica. A não ser que se considere o cassetete como uma a resposta adequada para qualquer reclamação dos presos. E é esse realmente o ponto de vista da direcção da Cadeia e da DGSP, como se mostra a seguir.

2. Desmascarada a lenda do “motim”, pode ainda pôr-se em dúvida que os presos tivessem um fundamento sério para o protesto ruidoso que efetuavam e que deu lugar à agressão.

Com efeito, a DGSP e a direcção da Cadeia, para completarem a deturpação dos factos, alegam que o incidente foi deliberadamente provocado pelos presos, segundo uma táctica de “contestação” (!), tendo como objectivo forçar as autoridades prisionais à repressão e ao odioso daí resultante. Para dar maior cunho de veracidade a esta fábula, o Sr. Director-Geral dos Serviços Prisionais afirma até que a direcção da Cadeia estaria no conhecimento do “plano subversivo” dois dias antes de ele ser posto em prática!

A isto o exponente só pode responder com o relato de mais alguns factos elucidativos.

A partir do dia 21 de Setembro, a direcção da Cadeia começou a introduzir toda uma série de limitações à movimentação dos presos no piso, regressando a um regime que há muito caíra em desuso, por se reconhecer o seu carácter humilhante e injustificado; por exemplo, a exigência de que os presos, deslocando-se no corredor, devidamente autorizados para tal, tenham ainda que pedir autorização ao guarda para se servirem dos sanitários; a exigência de que os presos, estando sentados à mesa durante as refeições, tenham que pedir autorização de cada vez que pretendam ir à copa contígua buscar um simples copo de água; a exigência de que os presos sentados à mesa peçam autorização ao guarda de cada vez que pretendam servir-se dum armário colocado a meio metro dessa mesa…

A enumeração de todos os “regulamentos” deste tipo tornar-se-ia fastidiosa, mas teria talvez a vantagem de dar um retrato mais vivo da mentalidade mesquinha e doentia de quem os concebeu. Tais preceitos absurdos, justificados com o imperativo da segurança prisional, revelam na realidade a ideia fixa de “disciplinar” os presos através da humilhação, forçando-os a pedirem o consentimento do guarda para o mais pequeno gesto.

É uma concepção já suficientemente conhecida, que visa estabelecer nas cadeias políticas o regime penitenciário mais severo, equiparando os presos políticos a delinquentes incorrigíveis.

Às observações feitas pelos presos, em termos correctos, contra a inutilidade destas restrições vexatórias, responderam as autoridades prisionais com novas restrições, introduzidas sucessivamente e sem qualquer explicação ou aviso, a ponto de em cada dia os presos se interrogarem sobre que novos “regulamentos” iriam surgir no dia seguinte. Chegou-se assim ao extremo, no dia 2 de Outubro, de manhã, de se impedir a saída da cela aos presos no período das 7 às 8 horas, quando as portas de todas as celas estão abertas, precisamente para que os presos possam livremente proceder às operações de higiene diária!

Não é de admirar que os presos tenham chegado nesse dia ao extremo limite da paciência e tenham protestado em voz alta contra tal regime delirante. O que é de salientar, pelo contrário, é o autodomínio com que foram acolhidas as sistemáticas e insolentes ameaças de violência que, logo desde o dia 21 de setembro, haviam começado a ser feitas pelos guardas e que conduziam à aplicação de pesado castigo disciplinar sobre um grupo de presos num outro piso do mesmo pavilhão.

Na realidade, os factos mostram que o incidente foi cuidadosamente planeado, mas não pelos presos. Foram as autoridades prisionais que forjaram, doseando dia a dia as arbitrariedades, até forçarem os presos a uma reacção que desse o pretexto para a agressão antecipadamente decidida. Senão, como explicar a proibição absurda de os presos saírem livremente das suas celas entre as 7 e as 8 horas, proibição que só se verificou no dia 2, não voltando depois a ser invocada? Como explicar que o guarda de serviço tenha mantido os três fechados no refeitório, apesar de estes pedirem repetidamente para regressarem às celas? Como explicar que, às 20:45, logo após os presos terem protestado, um guarda tenha gritado do exterior: “Nós já aí vamos!”? Como explicar que o enfermeiro, contra o que é habitual, se encontrasse na cadeia a essa hora? Como explicar a exclamação dos guardas agressores: “Vão pagá-las todas!”?

Perante a evidência irrecusável do que atrás fico exposto, pode haver quem condene o procedimento das autoridades prisionais considerando preferível contudo dar o assunto por arrumado. Não é essa a opinião dos presos. Não só porque se sentem no direito de reclamar justiça, como e sobretudo porque tudo indica que o período de provocação e agressões está muito longe de se ter encerrado. Sintomas que não iludem mostram estarem em preparação activa novos e sérios incidentes.

Em 1º lugar: Desde o espancamento de 2 de Outubro, o pessoal da Cadeia (chefe de guardas, chefe de pavilhão, guardas) passou a ameaçar correntemente os presos com pancada, a propósito de qualquer reclamação destes. É preciso frisar que isto só não deu ainda lugar a um grave incidente na cadeia devido ao extremo cuidado dos presos em se dominar mas, a persistir tal prática, o incidente surgirá decerto. Tratar os presos políticos como garotos de escola, agitando-lhes o espantalho da sova, é um erro de cálculo grosseiro e um insulto que eles não podem tolerar indefinidamente.

Em 2º lugar: no dia 21 de Novembro reiniciou-se a febre dos “regulamentos” com mais uma invenção bizantina dispondo que os presos, ao dirigirem-se aos guardas, não poderão dizer: “Vou ali” ou “ Preciso de ir ali”, mas terão de usar outros termos (que não se especificam) caso contrário não serão atendidos. Pergunta-se: O que é exactamente que a direcção da Cadeia espera impor desta vez? Até onde pretende ir?

Desde já, pela experiência adquirida, os presos chegaram a uma conclusão: novos espancamentos estão em projecto e apenas se procura um pretexto para os desencadear. As razões para tal decisão não estão claras para os presos. V. Exª conhecê-las-á melhor decerto. Um ponto contudo está fora de dúvida: os presos não procuram incidentes nos quais a sua integridade física é ameaçada, mas também não os temem.

Em conclusão, o exponente solicita mais uma vez a V. Exª a realização de urgente inquérito para apuramento de responsabilidades.

Tenho conhecimento de que se encontra há 3 dias no segredo o meu companheiro José Saldanha Sanches. Voltando a empregar este método desumano de punição, após ter sido posto de parte durante tantos meses, a direcção da cadeia mostra não só o nenhum caso que faz das garantias anteriormente dadas, como a sua intenção de continuar a agravar a situação prisional até encontrar um pretexto para novos espancamentos como os que tiveram lugar há dois meses. Se tal for a intenção da direcção da cadeia, os presos não o poderão evitar mas também não o receiam.

Reclamo a imediata saída do segredo do meu companheiro J. Saldanha Sanches e informo desde já que tomarei as medidas de solidariedade que a situação exige.

Director

Como é do conhecimento de V. Exª, em resultado do espancamento que me foi aplicado por guardas desta cadeia no dia 2 de Outubro, fiquei a sofrer de perturbações renais que exigem a adopção de uma alimentação especial e sem sal há já três meses. Ontem, ao jantar, constatando que não me era distribuída a dieta habitual, dirigi-me ao chefe de pavilhão, o qual, depois de comunicar com a cozinha, me informou que não fora feita comida especial para mim; que ignorava a razão disso; que na cozinha não tinham alimentos para me confeccionar o jantar e que portanto, comesse do rancho normal !!! Perante a revoltante estupidez da resposta pedi para falar com o chefe dos guardas ou outra pessoa responsável da cadeia, sendo-me dito que ninguém estava para me atender. O meu jantar ficou assim reduzido à fruta e ao pão que me tinham antecipadamente distribuído.

Porque já não é a primeira vez que se verificam faltas e alterações arbitrárias à dieta que me está estipulada pelo médico da cadeia, e porque não é de admitir que o meu estado de saúde, já bastante prejudicada pelas violências sofridas, se agrave ainda mais devido aos descuidos, desinteresse ou má vontade dos serviços prisionais, dirijo-me a V. Exª protestando contra tais abusos e reclamando ordens efectivas para que seja assegurada a alimentação adequada à minha doença.

Sr. Director Geral dos Serviços Prisionais

Como V. Exª estará recordado, no dia 2 de Outubro fui, juntamente com 3 outros meus companheiros, brutalmente sovado a cassetete por um grupo de guardas desta cadeia, em cumprimento de ordens emanadas, segundo creio, dessa mesma Direcção-Geral.

Posteriormente, como me queixasse de fortes dores nas costas, foram-me feitas uma radiografia e uma tomografia ao tórax e diversas análises e autorizada a consulta de um fisiologista, paga à minha custa. Verificou-se que eu não tenho qualquer afecção pulmonar, como chegara a supor (e como era de recear, dada a brutalidade dos espancamentos e o facto de ter sofrido de tuberculose durante muitos anos), mas verificou-se também que as análises acusavam uma taxa elevada de ureia no sangue, pelo que me foi estabelecido um regime especial de alimentação que ainda se mantém.

No passado dia 15, tendo eu ido consultar o médico da cadeia a propósito da renovação dum medicamento, e como mencionasse dores que sentira dias antes na região do rim esquerdo, teve aquele médico o desplante de se referir depreciativamente às minhas queixas como “minhoquices”, dando a entender que os meus padecimentos são imaginários ou simulados. Justamente indignado, abandonei imediatamente a consulta por não estar disposto a ser achincalhado.

É pois a V. Exª que me dirijo agora para expor a situação e a pedir as providências que o meu estado de saúde parece exigir, ou seja, a realização de exames aos rins e de outros que porventura se verifiquem necessários. Com efeito, tenho todas as razões para relacionar a alta taxa de ureia que se manifestou desde há 3 meses com o espancamento sofrido e para admitir, portanto, que existam quaisquer lesões ou perturbações a requerer um tratamento que até agora me tem sido negado.

As razões em que baseio esta suposição são as seguintes:

  1. Quando do espancamento (feito com os cassetetes voltados, de forma a ferir os presos com os ferros dos mesmos) uma das pancadas atingiu-me na região do rim esquerdo. Durante dois dias, fiquei prostrado na cama sem me poder mexer, com fortes dores nas costas e sobretudo na região do rim esquerdo. (Nenhuma assistência médica ou de enfermagem me foi prestada nesses dias).
  2. Nesses mesmos dois dias urinei sangue; a urina apresentava-se fortemente avermelhada e assim continuou ainda no terceiro dia, embora em menor grau. Não posso entender senão como chacota ou total inconsciência a “explicação” dada pelo médico da cadeia de que a urina sangrenta podia resultar do meu “estado emocional” (!!)
  3. Nos dias que se seguiram, verifiquei uma diminuição anormal da micção a que na altura não atribuí importância. Foi só quando comecei a tomar um medicamento apropriado que a micção se normalizou.
  4. Uma pesquisa da ureia no sangue, realizada cerca de 15 de Outubro, denunciou a presença duma taxa elevada de ureia (0,55 gr/l). É de esclarecer que eu nunca sofrera antes de qualquer afecção renal e que uma pesquisa de ureia, realizada pouco antes de ser preso, no decurso de um exame médico de rotina, revelava uma taxa normal. O excesso de ureia apareceu assim associado, segundo tudo leva a supor, à pancada sobre o rim.
  5. Apesar de fazer durante 2 meses consecutivos dieta sem sal (de 20 de Outubro a 20 de Dezembro) e de tomar sem interrupção um medicamento diurético, a taxa de ureia teve uma redução insignificante (0,53 gr/l em 20 de Dezembro). O médico da cadeia que ao fim do 1º mês de dieta me dissera que, a persistir a ureia àquele nível, “o caso seria sério”, não teve pejo de afirmar, ao fim do 2º mês, quando se constatou que não houvera normalização, que o caso “não era para alarme”, recusando o exame ao rim que então lhe sugeri.
  6. Foi só depois de adoptar um regime severo, composto apenas de fruta e vegetais, que a taxa de ureia baixou e, ainda assim, menos do que seria de esperar com tal regime, ficando-se em 0,43 gr/l no dia 8 de Janeiro. Como parece evidente, a descida da ureia após serem banidas as proteínas e o sal da alimentação não prova de modo nenhum que os rins funcionassem normalmente.
  7. Desde o espancamento que não deixei de sentir dores nas costas, por vezes violentas, dores cuja origem desconheço e, mais espaçadamente, dores na região do rim esquerdo.

Os factos que aqui deixo relatados são do inteiro conhecimento do médico da cadeia, como é óbvio. Parece que seriam suficientes para que qualquer médico com um mínimo de consciência profissional ordenasse um exame completo, a fim de se certificar de que não existe lesão ou qualquer tipo de perturbação. Mas para o médico da cadeia trata-se de “minhoquices”. Uma tal atitude qualifica por si só o médico e a cadeia que emprega os seus serviços. Em conclusão: Ceio que as circunstâncias descritas não me permitem estar tranquilo quanto ao meu estado de saúde e justificam amplamente a realização de exames médicos e a consulta de um especialista. Solicito de V. Exª as providências necessárias nesse sentido.

A CORJA

  1. POUPA — Inimigo público nº 1. Foi durante muitos anos o rei dos carrascos. Provocava e participava constantemente. Cada dia que vinha mal-disposto começava a implicar com um preso qualquer até lhe arrancar um castigo; agredia presos. Considerado como um desequilibrado perigoso, os presos abaixavam-se diante dele, até que em 1970 o Pulido lhe chamou filho da puta e cara de porco e desencadeou a reacção que levou a fazê-lo sair deste pavilhão. Os revisas [revisionistas, presos membros do PCP] que já se davam bem com ele mas passaram a querer-lhe mais ainda depois dos espancamentos, procuravam metê-lo em chefe do pavilhão B. Nossa atitude — não aceitamos que ele entre em serviço no piso ou a chefe de pavilhão; se isso acontecesse seria caso para desencadear greve da fome imediata; não aceitamos que nos fiscalize as visitas; não o acompanhamos para lado nenhum, protestando com a maior violência se o tentarem impor.
  2. CAVACO — inimigo público nº 2. Espancador em 1970. Tipo odiento e de maus instintos, está sempre à espera de oportunidade para voltar a atirar-se aos presos e a provocar como fazia antes.
    Nossa atitude: não lhe dirigimos a palavra seja para o que for nem aceitamos recados dele: não nos deixamos revistar por ele, não seguimos com ele para a visita, não aceitamos a visita fiscalizada por ele. Só toleramos ir com ele ao recreio, médico e enfermaria, visto que não lhe dá oportunidade de intervir sobre nós. Encaramos aumentar mais a boicotagem a este bandido à primeira provocação que nos faça.
  3. VIEIRA — foi durante os anos 1959-67 um dos recordistas em provocações, ameaças e participações, mandando muitos presos para o segredo; interrompia as visitas, implicava com os presos nas celas, sempre com modos de carrasco; tinha a alcunha de “nazi”. Nos últimos anos começou a fazer-se manso à nossa frente, mas não perde ocasião de participar tudo o que oiça. Depois da última bufadela deixámos de lhe falar.
  4. CARVALHO — um dos espancadores de 1970, especialista em participações mentirosas para provocar castigos: uma vez, no [pavilhão] A, participou que os presos lhe tinham rasgado a camisa; quando dos espancamentos de 1970, participou que tinham sido os presos a agredir os guardas, tendo estes agido em “legítima defesa”. Jesuíta e mentiroso, jura que nunca fez nada e pede para lhe falarmos, mas não se emenda. Há uns três meses meteu conversa com famílias nossas, dizendo que havia aqui três presos muito maus que influenciavam os outros; atacado por nós, pediu desculpa e disse que não tornaria, mas continuamos a não o cumprimentar; só lhe dirigimos a palavra em caso de absoluta necessidade.
  5. MARQUES “intelectual” — participou nos espancamentos de 1964 e durante meses continuava a provocar os presos, impedindo-lhes a passagem no corredor a ver se lhe tocavam sem querer e tinha pretexto para espancar. Provocou Capilé, por estar encostado à janela (numa sala do A), mandando-o para o segredo. Provocou Fernando Rosas à saída duma visita (“o senhor aqui é um zero”), fizemos-lhe uma tourada e cortámos com ele. Pouco tempo depois veio pedir-nos desculpa e voltámos a falar-lhe. É fascista — colonialista ferrenho e amigo de pides. Em 1973, quando do corte da visita ao Eurico, disse “que tinha sido castigado por causa dos presos”.
  6. ROSA — chefe do pavilhão B até 1972, participou nos espancamentos de 1964 e preparou a série de provocações que culminou nos espancamentos de 1970; só não participou neles por ter estado de férias na véspera. Tirano mesquinho e estúpido, passava a vida a inventar regulamentos e picuinhas para oprimir os presos. Provocou muitos castigos e ameaçou presos de pancada várias vezes. Desde há um ano passou a fazer serviço no gabinete do chefe, de quem é sabujo devotado, entrando em todas as provocações que ele inventa. Depois de uma discussão violenta, chamámos-lhe lacaio do chefe e deixámos de lhe falar.
  7. LOPES — gostava de provocar e participar. Quando da vinda dos deputados à cadeia em 1971, como o nosso camarada Lucas denunciou os espancamentos, no dia seguinte este guarda provocou-o sem mais nem menos e mandou-o para o segredo. Quando da greve da fome de Dezembro de 1972, de solidariedade ao Arouca, veio a chefiar a matula que invadiu as celas, agarrou o Rui d’Espiney e teve atitudes ameaçadoras. Deixámos de lhe falar nessa altura. Anda agora com modos mansos a ver se se reabilita.
  8. ESTÊVÃO — foi durante muitos anos o chefe do pavilhão A, que era uma espécie de feudo dele, onde impunha regulamentos absurdos da sua autoria, proibindo tudo e mais alguma coisa, roubando sapatos e toalhas que estavam fora do lugar por ele determinado, etc. Espicaçava os guardas para andarem em cima dos presos e participarem constantemente. Foi o organizador do espancamento de 1964. Em 1968 chegou a haver no A uma dúzia de presos à espera de vez para irem cumprir castigo no segredo, alguns de 30 dias. Passou desde há um ano para o gabinete do chefe, de que é sabujo fiel, com o ROSA e o PINTO. Quando o vemos por acaso não lhe falamos.
  9. PINTO — só faz há muitos anos serviço de secretaria, como ajudante principal do chefe. Nunca descansa na tarefa de inventar regulamentos e picuinhas, para anular visitas, interceptar ou retardar a entrega de cartas, exigir pedidos, cercear regalias, etc. Mostra sempre ar de manso. Não lhe falamos.
  10. FERNANDES — espancador em 1970, tinha muito o hábito de se esconder à escuta de conversas. Bêbado encartado, tem modos servis, mas há tempos foi grosseiro para o Rui d’Espiney, que lhe deu dois berros. Não lhe falamos.
  11. MIRANDA — espancador em 1970, bêbado relaxado, costuma agora falar com modos de bom rapaz, para fazer esquecer o espancamento, mas dantes era agressivo. Não lhe falamos. Durante a greve de visitas de solidariedade ao Eurico, veio falar-nos, demos-lhe um sabão a que ele respondeu com ares provocatórios: “Já não tenho medo!”, levou berros ainda maiores.
  12. JÚLIO — quando da greve da fome de Dezembro de 1972 foi buscar Pinto de Andrade à cela (no 3º B) para o trazer para o 2º, ameaçando que “se não vai a bem, vai a mal”. Fomos pedir-lhe explicações e negou tudo. Como já tinha havido outros incidentes com ele, insultámo-lo e deixámos de lhe falar.
  13. ZÉ RICARDO — bronco, grosseiro e preguiçoso, fazia os presos estarem à espera tempo sem fim, só para não se levantar da cadeira (quando as portas das celas estavam fechadas). Temos tido alguns incidentes com ele, mas falamos-lhe.
  14. GIL — Espancador em 1964. A partir daí tem procurado fazer esquecer e está sempre risonho e com bons modos. Falamos-lhe mas não lhe damos a confiança que ele quer.
  15. CAMPOS — há 20 anos que é aqui o rei dos bufos. Tem a alcunha de U-2 [avião de espionagem]. Sempre com ar sorna e “distraído”, procura chegar-se despercebido ao pé dos presos para apanhar conversas. Ficou muito desgostoso com o novo regime que lhe estragou o ofício e sempre que pode procura sacanear-nos mas sempre pela calada e sem discutir. Falamos-lhe.
  16. GARCIA — ainda há 2 anos era dos mais insolentes, tomando mesmo ares ameaçadores. Agora esforça-se por mostrar os dentes. Falamos-lhe mas continua sob observação.
  17. BRÁS — sempre calado, não provoca, mesmo no tempo antigo nunca se destacou em perseguições mas é um inimigo perigoso: legionário, com ódio frio, sempre atento. Falamos-lhe.
  18. CUNHA — depois de uma provocação ordinária ao nosso camarada [José] Condeço, há 2 anos, deixámos-lhe de falar, o que o enfurece, mas não provoca. Sonso.
  19. RODRIGUES — sempre com modos, manso, entrou em 1970 nos espancamentos. Veio depois pedir desculpa e garantir que não tornaria. Depois de uns meses de observação, resolvemos voltar a falar-lhe e tratar com ele normalmente, dado que, como chefe de pavilhão, não nos tem dificultado a vida. Enquanto ele se mantiver assim, resolvemos não lhe pôr em cara outra vez os espancamentos, até ver...
  20. VÍTOR RAMOS — o chefe do bando, foi o ditador desta cadeia durante mais de 20 anos, a sua estrela só começou a empalidecer depois das lutas de 70. Fascista, voluntário na guerra de Espanha, fuzilador, etc., etc., etc. Não lhe falamos, não recebemos ordens dele e quando calha é tratado de filho da puta para cima. A nossa exigência junto da direcção da cadeia é que esse facínora não trate de nada que se relacione com os presos (actualmente ainda é ele que trata da correspondência, livros e vigilância das visitas). Sempre que há motivos de queixa em assunto que lhe diga respeito atacamos a fundo.

FAÇAM PROPOSTAS
APONTEM OUTROS NOMES