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Primeira Edição: Política Operária nº 26, Set-Out 1990
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Abençoada crise do Golfo que põe a claro os verdadeiros alinhamentos na política nacional! O esforço penoso que o PS tem vindo a fazer para encontrar pontos de demarcação com o governo (eleições, a quanto obrigais!) teve que ser interrompido. Chegou um daqueles momentos sagrados em que o patriotismo exige a “convergência nacional”.
O que está em jogo para uns e para outros não é, evidentemente, a “lei internacional”, nem sequer o preço do petróleo, mas algo à sua medida: “Portugal não pode fazer má figura junto dos nossos aliados”. É esta a grande causa.
Numa sebenta unanimidade ansiosa de lacaios, todos se querem mostrar “à altura”. E já que, lamentavelmente, não há esquadras nem mísseis para enviar, pode-se ao menos dar o território. E apelar à guerra. Se nem todos têm o desembaraço de um António Maria Pereira, porta-voz habitual da reacção, quando propõe “eliminar Hussein sem hesitações nem cedências” e, para esse fim, lançar ataques aéreos massivos às cidades iraquianas (D. Notícias, 27/8), não faltam os editoriais e comentários assumindo com toda a naturalidade a posição americana como a nossa, prevendo o começo da ofensiva todas as semanas, dando avisos presurosos contra os “cavalos de Tróia” que podem minar a “firmeza ocidental”, num estendal de subserviência pró-americana, chauvinismo e racismo como há muito se não via.
O ambiente é tal que até mesmo os moderados receiam queimar-se como “pombas”. E um jornalista que começa por demarcar-se da histeria geral acaba dizendo que “para um ocidental, a derrota de Hussein é desejável”, porque ele ameaça o equilíbrio do planeta e o seu regime não é democrático! (Joaquim Vieira no Expresso, 25/8). Os EUA, claro, são “democráticos”! E o “equilíbrio do planeta” ditado por eles é que é bom “para um ocidental”!
Ninguém duvida de que:
Estes são factos. Mas que interessa isso se os EUA esperam de Portugal um firme apoio à “operação cirúrgica” para meter na ordem o agressor que veio “desafiar a ordem internacional”?
Ficou o presidente da República incomodado por ver o país envolvido numa agressão militar não-declarada sem lhe darem tempo sequer para fazer um discurso? Nem por sombras! Indignou-se o PS por o governo ter aberto as Lajes à ponte aérea americana sem consultar ninguém? Nem lhes passou pela cabeça atacar o governo por esse lado! Cheios de ciúmes por não serem eles a brilhar junto do Pentágono, ultrapassam o governo pela direita e criticam-no por falta de presteza em servir os “aliados”. “Não podemos ter uma participação simbólica”, exclama João Cravinho. João Soares declara que “o fundamental é dar uma lição ao agressor” e assegura que “Israel é, não obstante os erros que por vezes comete, o único Estado democrático de todo o Médio Oriente”!
Com o incitamento do PS, as coisas vão tomando um aspecto obsceno. Abrem-se as bases de Santa Maria, Beja, Montijo (até a Portela, aeroporto civil!). A fragata que ia “só para manobras no Mediterrâneo oriental” agora já poderá ter que seguir para a área de conflito; foram cedidos barcos de carga para transportar soldados americanos, depois já é só carga, depois já talvez sejam soldados…
No meio disto surge uma dúvida, embaraçosa mesmo para esta tropa fandanga: não é ilegal ceder as Lajes para uma utilização militar que não se enquadra na NATO? Mas tudo se resolve. Fica-se (só agora) a saber que Jaime Gama assinou em 1983, sendo ministro Mário Soares, um protocolo secreto da base das Lajes fora do âmbito da NATO. Isto obviamente reduz os “poderes soberanos” da Assembleia da República a uma palhaçada mas não interessa, está legalizado o empréstimo da base para tudo o que os americanos quiserem. E a glória por isso pertence ao PS!
Deixemos a social-democracia. O que faz a “esquerda” contra o facto de o país estar já envolvido na agressão ao Iraque? Convoca protestos manifestações, comícios, campanhas de imprensa? Não. Agarra-se à aba do casaco do poder pedindo moderação ou finge que o assunto não lhe diz respeito.
O PCP precisa criticar o envolvimento servil do governo e demarcar-se da corrida americana para a guerra. Mas, dentro da sua postura “responsável” evita dramatizar a questão; discute-a cordatamente nas comissões parlamentares e pede que o problema seja tratado “no quadro das resoluções da ONU”, como se a ONU não fosse a folha de parra para a intervenção americana.
Ao PSR, sumiu-se-lhe a irreverência antimilitarista, justamente quando se viu diante duma opção a sério e não apenas nas lides do folclore pacifista. O Combate de Setembro nem sabe que existe o Golfo. E a senil UDP, sempre a procurar afanosamente ganhar votos junto da parte mais atrasada do “nosso bom povo”, propõe “acções cívicas pela paz” para fazer ceder o Iraque à condenação internacional; e, para provar que também é patriota, comparece na vigília da direita frente à embaixada do Iraque…
Nesta crise não há forças de esquerda, nem sequer de meia-esquerda. A situação política é de tal ordem que as divergências se situam todas dentro do leque da defesa aberta ou pelo menos da submissão ao imperialismo.
E isto não é casual. O que acontece é que uma certa pequena burguesia deste país, que gostava de namorar com o marxismo e o anti-imperialismo, percebeu depois de 75 que o seu interesse está no campo oposto ao da classe operária e dos povos oprimidos. Reconhece-se afilhada do imperialismo. E já não se envergonha de o dizer. No conflito em curso, o seu egoísmo cego só lhe dita um raciocínio: “Se as coisas corressem mal para a América, corriam mal para nós também”. Tudo o resto não lhe interessa.
Assim, seja qual for o desenlace da crise, sairemos dela com um regime mais deslocado para a direita. Estreitam-se os laços unindo PSD e PS à embaixada americana e à CIA, acentua-se a decomposição capituladora do PCP, sai reforçada a autoridade das chefias militares, abastecida com armamento fresco para “estar à altura de qualquer missão”. Se o movimento operário tomar consciência do ponto zero a que chegou já será um começo para iniciar de novo a sua longa marcha.
Inclusão | 16/10/2018 |