Álvaro Cunhal. Uma Biografia Política

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 1979


Primeira Edição: Política Operária nº 71, Set-Out 1979

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Por doloroso que seja para o PCP, foi preciso um dirigente da direita pegar na sua história e trazê-la a público para acabar com o mistério de que tem sido ciosamente rodeada (Álvaro Cunhal. Uma biografia política, vol. I (1913-1941), José Pacheco Pereira. Ed. Temas e Debates, Lisboa, 1999). A este primeiro volume, dedicado aos anos 30, seguir-se-ão outros dois, já anunciados, e não há dúvida de que estamos perante unia obra séria, documentada, que nos revela o mundo da resistência ao fascismo português.

O defeito que já tem sido apontado ao trabalho de Pacheco Pereira, de agrupar apontamentos, insuficientemente trabalhados e com desenvolvimentos muito diversos, é neste caso irrelevante; o que avulta é o mérito das revelações, a extensa citação de documentos e, sobretudo, a reconstrução das biografias de tantos lutadores, muitos deles ainda hoje ignorados.

A história dos comunistas portugueses nos anos 30 é a de uma luta desesperada quando tudo desaba à sua volta. Instauração do regime fascista, derrota do 18 de Janeiro, sangria do Tarrafal, ascensão do nazismo, desnorteamento táctico com a guinada para as “frentes populares” do VII Congresso da IC, surpresa dos processos de Moscovo, traição de Munique, aniquilamento da República em Espanha, terramoto do pacto germano-soviético, guerra mundial… Seria precisa uma excepcional segurança político-ideológica, que o PCP não tinha, para resistir à tempestade. Debilitado pela repressão implacável, o PCP encontrou-se ao mesmo tempo em trincheiras indefensáveis, como a da liquidação dos sindicatos clandestinos, a das concessões aos democratas na pseudofrente popular, ou a da justificação do pacto germano-soviético, e acabou por se esfrangalhar. O PCP que ressurge em 1940 é já de outra natureza social.

Tudo isto emerge do relato, assim como o papel eminente de Cunhal nesta transformação do PCP, de partido proletário de raiz sindicalista em partido “de todo o povo” dedicado à conquista da democracia burguesa.

Não faltam na obra, evidentemente, os habituais preconceitos da direita, e muito típicos de Pacheco Pereira, sobre o comunismo e os comunistas, atingindo as raias do ridículo quando se lança na “psicanálise” de Cunhal. A sua carreira de militante resultaria de uma mentalidade fanática e de uma ambição desmedida, disfarçada em modéstia. O seu rigor revelaria espírito religioso. Se na juventude Cunhal escolheu o pseudónimo de “Daniel”, está-se mesmo a ver que se julgava o profeta bíblico! Quando afirma que entrou para o partido em 1931 estaria à procura, por meio de uma falsificação, de legitimar o posto de “mais antigo”! Etc.

O autor desvia-se também da objectividade quando, no desejo de fazer a anti-história do partido, atribui méritos excepcionais aos dirigentes “caídos em desgraça”, como Pável, Vasco de Carvalho ou Armando de Magalhães, e carrega nos traços negativos dos mais prestigiados, como Francisco Miguel ou o próprio Cunhal. Virar de pernas para o ar a história oficial do partido nem sempre é o melhor caminho para chegar à verdade. Pável, por exemplo, se foi vítima, ao que tudo indica, das intrigas tenebrosas das chefias de uma Internacional já então em decomposição, não há dúvida de que levou ao extremo a desastrada aplicação das oportunistas directivas do VII Congresso para a entrada nas organizações de massa do fascismo e a defesa das colónias contra os apetites de Hitler, contribuindo para o descalabro do partido.

Em conclusão, e apesar do valor inegável do trabalho realizado num terreno ainda por desbravar, faltam em minha opinião a Pacheco Pereira as condições para fazer uma história válida do PCP, capaz de perdurar. Falta-lhe a capacidade de sair para além do ambiente opressivo e conspiratório dos conflitos pessoais, dos documentos internos e das fichas policiais e palpar o movimento social que empurrou esses milhares de pessoas a desafiar a ditadura fascista ao longo dos anos 30.

Para P.  P., os comunistas surgem como uma espécie de fanáticos iluminados, “capazes dos maiores crimes para impor aos outros a sua verdade”, quase como um caso clínico. Ele não consegue captar o sentimento colectivo de rebeldia de gerações de operários e de jovens da pequena burguesia contra o ambiente sufocante e degradante do capitalismo salazarista, galvanizados pela convicção de que um “mundo novo” nascia no Oriente. Essa constatação elementar está-lhe vedada – sobretudo a ele que foi marxista na juventude e depois se rendeu à ordem dominante.

Ainda hoje, a história da resistência à ditadura é fogo. Não admira por isso que o trabalho de P.  P. tenha recebido escassas, cautelosas e embaraçadas apreciações: sente-se mal a direita tradicional pela inexplicável “propaganda do comunismo” a que Pacheco se entregou; indigna-se o PCP por ele se atrever a tocar em matéria tabu, que acha sua propriedade privada; incomodam-se sobretudo os socialistas e afins, atingidos em cheio por um relato que espelha, página a página, de forma esmagadora, a sua própria inacção durante a ditadura.

Neste aspecto, é digna de antologia a reacção exasperada e rancorosa de António Barreto (na recensão que faz ao livro, na revista do Público de 29/8). Para ele, Pacheco deixou escapar o essencial: “O PCP foi um dos factores da longevidade da ditadura salazarista”, “tudo fez para diminuir as outras forças oposicionistas”, “destruiu metodicamente todas as hipóteses de aliança ou de unidade entre anti-salazaristas.” “Mais: a sua tão absurda política de dependência da URSS acabou por alimentar o anticomunismo de Salazar.” Até o “heroísmo” (entre aspas) e a resistência dos militantes do PCP “também poderão ter sido um obstáculo permanente ao desenvolvimento de uma oposição ao regime salazarista”! Conclusão óbvia: não será que “cinquenta anos de insucesso das oposições se ficam a dever à ineficácia desta organização? À maneira deliberada como sempre destruíram qualquer hipótese de acção conjunta, desde que não fossem hegemónicos?”

O PCP culpado da omissão da oposição democrática, o PCP responsável (justamente pela sua luta!) pela longevidade da ditadura, o PCP causador do anticomunismo de Salazar, o PCP, afinal, é a conclusão implícita de Barreto, foi aliado objectivo do fascismo – eis a tese que vem a calhar para a social-democracia e o republicanismo se livrarem do fantasma que os persegue: a sua expectativa e vacilação perante a ditadura fascista. Parece monstruoso, e é; mas, no fundo, até está certo: porque não teriam os nossos revisionistas o mesmo direito que os franceses, alemães, etc., a rescrever a história?


Inclusão 02/10/2018