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Primeira Edição: Texto apresentado à 3ª Assembleia da Organização Comunista Política Operária, 7 de Novembro de 1987
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Desde a ruptura com o PC(R) tornou-se evidente a desproporção entre as metas que fixámos à OCPO e as forças reais de que dispúnhamos: elaborar um programa comunista — mas com que preparação teórica? ganhar raízes na vanguarda operária — mas onde estão os militantes capacitados para isso? fazer um largo trabalho de agitação e propaganda — mas que é dos meios técnicos e financeiros?
A nossa história, nestes três anos de existência da OCPO, gira à volta dessa tremenda desproporção, que ameaça esmagar-nos. Conseguimos alguns êxitos iniciais — edição da revista, montagem do aparelho técnico, contactos internacionais — mas a nossa existência como grupo político foi-se-nos revelando cada vez mais problemática.
Na 2 a Assembleia (Junho 1986), verificando a dificuldade em romper no terreno político e sindical, a demissão de alguns camaradas, o desânimo de outros, prevaleceu o espírito de tentar arrancar êxitos a pulso, desdobrando-nos em novas frentes de actividade. Decidimos impulsionar os contactos sindicais e editara TO, activar a Coordenadora dos grupos de esquerda, incentivar a solidariedade aos presos, alargar a capacidade do aparelho técnico com novos investimentos.
Hoje podemos concluir que o erro dessa Assembleia foi ter dispersado forças quando já havia alertas de que era preciso, pelo contrário, concentrar forças para melhor resistir. Não tardou muito para vermos que nos faltava arcaboiço para essa fuga em frente. Os novos sectores começaram a desmoronar-se e, ao longo do primeiro semestre deste ano, constatámos que todo o nosso edifício estava em perigo:
Perante o risco iminente de ruptura financeira, foi decidido numa reunião geral, em fins de Junho, concentrar os camaradas mais activos no levantamento da empresa, entregando aos outros dois membros da direcção o encargo temporário de sustentarem a organização e prepararem a PO, até haver condições para realizar a 3.aAssembleia.
De então para cá, a situação financeira melhorou, mas à custa da paralisação de toda a restante actividade: deixou por completo de haver tarefas políticas e intervenção sindical; o Comité de Redacção elaborou com grande dificuldade a PO 11; a Comorg, encarregada de preparar a Assembleia, quase não funcionou; a Direcção não reúne; os núcleos não existem.
A OCPO reduz-se neste momento a meia dúzia de camaradas agrupados em torno da empresa e da revista, quase esquecidos da política e correndo o risco de se tornarem meros técnicos ou burocratas. Os outros camaradas estão inactivos. Os camaradas operários estão abandonados. Os contactos internacionais estagnaram. A manutenção da empresa é como um cancro a devorar as nossas melhores energias. A continuação da saída da PO parece duvidosa.
Perante este percurso, o estado de espírito geral é de abatimento, quando não é de alheamento puro e simples: ‘‘Fomos ambiciosos demais, ninguém se interessa pelo que temos para dizer, a OCPO falhou, mais vale reconhecer que perdemos em vez de teimar em prosseguir a força de voluntarismo”, etc.
Manifestações doentias não faltam: não mexer uma palha e chegar à conclusão lógica de que não se pode fazer nada; amontoar interrogações sobre interrogações até ficar esmagado debaixo delas; não tomar a sério as tarefas e compromissos, ajudando a criar um clima de “bandalheira”; cultivar o pessimismo e as crises ideológicas como “realidades que não podem ser ignoradas”; sentir a acção militante como um fardo intolerável e queixar-se de cansaço; perder a alegria natural de estar na luta e aspirar a ser “como toda a gente”, isto é, politicamente amorfo; empolar as questões pessoais, profissionais e familiares e embrutecer-se em ocupações mesquinhas e diversões tolas…
Ao reunir esta nossa 3a Assembleia, temos que dizer que somos um colectivo doente. A OCPO, grupo comunista, corre o risco de se dissolver. A PO, revista de crítica marxista, pode desaparecer. É este o facto que devemos encarar, sem pânico mas também sem disfarces nem hipocrisias.
Pode perguntar-se se a nossa crise não parte de um erro de base do nosso projecto: a decisão de tomar como centro da nossa actividade a edição da revista. É certo que tentámos desde início combinar o debate ideológico com a intervenção política e o estilo militante; mas como o essencial das forças teve que ser concentrado na revista e no aparelho técnico, as hipóteses iniciais de acção política e sindical foram estiolando, até nos tornarmos um grupo meramente teórico.
Esta prioridade ao trabalho ideológico e a falta de acção política, sobretudo num período de refluxo e de confusão como o que atravessamos, é que nos estariam a desgastar: marginalizou camaradas que não são capazes de estudar e de escrever mas que poderiam desenvolver um trabalho político válido; arreda de nós os camaradas operários e abre campo ao intelectualismo gratuito em que se dissolve a vontade de luta; enreda-nos em dúvidas sobre dúvidas de que não se vê o fim; empurrou-nos para a criação de um aparelho técnico absorvente; dissolveu a perspectiva da luta diária junto da classe, a única em que se poderia alimentar a criação do partido Comunista.
Dúvidas destas ocorrem naturalmente a todos os camaradas, uma ou outra vez, e sobretudo agora, pela crise a que chegámos. Deveria esta Assembleia decidir uma viragem total nas nossas opções?
Pensamos que não. Sem dúvida, o caminho que escolhemos tem os seus custos, e bem pesados, mas não nos devemos iludir sobre o que teria acontecido se pretendêssemos erguer um grupo político de agitação, só com o arsenal de ideias que trazíamos do PC(R).
Porque a tarefa que nos está posta não é simplesmente “reconstruir o Partido”, como se julgava em 1975, mas reconstruir todo o sistema de ideias do proletariado. Formar novos partidos reformistas pequeno-burgueses, qualquer um pode fazê-lo. Mas formar, na época actual, um partido operário para a revolução socialista não é questão que dependa apenas da vontade de um punhado de militantes. Depende acima de tudo da existência de uma corrente de ideias marxistas que sirva de alicerce do partido, aglutinador dos militantes, bússola da estratégia e da táctica. E essa corrente não existe, nem em Portugal nem nos outros países.
Se nos lançássemos agora em pleno na acção diária, mandando ao diabo as preocupações teóricas, julgando assim curar as nossas doenças, dispersarmo-nos-íamos em pouco tempo porque não temos o cimento ideológico que sustenta um partido. As divergências e a confusão com que nos chocámos de cada vez que tivemos que discutir tácticas sindicais, eleitorais, etc., mostram que sem um programa unificador não podemos ir a parte alguma.
Pensam alguns camaradas que esse programa já se encontra, nas suas linhas gerais, nos clássicos do marxismo e na experiências da revolução russa. É um engano. Não se pode voltar aos “bons velhos tempos” da Internacional Comunista. O movimento operário atravessa uma crise de fundo que se pode resumir nesta pergunta: como, onde, quando vai ser possível a ditadura do proletariado? A esta pergunta ninguém sabe responder. E a prática da luta, por si só, não nos levará lá.
Na realidade, a luta nunca deixou de haver, mas as derrotas da revolução, mas as derrotas da revolução não param de se amontoar.
Tivemos, primeiro, no plano nacional, a derrota em toda a linha das “conquistas de Abril”, esse edifício de aparência imponente mas de alicerces podres, porque foi erguido sobre a conciliação de classes e uma fingida rendição da burguesia, que agora nos está a arrebatar tranquilamente tudo aquilo que tínhamos “conquistado”. Como sempre, aquilo que foi ganho sem custo é perdido sem luta. Ao máximo de euforia sucedeu o máximo de derrotismo.
Apatia e desorganização da classe operária, tão desmoralizada que não abre um espaço à esquerda do PCP, deixando-o à vontade para negociar todas as capitulações; debandada dos papagaios da “extrema esquerda”, que há dez anos tínhamos que aturar como super-revolucionários; adesão massiva da pequena burguesia aos valores do sistema; vitória eleitoral da direita; despolitização geral; estupidez colectiva — é este o pano de fundo da política nacional. Não é de estranhar que nos sintamos cercados. E desmoralizados: fomos derrotados da forma mais vergonhosa possível porque poupámos o inimigo no momento em que o tínhamos à nossa mercê.
Mas o mais grave é que esta derrota no plano nacional se entronca numa grande derrota o plano internacional. Há pelo menos vinte anos que a ofensiva do imperialismo e da reacção alastra pelo mundo como um rolo compressor. Não porque este tenha superado as suas contradições internas, cada vez mais profundas e dilacerantes, mas porque fracassaram todas as tentativas para erguer um sistema social novo.
Decompõem-se sob os nossos olhos os regimes “socialistas” saídos das grandes revoluções proletárias e populares da primeira metade do século, e a sua passagem do regime intermédio de capitalismo de Estado a um capitalismo de corpo inteiro parece já inevitável. Naufragaram as revoluções de libertação nacional às mãos das burguesias “patrióticas” e “marxistas”, que rapidamente se deixaram domesticar pelos patrões do mercado capitalista.
É certo que a luta dos povos não pára. Novos focos de luta continuam a rebentar (na América Central, no Médio Oriente, na África do Sul, nas Filipinas…) mas em parte alguma surge a classe operária organizada num partido revolucionário próprio, a tentar a disputa do poder; a direcção pertence sempre a contingentes burgueses ou pequeno-burgueses nacionalistas, cujo papel, sob a tremenda pressão militar-terrorista e económica do imperialismo, se limita a negociarem migalhas para si próprios às costas da luta das massas.
Foi todo um ciclo de revoluções proletários, revoluções camponesas e revoluções populares de libertação nacional que se encerrou em derrota e ainda não se avistam sequer os contornos de um novo ciclo capaz de ir mais além As gerações anteriores de revolucionários lutavam amparadas em modelos que esperavam poder repetir; a revolução soviética, a revolução chinesa, a revolução cubana… Actualmente, os modelos estão por terra e não há sinais de outros novos.
Daqui, a acumulação de interrogações sem resposta sobre o caminho da revolução proletária. Ninguém vê como seja possível, na sociedade de hoje, a insurreição dos operários, a tomada do poder de Estado, a ditadura do proletariado, a construção de uma sociedade socialista, o caminho para enterrar o capitalismo. E está provado que só o estudo de Marx e Lenine não chega para dar as respostas que nos faltam.
Tudo aparece como se nos países imperialistas já fosse tarde demais para a revolução (a classe operária perdeu peso, consciência de classe, espírito combativo político; a pequena burguesia e a sua mentalidade tacanha invadem tudo, a burguesia rodeia-se de trincheiras políticas, militares, ideológicas que parecem inexpugnáveis); e ao mesmo tempo, nos países dependentes, ainda fosse cedo demais para a revolução (a classe operária cresce mas ainda não tem tradições políticas próprias, é o nacionalismo burguês que cega e arregimenta as massas).
Vivemos assim uma época de estrangulamento em que a revolução parece extinguir-se Só isso explica que a corrente marxista-leninista se tenha esvaziado internacionalmente e que, a fazer as vezes de esquerda, floresçam as mais aberrantes teorias reformistas. Os poucos grupos marxistas-leninistas que conhecemos debatem-se com uma crise semelhante ou pior do que a nossa. Não se pode falar ainda sequer na germinação de uma nova corrente marxista revolucionária internacional. Encontramo-nos como os raros sobreviventes de um exército desbaratado, em que ninguém acredita.
É esta carga de derrotas que está a pesar sobre nós de forma insuportável e a empurrar-nos para a desagregação.
Se olharmos a nossa crise com um certo distanciamento, deixando de lado os pormenores, é fácil concluir que ela é apenas mais um episódio na grande “limpeza geral” a que a burguesia vem procedendo, no intuito de liquidar todas as bolsas inimigas que se tinham implantado em 74/75. Reabsorver todos os focos de subversão, mandar tudo para casa, “reeducar” os revolucionários, domesticando-os como reformistas, carreiristas ou pobres diabos — tal é a palavra de ordem que não foi escrita por ninguém mas que circula nas veias da sociedade actual e que leva tudo à sua frente como uma enxurrada.
É uma ofensiva que se desdobra sem violência, sem prisões (quase), sem sangue. Recorre só à pressão económica e ideológica e por isso torna-se quase impalpável — mas é uma ofensiva bem a sério, em que estão em jogo os destinos do movimento revolucionário em Portugal. A questão é saber se de 74/75 se salvam lições, militantes, núcleos, para impulsionar um futuro ataque, ou se tudo vai ser varrido sem deixar rasto. A vassoura não pára de trabalhar. E os camaradas que se sentem tentados a recolher à sua vidinha privada “porque já não há luta de classes”, mal imaginam que estão, nesse preciso momento, a desempenhar um papel na luta de classes: estão a depor as armas e a render-se como o inimigo lhes ordena.
Esta nossa 3ª Assembleia não poderá com certeza tomar decisões espectaculares para levantar a OCPO. Mas vai ter que reafirmar que rejeitamos a rendição e que vamos continuar a lutar.
Não pretendemos excluir camaradas, porque todos nos fazem falta; mas não podemos deixar dúvidas a este respeito, sob pena de nos desfazermos: a OCPO é para quem quer trabalhar pela revolução, ao serviço da classe operária; muito, pouco, alguma coisa, mas com convicção.
A força para continuar esta luta tremendamente desigual, não a vamos buscar a nenhum esforço sobrehumano de militância ou de “voluntarismo” mas a meia dúzia de ideias simples que por vezes nos escapam.
É preciso não esquecer, no meio deste mundo fervilhante de ideias burguesas que nos cerca, que, para além da barreira que se ergue à nossa frente, de aparência invencível, está a continuação da luta de classes e a derrocada inevitável do capitalismo, tão condenado a desaparecer como já desapareceram os regimes anteriores baseados na exploração do homem pelo homem. Uma saída para o impasse actual da revolução pode demorar a ser encontrada; mas só será encontrada pelos que persistirem na luta, não pelos que ficarem de parte a observar. E em vez de nos interrogarmos se a revolução é para o nosso tempo ou só virá “daqui a mil anos”, temos que estar atentos a não desperdiçar o tempo que temos e não ajudar a burguesia com a nossa vacilação. Em vez de nos sentirmos “lunáticos”, com o passo trocado em relação a toda a gente, temos que ter presente que somos nós que defendemos os interesses a longo prazo do movimento operário. O facto de estarmos isolados não é nenhuma prova de que estejamos errados. Em vez de perguntarmos angustiados “por quanto tempo mais vamos poder resistir”, devemos tomar consciência de que podemos resistir indefinidamente ao cerco actual, entrincheirados como estamos numa sólida plataforma política e na base técnico-financeira independente que criámos. A nossa actividade continuará a ter altos e baixos mas a nossa sobrevivência depende só de nós.
Inclusão | 16/11/2018 |