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Primeira Edição: Política Operária nº 22, Nov-Dez 1989
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Perante a nova ofensiva dos ‘críticos’, Álvaro Cunhal diz que está a favor da perestroika, da verdadeira, que reforça o socialismo, e contra as deturpações anti-socialistas da perestroika. Mas só ele é que vê essa diferença…
Cunhal na Damaia comentou em tom jocoso, referindo-se à entrevista de Vital Moreira, que tem muita honra em ser um obstáculo à transformação do partido e que o PCP “nunca será social-democrata”. Ele adoptou a táctica desesperada da confiança descontraída, como se dissesse aos militantes desnorteados: “Não se assustem; já passei por coisas piores e não me deixei vencer”. Mas o desafio agora é de outra dimensão; todos sentem que é mesmo uma batalha final. A segurança optimista de que Cunhal faz alarde soa a suicídio, porque está toda edificada em fantasia.
E qual é a fantasia? Cunhal sustenta o mito de que haveria dois movimentos diferentes: a verdadeira perestroika de Gorbatchov, que reforça o socialismo, e a deturpação viciada da perestroika da Hungria, Polónia ou Letónia, com a sua condenável atracção pelo capitalismo.
Mas quantos ingénuos acreditam ainda nesta balela? A ideia da boa e da má perestroika é um truque que pode servir como manobra de recurso para tranquilizar consciências em pânico. Mas só retarda uma derrocada mais fragorosa, à medida que se torna evidente que o movimento é único e corre todo na mesma direcção: desmantelar o sistema estatizado, passar à economia de mercado, deixar operar sem entraves a acumulação do capital. E isto significa para os PC dos países capitalistas, e muito concretamente para o PCP, a directiva de se arrumar no espaço da social-democracia.
O drama de Cunhal é ter que mostrar plena concordância com o gorbatchovismo, mesmo sabendo que um dos objectivos do autor da perestroika foi tirar o tapete debaixo dos pés aos últimos ‘ortodoxos fiéis’, forçá-los a completar a renegação e a juntar-se à social-democracia. Cunhal está condenado a ir para o fundo vitoriando aqueles que o afundam e fingindo que não sabe que os inspiradores das Zitas e Vitais estão em Moscovo. O “comunismo democrático “que Vital Moreira reclama vai ser uma nova corrente política ou é o nome para uma etapa preparatória da fusão com a social-democracia ?
Vital Moreira, na sua entrevista de choque, contestou que a evolução do PCP seja forçosamente no sentido de se tornar um partido social-democrata. Afirma que o partido pode vir a situar-se numa área de ‘comunismo democrático’. E isto porque, em sua opinião, continua a haver diferenças entre PC e PS, e será bom que se mantenham. Que diferenças? Os comunistas continuam a ter “uma ligação ao local de trabalho, aos anseios mais específicos dos trabalhadores”. Esta observação mostra que o Prof. Vital tem mais sensibilidade política que a sua amiga Zita. Não se deixa dominar pelo impulso de cair nos braços de Soares e apercebe-se da utilidade de manter o reformismo desdobrado em dois ramos: o socialista e o comunista (democrático).
Na verdade, o PS assumiu tão claramente a sua função de partido de governo, comissário da burguesia e servente do imperialismo, que se lhe torna difícil abarcar na sua área de influência o conjunto do movimento operário e sindical. Seria vantajoso para o futuro das instituições que o PS e o futuro PC (Democrático) mantivessem os seus eleitorados próprios, colaborando, cada um na sua especialidade, na tarefa de integrar as massas no funcionamento do sistema.
Mas outra questão é saber se isso vai ser possível. Quando Vital, por exemplo, diz sem complexos que “o marxismo-leninismo faliu”, quando, do passado dos partidos comunistas, guarda apenas como património positivo a luta antifascista (excluindo portanto tudo o que atacou directamente o poder do capital), que espaço resta para um ‘comunismo democrático’ que não seja justamente o mesmo que a social-democracia ?
O que se está a discutir são as modalidades e os ritmos da rendição incondicional à ordem burguesa, à sua ideologia, aos seus valores. A burguesia não deixa ao PC nem mesmo o ensebado véu marxista-leninista ” com que ainda se cobria.
Os membros do PCP que há 30 anos tiveram o traumatismo do 20.° Congresso do PCUS e de ver desautorizado o regime-modelo, posto em causa o seu passado, insultado o seu líder máximo, recebem agora novo duche gelado com os desenvolvimentos da perestroika. Outra vez, como há trinta anos, convidam-nos a “reconhecer a queda do mito da perfeição dos sistemas de Leste” e informam-nos de que os dirigentes de ontem “estavam eivados duma concepção caduca de socialismo".
Duas renegações em trinta anos é carga excessiva para qualquer um, mesmo para quem se deixou imbecilizar pela obediência. Como vai o militante médio reagir a estas inovações que já nem lhe deixam convicção para defender o seu ‘comunismo’ cor-de-rosa pálido dos últimos trinta anos?
Será possível maior humilhação? O PCP, em árduas batalhas democráticas, sempre no respeito pelas instituições e pela Constituição, não conseguiu defender as “conquistas irreversíveis”. E, no momento em que os seus militantes se apercebem de que a batalha está perdida, ainda lhes vêm dizer que estava toda errada desde o princípio: não tiveram razão em insultar Soares, em combater a UGT, em condenar o Reagan, em atacar a social-democracia, em apresentar a União Soviética como modelo, em falar contra o capitalismo! Última humilhação, ainda têm que sofrer a simpatia compadecida que lhes manifesta Mário Soares, por terem sido vítimas do “colossal embuste do comunismo”.
Estamos contra os ‘ortodoxos’ e os ‘liberais’. Aquilo que se apresente como uma batalha decisiva entre comunistas é apenas o processo de decomposição afinal do restos apodrecidos do revisionismo português.
Não temos nada em comum com nenhum dos campos, ainda que isso pareça estranho ou “pouco táctico” ao observador comum. Lutamos contra ambos e não fazemos alianças tácticas com nenhum. Só vemos utilidade em alianças com os que se orientem, mesmo que de modo confuso, no sentido da revolução, do derrubamento da burguesia, da libertação do trabalho. Ora, os Cunhais, Vitais, ‘ortodoxos’, ‘liberais’ e ‘críticos’, são todos da mesma massa: buscam fazer-se aceitar pela sociedade burguesa e encontrar nela um lugar como procuradores dos trabalhadores. Só discordam quanto a ritmos, estilos, oportunidades.
A nossa simpatia vai apenas para os operários de base do PCP, esses mesmos que não há muitos anos nos acusavam de “esquerdistas”, “vendidos à CIA”, “inimigos do partido”. Será que alguns conseguem medir o colossal embuste reformista que lhes venderam como comunismo? Esperemos que nem todos tenham deixado embotar por completo o espírito de classe.
Inclusão | 06/09/2018 |