O fermento e a massa

Francisco Martins Rodrigues

19 de Maio de 1982


Primeira Edição: Em Marcha, 19 de Maio de 1982

Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.


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Este fim de semana, o eng. Ângelo Correia não foi torturado pelos pesadelos do costume. "Duas vitórias no papo — pensou ao adormecer. Primeira, a greve geral não saiu das fábricas — logo, os operários vão ter que baixar a bola. Segunda, o Papa foi um êxito estrondoso — logo, o povo está pela trela". E tão bem dormiu que, logo pela manhã, feliz, mandou louvar o fiel Almeida Bruno.

Se eu fosse a ele, não estava tão eufórico.

A greve não saiu das fábricas. E dentro delas, não deu para unir toda a gente, já se sabe: o medo de perder a bucha, a UGT, os barriguistas, a convocação precipitada.

Mas a massa operária não está com tendência para baixar a bola. "O Eanes vale tanto como os outros", "Isto só endireita se formos nós a dar-lhe uma grande volta", "Estamos a pagar a brandura do 25 de Abril" — frases destas, inconcebíveis ainda há três meses, ouviam-se à boca cheia nos piquetes.

Há ideias novas a germinar nas fábricas. O dr. Álvaro Cunhal, bem melhor político do que o eng. Ângelo Correia, sabe-o bem e não dorme tão descansado como ele.

Dir-se-á que a greve pouco foi, ao pé do mar de gente que acorreu a ver o Papa. Errado. Porque a greve é uma revolta que cresce, enquanto as multidões do Papa são a insegurança, o medo, a ansiedade, quando não o simples folclore.

Ainda por cima. é um medo carregado de poder explosivo. As multidões rezam angustiadas porque a vida se vai tornando insuportável e o futuro é incerto. Pode não vir longe o dia em que descubram que o céu está vazio. Nesse dia. não será o Papa a pregar a união do trabalho com o capital que os vai segurar.

Esta semana pôs em confronto a força e a impaciência da classe operária com o medo impotente da pequena burguesia. Será assim tão difícil adivinhar para que lado vai pender a balança?

A grande força de sustentação desta geringonça têm sido as ilusões da classe operária na colaboração com a pequena burguesia. Mas essas ilusões começam a abrir fendas, os operários começam a estar fartos de ser os serventes da democracia dos outros.

Se houver uma força capaz de activar a revolta que fermenta, ainda podemos ver os operários atirar com as cangalhas do unitarismo reformista a que têm andado atrelados, tomar voz activa na política e conduzir a massa indecisa. Como lhes compete.


Inclusão 22/08/2019