Cemitério

Francisco Martins Rodrigues

Setembro/Outubro de 1987


Primeira Edição: Política Operária nº 11, Set-Out 1987

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Estranham os analistas o ambiente de sereno consenso que sucedeu à estrondosa vitória da direita em Julho. Quando foi do governo AD, a esquerda teve um sobressalto, meteu-se em brios e pós-se em pé de guerra para recuperar a maioria. E agora?

O parlamento ressona docemente. O ministro Roberto Carneiro é muito cumprimentado pelo seu espírito dialogante. A CGTP bate à porta do Conselho de Concertação Social, de chapéu na mão, pedindo desculpa pelo atraso. Personalidades de todos os quadrantes encontram-se na candidatura nacional de Sá Machado à direcção da Unesco. Ninguém quer saber de guerras políticas.

Estará a esquerda desconcertada e acabrunhada pela derrota? Não, está aliviada. Está aliviada por descobrir que a direita moderna no poder não é afinal esse papão que se imaginava, sob a influência dos slogans alarmistas do Prec. No fim de contas, algum dia teríamos que extirpar esses cancros das nacionalizações, da Reforma Agrária e das jornadas de luta. Pois o Cavaco que se encarregue disso!

Além do mais, com a direita no poder é a grande aventura da iniciativa privada que se abre à nossa frente. Bater-se pelas novas oportunidades para os jovens quadros, criar empresas com fundos da CEE, jogar na Bolsa, traficar, gozar a vida — haverá melhor cura para a indigestão social e ideológica de todos estes anos?

A esquerda estava cansada de ter de fazer o papel de esquerda. Já sentia cólicas de cada vez que tinha de falar dos pobrezinhos e no Portugal de Abril. Já tinha vergonha de ser tão provinciana e de andar com o passo trocado em relação à Europa. Queria ver-se livre desse fardo insuportável de propor políticas alternativas em que não acreditava.

Felizmente, o povo acabou por perceber o que se lhe pedia. Pois se o que estava em causa com as eleições não era decidir uma política mas apenas eleger a equipa mais apta para a única política consentida, quem melhor do que o PSD, o partido dos gestores, para dar conta da tarefa? E assim, votando em massa no PSD, o povo acabou com o pesadelo da esquerda, que pode finalmente proceder em sossego à sua reciclagem.

A tarefa agora é voltar a apanhar o comboio da modernidade, como o sr. Prado Coelho estava farto de avisar. Recuperar os anos estupidamente perdidos em devaneios demagógicos. A classe operária — mas isso ainda existe? A revolução... não me façam rir! Os Estados Unidos? Porque não reconhecer que são, apesar de tudo, o baluarte da democracia?

Os mais espertos, os que viraram na hora certa, riem-se dos indecisos que só agora se agarram, frenéticos, ao comboio em andamento. Todos procuram um lugar confortável. De preferencia no vagão-restaurante. Toca de abancar, pessoal!

O pior é que, lá à frente, vai haver descarrilamento.


Observação: Tiro ao Alvo - Coluna de FMR no jornal Em Marcha e no jornal Política Operária.

Inclusão 06/02/2018