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Primeira Edição: Público, 24 de Janeiro de 1991
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
E assim, cá estamos de regresso à História, à velha história de sempre que nos garantiam estar acabada: cidades iluminadas pelos incêndios, recessão, sessões febris na bolsa, refugiados, horror — a vida.
O romance cor-de-rosa foi há um ano apenas, lembram-se? Com a queda do Muro e da Cortina, chegava o fim dos totalitarismos e da tensão, era o triunfo da democracia e do bom senso internacional. Os optimistas nem reparavam, no meio do alvoroço dos discursos, que o colapso dos burgueses ineptos do Leste só alargava o campo de manobra aos verdadeiros profissionais do ramo, os do lado de cá. Não serviu de nada alertar que a luta ia redobrar de ferocidade. Então não se estava mesmo a ver que ia começar um mundo novo democrático, sob a égide da América de Bush?
Durou pouco a farsa. Consumada a rendição dos russos ao “modo de vida ocidental”, postos de joelhos os “mal comportados” de Angola, Nicarágua, Moçambique, emergiu com clareza o grande desafio da década — meter na ordem os regimes “renegados”, os desafiadores insolentes da nova ordem internacional, que julgam poder discutir preços, juros, contingentes de matérias-primas, lá porque têm mísseis.
A transição da explosão pacífica para a febre de guerra fez-nos percorrer a velocidade alucinante o catálogo geral dos truques diplomáticos para desencadear guerras “justas”. Provocações, “bluffs”, subornos de televisões e jornais, “esforços insanos para salvar a paz” que não passavam de macaquices para impressionar a geral, duches alternados de esperança e de previsões sombrias — tudo para pôr as cabeças a andar à roda e permitir aos acontecimentos caminharem naturalmente para o alvo estabelecido — a necessidade da guerra, a sua inevitabilidade, a sua “naturalidade”.
E cá estamos em plena esquizofrenia. O ataque ao Iraque não é pelo petróleo, oh não!, mas apenas para fazer respeitar a lei internacional; não foi um acto de pirataria dos Estados Unidos, mas o cumprimento duma resolução do Conselho de Segurança; o Kuwait não é um entreposto e comissário das companhias petroleiras, é uma pequena e nobre nação que luta valentemente pela sua soberania; Israel não é o carrasco dos palestinianos, mas um oásis de democracia e tolerância; Cuellar não é um servente da finança internacional, é um paladino infatigável da paz; a ONU não está a servir de capa a uma guerra, mas apenas a uma operação “cirúrgica” (a ferocidade que se pode esconder sob esta elegante etiqueta!); de resto, cobrir Bagdad com tapetes de bombas é uma forma de poupar vidas humanas, evitando um conflito maior no futuro... Quanto aos que protestam contra a matança, não passam de patetas e drogados, manipulados por Saddam, tal como dantes se deixavam manipular pelo bolchevismo.
Felizmente, aqui não há lugar para os fanáticos da “guerra santa”; aqui impera a democracia. Generais com cara de porco relatam com modéstia as suas ofensivas estratégicas; analistas vibrantes de júbilo comentam os feitos das “forças aliadas”, fazendo da RTP uma nauseante “Luso-American Television”; Mário Soares promete que um “mundo novo” vai sair deste crime (por favor, não deixem que ele amanhã finja nada ter dito); e o subconsciente prega a sua partida a Bush, levando-o a apregoar, em tom de evangelista de terceira categoria, a “nova ordem” que se está a edificar sobre as pilhas de cadáveres, sem reparar que assume a postura e os “slogans” dum novo hitlerzinho de pacotilha.
Como poderia ter acabado a História se os “gangsters” vestidos de polícias continuam a governar o mundo, dispostos a subir a parada até onde for preciso, até às bombas atómicas se necessário? Não, nada acabou. A importância destes dias é comprovarem que a tarefa que está posta diante das nossas vidas permanece actual, mesmo quando julgamos ter-se eclipsado. A esquerda tem intacta a sua razão de ser, o seu espaço, o seu programa. Sabemo-lo, nem que fosse apenas por este velho sabor familiar da indignação, da revolta e do ódio contra os que jogam com as nossas vidas. Nada acabou. É agora que tudo recomeça. Vamos ter que enterrar os autores desta cruzada suja até ao pescoço na sua “vitória total e absoluta”: consegui-lo é já começar a reinventar a revolução.
Inclusão | 21/08/2019 |