“Há sábios que julgam entrever em tudo isto um recuo das nossas posições de princípio, uma certa viragem à direita no que diz respeito à linha do bolchevismo.”
DIMITROV
“Unidade a todo o preço para barrar o caminho ao fascismo, à guerra, ao imperialismo!” O apelo lançado por Jorge Dimitrov em 1935 para a unidade de todas as forças operárias, populares e democráticas, faz agora 50 anos. É boa altura para um balanço.
Hoje quase esquecido esse relatório de Dimitrov ao 7º congresso da Internacional Comunista, haverá quem lhe atribua um interesse meramente histórico. A verdade, contudo, é que, neste meio século, a ideia da unidade democrática e anti-imperialista se incorporou como património, não só dos partidos comunistas, mas de uma vasta corrente progressista internacional. Pode dizer-se que todos os que se situam para a esquerda da social-democracia são hoje dimitrovianos sem o saber — os sandinistas da Nicarágua como os guerrilheiros peruanos, os pacifistas alemães e os deslavados “comunistas” portugueses.
O laço que une estas forças tão diversas é a noção de um campo popular, cujos interesses comuns face ao imperialismo envolveriam o proletariado e a pequena burguesia numa mesma estratégia fundamental, aproximariam, fundiriam as suas trajectórias. Esta noção, estranha ao leninismo, foi pela primeira vez teorizada em termos “marxistas” por Dimitrov.
Tão forte é o seu poder de convicção, que tem sobrevivido aos reveses que a História não cessou de lhe infligir, desde as Frentes Populares de 1936 à Unidade Popular no Chile e ao 25 de Abril em Portugal. E com esta particularidade curiosa: de cada vez que fracassa uma destas experiências democráticas e populares, os seus promotores podem atribuir sempre a derrota à insuficiência da Unidade, não à fórmula em si mesma. O dimitrovismo goza assim do privilégio raro de “provar” a sua justeza à custa dos seus próprios fracassos.
Por que esta vitalidade singular? Porque o dimitrovismo vai ao encontro do bom-senso político elementar das massas nesta época do horrores do imperialismo. Não necessita de demonstração. Ninguém no campo popular sente qualquer dificuldade em admitir espontaneamente que “a unidade da esquerda é a melhor arma contra a direita”. Ninguém duvida que Lenine foi um génio da revolução proletária mas parece absurdo transferir para a nossa época a sua perspectiva sobre a luta de classes. Querer aplicar agora o leninismo “tal e qual” seria doutrinarismo antileninista; só sectários incuráveis podem contestar a necessidade de uma frente unida contra a reacção e o imperialismo, etc., etc. De forma mais ou menos elaborada, mais ou menos explícita, são estes os argumentos que se podem ouvir em toda a área da “grande esquerda”.
É sem dúvida louvável este desejo de ver todas as forças antifascistas e anti-imperialistas unidas numa frente comum. Mas os bons desejos em política não são nada. Que objectivos fixar, que relações estabelecer entre as classes populares para tornar possível uma luta eficaz, vitoriosa, contra a reacção e o imperialismo? Esta é a única forma séria de pôr a questão em termos de marxismo.
Raspemos a casca do bom-senso unitário, para lhe procurar o miolo de classe. “Unidade a todo o preço em torno de objectivos comuns”, “valorizar aquilo que une, pôr de lado tudo o que divide”, “democracia, paz, independência, primeiro, a revolução virá depois”, “democracia popular, um degrau para o socialismo” — o que significa? Significa procurar, em cada situação, o máximo divisor comum das forças populares. Ou seja, alinhar o povo pelo nível mais moderado, comum a todos. Ou seja, pôr de lado os objectivos revolucionários da classe operária, que, obviamente, não são comuns.
Pode objectar-se que a perspectiva unitária de Cunhal em 1975, com a “batalha da produção pelo socialismo”, era de qualquer modo muito mais avançada do que a “Unidade dos portugueses honrados” de 1949. É certo. O unitarismo democrático e popular não é rígido. Pelo contrário, é extremamente flexível, elástico, criador, o que lhe permite acompanhar as grandes convulsões de massas. É esse outro segredo da sua vitalidade. Mas, por mais elástico que seja, há um limite ideal para que ele parece tender mas que nunca atingiu e que, pelo contrário, bloqueia: a revolução proletária.
O apelo para a “unidade a todo o preço contra a reacção, a guerra e o imperialismo” veicula pois a exigência, não da Unidade, mas de uma certa unidade: unidade em torno das reivindicações limitadas da pequena burguesia, comuns a todo o povo, sacrificando para tal as reivindicações revolucionárias da classe operária. É este o sumo de classe do pensamento dimitroviano. É esta a fonte da sua fácil popularidade, que lhe assegura uma reprodução espontânea e diária em larga escala.
Assim, a lógica unitária que funciona hoje automaticamente em todos os campos da luta de classes, política, económica ou ideológica é fácil de resumir: “Os operários que sacrifiquem (só por agora, claro!) uma parte das suas exigências, se não querem ficar isolados”. É um ultimato.
Que está presente, sem precisar de ser mencionado, nas manifestações pela liberdade como na negociação de um contrato colectivo, nas marchas da paz como na abstenção tácita de toda a crítica à religião, à família, à nação, à propriedade privada.
Unidade pelo fim dos monopólios, do fascismo, da guerra, pela independência da nação, por uma democracia popular. Unidade até mesmo pelo socialismo, desde que seja “popular”. A revolução proletária é que não tem aí lugar. Como poderia tê-lo, se não é uma questão comum ao povo?
No tempo de Lenine, é sabido, a revolução russa fez-se com uma outra lógica. O povo, enquanto colectivo, não tem solução para os flagelos do capitalismo e do imperialismo, da guerra, porque é um aglomerado de classes com interesses diversos. O povo precisa do socialismo mas só pode encontrá-lo se for arrastado pela dinâmica revolucionária da classe operária. E a classe operária só pode encontrar a via do socialismo e arrastar consigo o povo se for arrastada pela dinâmica revolucionária da sua vanguarda, capaz de assimilar o marxismo. A minoria, avançando para o seu alvo consciente, ganhará a maioria. Os objectivos gerais da luta não têm que ser fixados pelo máximo denominador comum mas pelo conhecimento das tarefas objectivas que se colocam à sociedade. Cada luta particular, imediata, comum a todo o povo, em si mesma nada vale se não servir para acelerar o alinhamento das forças antagónicas dispostas a bater-se pela direcção da sociedade. Por isso, o proletariado tem que se demarcar da pequena burguesia, a revolução tem que crescer à custa do reformismo, etc., etc.
Porque deixou esta lógica, aparentemente, de servir? Porque “o mundo mudou”, ou porque a classe operária foi submergida pela ideologia pequeno-burguesa? A ideia leninista de hegemonia do proletariado foi de facto ultrapassada pela História, ou está soterrada sob uma avalanche de democratismo reformista? Vivemos hoje uma etapa superior, de luta mais vasta contra o imperialismo, ou recuámos para uma plataforma mais estreita, cega, impotente? Há alguma esperança para o combate democrático unitário, ou ele é só um alçapão por onde se escoam continuamente as potencialidades revolucionárias do movimento operário?
Para todos aqueles que já se libertaram dos “dogmas” marxistas (e que servem alegremente a ditadura “democrática” da burguesia), estas perguntas não passam de extravagâncias doutrinárias, que nem merecem refutação. Mas é instrutivo observar como os ditos “marxistas-leninistas” (revisionistas e anti-revisionistas) resolvem a dificuldade de associar Dimitrov com Lenine.
Por estranho que pareça, a divisão do movimento comunista em campos antagónicos desde os anos 60 não beliscou o dimitrovismo. Revisionistas da escola soviética e “ortodoxos” da linha chinesa-albanesa, embora travando batalha furiosa em torno de Staline e do “stalinismo”, renegado por uns, exaltado pelos outros, mantiveram-se de acordo quanto às ideias políticas de Dimitrov.
Uns e outros coincidem na opinião de que o 7º congresso da Internacional Comunista fez uma aplicação criadora do leninismo nas novas condições históricas, deu nova vitalidade ao movimento comunista e proporcionou grandes êxitos aos povos. Uns e outros defendem a política das Frentes Populares, divergindo, quando muito, no que toca à sua aplicação. Uns e outros atacam como “dogmáticas”, “sectárias” e “trotskistas” as objecções que eventualmente se manifestam a essa política.
Existe de facto uma guerra entre revisionistas e anti-revisionistas acerca de Dimitrov, mas apenas para saber a quem pertence de direito a sua herança.
Para o Partido do Trabalho da Albânia, a coincidência das duas correntes na defesa do 7º congresso é apenas aparente e resulta de uma deturpação descarada de Dimitrov por parte dos revisionistas. Num longo artigo há três anos publicado na sua revista teórica(1), considera-se pura especulação revisionista a afirmação de que “o 7º congresso teria colocado a colaboração dos partidos comunistas com os partidos social-democratas na base de uma nova estratégia global do comunismo internacional”. Esse congresso teria estado na linha de continuidade dos anteriores, tendo apenas procedido a uma “simples flexão táctica na luta contra o perigo fascista e de guerra imperialista”. “As orientações do 7º congresso para que cada partido comunista colocasse na ordem do dia, como tarefa imediata, a luta pela paz e contra o perigo fascista não quer dizer de forma alguma que a IC tivesse adiado para as calendas gregas a preparação da revolução proletária”, nem que “a luta pela paz e contra o perigo fascista passasse a ser encarada como uma etapa especial do movimento revolucionário, indispensável para cada país”. E ainda invenção revisionista, segundo o artigo, a afirmação de que “Staline não teria concordado com as decisões do 7º congresso” e de que “o 7º congresso tivesse apresentado de forma embrionária as ideias fundamentais do 20º congresso do PCUS”. Todas estas opiniões não passariam de uma “interpretação oportunista, revisionista, das decisões do 7º congresso da IC”, o qual não teria deixado “nenhum campo para hesitações ou equívocos”. “A Comintern — conclui — permaneceu fiel até ao fim à sua linha política geral, sem se desviar um milímetro da sua estratégia global de luta pela revolução proletária e pela instauração da ditadura do proletariado.”
Este apanhado de pontos polémicos feito pela Rruga i Partise pareceu-me uma boa introdução ao tema. Decidi por isso pô-lo à prova, confrontando-o com uma análise do relatório de Dimitrov, das circunstâncias em que foi escrito e dos desenvolvimentos a que deu origem neste meio século.
Surgiu assim este Anti-Dimitrov, em que procuro:
- demonstrar que a viragem “táctica” do 7º congresso para as frentes populares envolveu na realidade uma viragem estratégica, como justamente afirmam os revisionistas;
- provar que essa viragem fez uma ruptura completa, embora disfarçada, com a linha leninista da revolução proletária, a que substituiu a ideologia da fusão “popular” operário-pequeno-burguesa;
- desmistificar a lenda dos “grandes êxitos” conseguidos pelo movimento comunista a partir de 1935, apontando o rasto de derrotas e fracassos que nos trouxe à situação actual, de ofensiva em toda a linha do imperialismo;
- e finalmente, enquadrar as ideias políticas de Dimitrov na vasta corrente centrista internacional que nos anos 30 tomou de assalto o marxismo revolucionário, tanto na União Soviética como na China e no mundo capitalista.
O leitor julgará se a prova feita lhe parece suficiente.
A esta luz, torna-se perfeitamente compreensível a unidade e luta entre revisionistas e anti-revisionistas em torno das ideias de Dimitrov. Unidade, porque o dimitrovismo é essencial a ambos, como teoria de colaboração “democrática e popular” de classes, sob as vestes respeitáveis do leninismo. Luta, porque o dimitrovismo conheceu ritmos de maturação diferentes, de acordo com as particularidades nacionais da luta de classes: enquanto o seu ramo principal desabrochou no revisionismo, da escola soviética e europeia, o ramo maoísta, relativamente autónomo, veio a dar, vinte anos mais tarde, o revisionismo chinês, e um ramo centrista fossilizado persiste ainda hoje no “stalinismo” albanês, preparando-se para seguir o caminho dos restantes.
Assim, os caminhos, que pareciam inconciliáveis, das correntes rivais do “marxismo” oficial, acabam por se voltar a juntar, porque brotaram do mesmo tronco comum. O revisionismo é o produto universal do centrismo. Daí, a importância de conhecer a natureza do dimitrovismo para entender o sentido da luta actual no campo “marxista” e o seu desenlace previsível.
O centrismo é pois o tema deste trabalho. O centrismo, como forma original do oportunismo “comunista” do século XX, produto típico da era do imperialismo, que teve em Bukarine, Dimitrov, Estaline, Mao, Gramsci, os seus ideólogos e chefes políticos de maior projecção. O centrismo, como expressão de uma corrente intermédia operário-pequeno-burguesa e por isso obrigada a proteger a sua incoerência política e ideológica com uma armadura “férrea”: despotismo “revolucionário”, “para defender a ditadura do proletariado”, organização monolítica, “para defender a unidade do Partido”, paralisia ideológica, “para defender a pureza da doutrina”. O centrismo, como artífice do revisionismo que mais tarde veio a tomar o comando do movimento operário. O centrismo, enfim, como parteiro de um regime social novo na História, o capitalismo de Estado, último reduto da burguesia, à qual permite renascer das cinzas sob uma nova forma “socialista”.
Não faltará quem ponha em causa esta tentativa de crítica àquilo que usualmente se designa como o “stalinismo”. Para uns, será uma descoberta serôdia, que vem arrombar portas há muito abertas. Para outros, será “um frete ao revisionismo e ao imperialismo”. Quero crer que não será uma coisa nem outra. Porque, se o centrismo tem sido alvo de uma crítica sistemática desde há vários decénios, essa crítica tem partido invariavelmente da direita (revisionistas, social-democratas e, entre ambos, os trotskistas). A crítica pela esquerda ao centrismo está por fazer.
Resta saber se uma tal crítica tem lugar no mundo de hoje. A nossa “esquerda” engravatada, farta de “superar” o leninismo, acha naturalmente que não. Mas as enfezadas análises que até agora deu à luz não lhe dão grande autoridade na matéria. É tão triste o espectáculo das suas deduções elegantes, visando escamotear a luta de classes e banir a ideia de ditadura do proletariado, que tudo o que se faça na via do leninismo fica justificado à partida.
Naturalmente, fazer a crítica do centrismo é já prever a sua morte. Há todas as razões para esperar que o poder demolidor do marxismo acabe por pulverizar a crosta de preconceitos pequeno-burgueses que o recobrem. Nesse dia veremos talvez surgir experiências novas de autêntica unidade popular, poderosas, capazes de derrotar o imperialismo e avançar ininterruptamente para o socialismo, porque baseadas no alicerce que há meio século lhes foi roubado: a direcção da classe operária sobre a pequena burguesia.
Atrevo-me a pensar que este trabalho será um estímulo, no desértico panorama do marxismo em Portugal, para despertar a crítica revolucionária de classe, sem a qual não se pode falar sequer em Partido Comunista e muito menos em esperanças de revolução e de socialismo. Veremos se os resultados correspondem às minhas ambições.
Março de 1985