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Primeira Edição: Em Marcha, 27 de Outubro de 1982
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Gostei, palavra, da prelecção do dr. João Salgueiro no sábado, na televisão. Com o seu modo persuasivo e sereno de gentleman bem educado, desfez todas as dúvidas que me têm andado a atormentar. A situação está toda sob controlo. É absurdo falar-se em bancarrota. As reservas de ouro ainda chegam para pagar um ano de importações. O Governo tem planos a médio prazo em todos os capítulos da economia, a adaptação ao mercado da CEE está a ser estudada, há relatórios muito completos sobre a reconversão agrícola, eu sei lá!
Naturalmente, para as coisas tomarem bom caminho, é preciso que os cidadãos operários ponham de parte motivações egoístas e se coloquem na perspectiva do bem comum. Tudo depende, salientou o dr. João Salgueiro, de haver bom senso na negociação dos contratos colectivos de trabalho. Reclamar aumentos de 20 e 30% nos salários sem aumentar a produtividade na mesma proporção é incomportável.
E aqui entra em jogo um factor que parece ter escapado ao ministro. Refiro-me à crendice popular acerca do chamado trabalho não-pago.
Meteu-se na cabeça dos operários a ideia absurda de que o salário que recebem é só um terço ou um quarto do valor que produzem. Puseram-se a querer saber para onde ia esse trabalho não-pago. Vozes mal intencionadas sopraram-lhes que a maior parte desse dinheiro é esbanjado em fins que nada têm a ver com gastos sociais. Disseram-lhes que o carro de boa marca do patrão, a amante do patrão, o curso do filho do patrão, as vivendas, as piscinas, os campos de golfe, as férias na Áustria ou na Austrália, os ministérios e os ministros, tudo, até as próprias gravatas impecáveis do dr. João Salgueiro, é suportado pelas tais horas de trabalho não-pago.
Desta campanha orquestrada com intuitos inconfessáveis resultou na maioria dos operários uma reacção negativa quando lhes falam em austeridade e em aumentos de produtividade. “Se eu assim já trabalho a maior parte do dia para sustentar chulos, ainda querem que dê mais? Venha o taco primeiro, depois se vê o resto”.
É claro que esta atitude obtusa vai pôr em risco a negociação equilibrada dos acordos colectivos. Vai haver mais greves, protestos, manifestações. Com prejuízo para a economia nacional, como é evidente.
Talvez porque não confia muito na força persuasiva das suas demonstrações, o dr. João Salgueiro vai fazer apelo aos gorilas do eng. Ângelo Correia para equilibrar a economia nacional. Assim acaba sempre o sorridente consenso democrático destes sujeitos, quando chega a hora da verdade: à trancada.
Mas a trancada é dar e levar, não se esqueçam.
Inclusão | 22/08/2019 |