O jogo da verdade

Francisco Martins Rodrigues

3 de Fevereiro de 1982


Primeira Edição: Em Marcha, 3 de Fevereiro de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


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Imaginem agora que o prof. Freitas do Amaral tinha um rebate de consciência e vinha um belo dia para a televisão desbobinar as suas aventuras bombistas. Imaginem o arrepio de assombro de milhões de portugueses ao ver surgir no pequeno écran o presidente do CDS, de olhos baixos, a relatar tim-tim por tim-tim os trabalhinhos encomendados ao Esteves, ao Ramalho e aos outros capangas, os dinheiros que giraram na coisa, tudo, tudo!

Seria um acontecimento nacional. No dia seguinte, pela certa, o prestígio político do professor estaria a subir em flecha. Um homem capaz de tal confissão, diria o povo, era pelo menos honesto e corajoso, coisa rara na política. E quanto às bombas, enfim, o choque não seria muito grande, porque já não é mistério para ninguém.

Mas então aconteceria provavelmente uma coisa insólita. O Presidente Eanes. inquieto, farejando qualquer jogada obscura para meter no fundo o projecto do seu partido, resolveria contra-atacar com as mesmas armas. Anunciaria assim uma comunicação extraordinária ao país. E aí teríamos de novo o povo estupefacto diante dos televisores, ouvindo da boca do general a verdadinha toda sobre o pouco heróico golpe de 25 de Novembro, as conspiratas reles, as armas desencaminhadas, os encontros com o Carlucci, tudo.

A partir daí, o movimento, imparável, faria bola de neve. Ministros, empresários, gestores, deputados, todos se sentiriam obrigados a jogar o jogo da verdade. Vir à televisão confessar-se passaria a ser um acto de bom tom, uma moda, uma febre. Multidões palpitantes estariam todas as noites agarradas aos televisores para assistir a mesas redondas de autocrítica, mil vezes melhores do que a telenovela.

Haveria momentos de emoção: o eng. Cardoso e Cunha, debulhado em lágrimas, a confessar o romance da EPAC; Viana Baptista, com voz soturna, a desfiar o negócio dos aviões; o Goulão a contar os assaltos à mão armada no Alentejo.

Mas também não faltariam as cenas de humor. Mário Soares gaguejando que fizera os sindicatos paralelos por ordem e com dinheiro dos alemães. Cunhal a reconhecer, com a voz embargada: "Tenho sido um bombeiro das lutas sociais". Empreiteiros, armazenistas de vinhos, banqueiros, a contar as suas tramóias. Juízes a confessar-se padrinhos dos pides que absolveram. Um festival.

O leitor acha que isto nunca vai acontecer? Pois é aí mesmo que eu quero chegar: se estamos de acordo em que os políticos de serviço são incapazes de autocrítica, hipócritas até à medula, talvez seja de dar menos atenção aos enredos que eles inventam todos os dias e começar a tratar-lhes do remédio.


Inclusão 22/08/2019