Receitas para Controleiros

Francisco Martins Rodrigues

Fevereiro de 1986


Primeira edição: Política Operária, Janeiro-Fevereiro, 1986.

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida.

Transcrição: Ana Barradas.

HTML: Fernando A. S. Araújo.

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Com estas receitas, coleccionadas através de uma larga experiência, primeiro no PCP, depois no PC(R), tentei recolher alguns dos traços mais salientes daquilo a que esses partidos chamam pomposamente “centralismo democrático” e que mais correcto seria designar por “controlismo demagógico”. Por razões óbvias, os falsos partidos comunistas, na realidade reformistas, não podem sistematizar em compêndios a sua rica experiência em iludir os militantes. Para cobrir essa carência, aqui deixo estas modestas receitas.

1 — Só principiantes atropelam as normas de funcionamento de uma reunião para impor a sua opinião ao colectivo. Quem sabe da arte respeita escrupulosamente na forma as garantias democráticas de deliberação, tempos de intervenção, votações. Para que os resultados da reunião batam certo com o que se pretende é necessário pois uma preparação meticulosa, em que nada seja deixado ao acaso. Cozinhar a reunião com um elemento de confiança do comité, antes de a servir, é o primeiro dever de todo o controleiro consciente.

2 — Não receie o debate. Isso será aos olhos dos participantes uma prova de que não existe lei da rolha. Deixe cada um desabafar. Se não houver uma válvula de escape, o descontentamento reprimido pode criar dissabores. O essencial é assegurar que as opiniões de cada um não conduzam a uma verdadeira confrontação de ideias e não amadureçam em conclusões colectivas dissonantes das da direcção.

3 — Faça de maneira que cada reunião seja um debate sempre recomeçado, reduza o tempo de discussão com informações prévias, aumente o número de participantes, sobrecarregue a agenda de assuntos a tratar. Falar de tudo e não levar nada a fundo.

4 — A melhor forma de impedir a polémica sobre pontos inconvenientes é tomar você mesmo a iniciativa de lançar outros pontos polémicos inofensivos, que sirvam de pasto aos assistentes e ocupe a maior parte da reunião.

5 — Se o debate se aproxima de questões melindrosas, arranje forma de meter uma história edificante ou divertida que ajude a distender o ambiente e fazer esquecer onde se ia.

6 — Depois de uma reunião agitada que possa ter deixado no ar interrogações perigosas, encontre pretextos plausíveis para atrasar a convocação da reunião seguinte e assim apagar possíveis focos de incêndio.

7 — Se há um elemento que sobressai na contestação, separe as suas “incompreensões” de fundo da sua “frontalidade”. Pode ser que ele caia na rede e se deixe desarmar. Evite os ataques frontais, a não ser com os manifestamente incorrigíveis e rebeldes.

8 — Não se deve atacar os discordantes só porque discordam. Arranje formas subtis de pôr em evidência a sua imodéstia ao quererem saber mais do que os órgãos superiores. Lamente a sua obstinação em querer sobressair do colectivo. Faça-os aparecer como os que têm o passo trocado. Ninguém quererá imitá-los.

9 — Em caso de as suas opiniões serem frontalmente contestadas ou lhe serem feitas críticas sérias, procure ser sempre o último a falar para ter a última palavra no assunto.

10 — Evite as votações sobre questões de fundo, politicamente importantes. Use-as abundantemente sobre questões formais ou questões que já se sabe antecipadamente que terão unanimidade. Assim ninguém dirá que não há votação democrática no organismo e você não correrá riscos escusados.

11 — Condene como acto grave de má-fé e de fraccionismo em potência todo o tipo de contactos, conversas, etc., entre membros do comité fora das reuniões. Crie-lhes o hábito salutar de nunca discutirem política fora das reuniões. Invoque Lenine e as “normas leninistas”. Acreditá-lo-ão.

12 — É sempre possível demonstrar que uma ideia viva, arrojada ou inovadora é “unilateral”. Inspire-lhes o horror pelo unilateralismo, pela precipitação, pela imaturidade. Encaminhe pacientemente mas com mão firme os membros sob o seu controle para as análises “multilaterais”, equilibradas, bem doseadas, inertes. Se lhe disserem que isso é chato, académico e inútil, demonstre-lhes que isso é que é a verdadeira ciência marxista.

13 — Sempre que se levantem críticas aos órgãos superiores, insista na necessidade de tomar as questões “pela positiva” e não “pela negativa”. Quando a critica visar os seus controlados, aplique-lhes a “firmeza bolchevique”.

14 — Exalte o conformismo e a credulidade como verdadeiro espírito proletário, em contraste com a petulância intelectualista de tudo querer saber. Habitue os militantes a serem eles a procurar espontaneamente os argumentos que melhor corroborem as directivas de cima. Incuta-lhes aversão pela “curiosidade pequeno-burguesa”.

15 — Nunca esqueça de batalhar na ideia de que a unidade e a disciplina são os bens mais sagrados do partido, por cima da sua linha política. Crie-lhes o reflexo da confiança cega nos órgãos dirigentes para não correrem o risco de errar. Se trabalhar bem neste campo, conseguirá que o acompanhem em todas as reviravoltas políticas que for necessário fazer.

16 — A chave de tudo: “o Partido não é uma arena da luta de classes!” Tudo o que existe no universo move-se pelas suas contradições internas. Excepto o Partido, que se move pela sabedoria da sua direcção. Ámen.

Moral da História

Haverá quem pense que não convém expor assim tão brutalmente a vida interna de partidos que se reclamam do marxismo-leninismo, porque isso “dá armas à propaganda anticomunista”. Não estou de acordo.

Primeiro, porque os partidos democráticos, como o PS, o PSD, o CDS, ou o jovem PRD, não têm autoridade nenhuma na matéria. Nesses arautos da Liberdade do Homem, que todos se escandalizam com o unanimismo asfixiante dos “estalinistas”, reina a viciação mais descarada da democracia interna. Há liberdade de opinião e de polémica, mas entre os chefes. A massa dos membros não tem voz activa para nada. Os “notáveis” e “barões” comportam-se como patrões do partido, governam por intrigas de corredor, arregimentam votos pelo suborno e pela distribuição de cargos, impõem caprichos e vinganças, promovem afilhados, etc. Toda a sociedade burguesa está aí retratada em miniatura.

Tomar a sério as convicções democráticas do dr. Mário Soares ou do dr. Salgado Zenha é ingenuidade imprópria de um operário consciente.

Em segundo lugar, porque é só queimando com ferro em brasa as falsificações do centralismo democrático dos partidos ditos comunistas que se pode abrir espaço para uma prática diferente no movimento operário.

É preciso mostrar que esses partidos se preocupam em manter uma aparência de igualdade de direitos, de fraternidade revolucionária, de simplicidade proletária, porque é a única maneira de fazerem aceitar voluntariamente aos seus membros a supressão da democracia em nome da democracia.

É preciso revelar sem piedade as hipocrisias desse falso “centralismo democrático”, para provar que elas não são fruto do “totalitarismo” de uma qualquer “burocracia”, mas são as armas de uma pequena burguesia que não pode confessar os seu reformismo e que se tem que disfarçar em “vermelha” para melhor meter a classe operária nos carris do sistema. É preciso finalmente traçar uma linha de demarcação nítida entre o centralismo democrático leninista — a liberdade, disciplina e unidade dos comunistas — e a farsa que por aí se vende como tal. Essa é uma parte importante da luta para o renascimento da corrente operária revolucionária e para o descrédito do reformismo “comunista”.