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Primeira Edição: Política Operária nº 34, Mar-Abril 1992
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
É hoje opinião quase geral que o socialismo existia de facto na União Soviética e era tão mau que foi rejeitado pela massa da população. É uma ideia absurda, mas compreensível: para o senso comum, terra onde não há patrões deve ser socialista e em socialismo tudo corre mal, porque a busca do lucro é própria da natureza humana…
Mais curioso é o caso de pessoas que, dizendo-se comunistas, insistem, apesar da tremenda lição dos acontecimentos recentes, em afirmar que havia socialismo na URSS. Quando se lhes pergunta como pode o socialismo ter desaparecido sem convulsões, no meio da indiferença geral, como se caísse por um alçapão, argumentam que era um socialismo “com deformações” e que os erros e desvios dos dirigentes acabaram por desiludir, confundir e dividir os trabalhadores…
Como explicação “marxista”, isto é sem dúvida um bocado tosco (alguma vez aconteceu na história que um sistema social desaparecesse por causa de erros?!). Mas é tudo o que ideólogos como Álvaro Cunhal, por exemplo, conseguem discorrer. Mais audaciosos, alguns outros grupos “comunistas” tentam explicar em termos de classe essa milagrosa mutação do socialismo em capitalismo. E aí chegam à conclusão estarrecedora de que o regime da URSS era bom; os trabalhadores é que não estiveram à altura de o merecer…
Pode parecer anedota, mas é o que nos explica com toda a seriedade o artigo “As divagações em torno do capitalismo de Estado”, de Gilles Fossat, publicado no nº 29 (1º trimestre de 1992) da revista Regroupement Communiste, de Paris. Trata-se dum grupo que critica o reformismo do PCF e apela à reconstituição do movimento comunista. É caso para dizer que com “comunismo” desta cepa não vamos longe…
Insurge-se o autor contra os “esquerdistas” que vêem nas transformações da URSS a confirmação de que o “socialismo real” era apenas um capitalismo de Estado em evolução. Essa tese, acusa, tem uma visão idealizada do socialismo; ignora que este é “um processo transitório e contraditório, alvo de um combate permanente”; não compreende que ele tem que se apoiar num “Estado centralizado e estruturado, indispensável para conduzir a gestão planificada e para fazer face aos imperativos da luta de classes nacional e internacional”; fala da apropriação do poder por uma “pretensa classe dirigente”, quando os privilégios da nomenclatura eram “irrisórios” em comparação com os dos capitalistas no Ocidente “e sobretudo não tinham nada a ver com relações de exploração”. Ou seja, todo o socialismo tem as suas imperfeições, mas continua a ser socialismo, mesmo que o não pareça…
O mal começou apenas, segundo Fossat, com as reformas adoptadas em fins dos anos 80. A pretexto de resolver as dificuldades económicas, reintroduziram progressivamente os mecanismos da concorrência e do lucro capitalista. O desemprego, a austeridade, a inflação, a especulação, as rivalidades entre repúblicas outrora solidárias tomaram-se a regra; etc.
Por nós, diríamos que as reformas gorbatchovianas não “reintroduziram” mas libertaram os mecanismos da concorrência e do lucro, aprisionados pela ficção socialista. E, longe de serem um erro ou um desvio, elas foram a saída necessária para a estagnação a que chegara o regime, depois de ter esgotado todas as suas virtualidades de crescimento económico. Precisamente porque se tratava de capitalismo de Estado.
Para o autor do artigo, a fórmula “capitalismo de Estado” aplicada à URSS seria absurda. Ela só faria sentido em regime capitalista, quando aplicada a intervenções pontuais do Estado na economia, obedecendo às leis do mercado e do lucro. Mas isso nada teria de comum com o regime que vigorava até recentemente na URSS. Aí, a totalidade dos meios de produção e de troca era propriedade colectiva por intermédio da propriedade do Estado. O mercado fora suprimido, “o que é em si a negação do capitalismo”. Era proibida a compra de força de trabalho. Não existia capital financeiro, bolsa, circulação especulativa da moeda, mas “reinvestimento social da mais-valia [mais-valia socialista…], ou seja, a sua reapropriação pelos trabalhadores”.
Estamos nitidamente perante um caso de ignorância e excesso de zelo. Só poderíamos aconselhar a Gilles Fossat que não se limitasse a ler os manuais de “marxismo- leninismo” stalinistas e brejnevistas e que relesse Lenine. Lenine e os marxistas do seu tempo não tinham dúvida de que a propriedade estatal dos meios de produção, por si só, não chegava para se falar em socialismo. Já nas Teses de Abril, Lenine avisara:
“Medidas como a nacionalização da terra e de todos os bancos e consórcios capitalistas, ou, pelo menos, o estabelecimento do seu controlo imediato pelos sovietes de deputados operários, etc., não significam de modo algum a ‘implantação’ do socialismo”.
E, nos conturbados anos seguintes, insistiu uma e outra vez que a tarefa do novo poder consistia em criar um “regime de transição”, “sob capitalismo de Estado”, capaz de “resistir até à vitória do socialismo nos países mais avançados” porque “não somos suficientemente civilizados para passar directamente ao socialismo”.
Como o socorro dos países mais avançados não apareceu, a revolução dos sovietes agonizou. Mais tarde, contudo, com a “segunda revolução” de Staline, julgou-se ultrapassado este dilema; a URSS, industrializada e colectivizada, já tinha forças produtivas suficientes e “civilização suficiente” para ser socialista. Só que se omitia (foi também o nosso caso quando no movimento “marxista-leninista”) que esse “salto para o socialismo” fora realizado à custa de tudo o que ainda restava das conquistas revolucionárias e estabelecera uma ditadura férrea dos administradores, gestores e vigilantes do capitalismo estatal sobre as massas trabalhadoras. E o facto de não existir compra individual de força de trabalho não impedia que esta fosse contratada e explorada em moldes puramente capitalistas pelos directores de empresa.
Mas o capitalismo de Estado é uma solução temporária, de emergência, destinada a permitir a acumulação inicial de capital em países com uma burguesia débil. Passado esse período, envelhece rapidamente. Já no nosso tempo, o emperramento da economia e os “remédios” com que se tentou estimulá- la (limitações na planificação, introdução do critério do lucro nas empresas e da autonomia de gestão, política dos “estímulos materiais”, abertura às multinacionais) indicavam o efeito erosivo das leis do capitalismo sobre um sistema onde tudo era centralizado. Pouco a pouco, foi-se tornando claro aos quadros esclarecidos da URSS que se impunha ir até ao fim: reconhecer o livre jogo do mercado e restabelecer a propriedade privada. Isto, na verdade, nada tem a ver com a “liquidação do socialismo”; é antes o desabrochar dum capitalismo que já não cabia no casulo estatal.
“Setenta anos de poder soviético — afirma o artigo — tinham permitido construir uma economia não isenta de graves deformações mas fundada em critérios fundamentalmente diferentes dos do liberalismo”. Os critérios eram sem dúvida diferentes dos do liberalismo, mas poder soviético era coisa que não existia. Aqueles que insistem na mentira convencional do “poder soviético”, ocultando que na URSS, passados os breves anos iniciais da revolução, os trabalhadores não tinham nenhum poder e eram oprimidos e explorados, metem-se numa charada: como permitiram os trabalhadores que as coisas chegassem ao ponto actual?
Há trinta anos, quando proclamaram que a URSS deixara de ser socialista devido ao XX Congresso do PCUS, chineses e albaneses tentaram construir uma explicação para o facto dessa “contra-revolução” ter sido possível sem convulsões visíveis. Disseram então que, se a “via pacífica para o socialismo” era uma invenção revisionista, em contrapartida a inversa era possível: os factos mostravam que o socialismo, se fosse enfraquecido por erros e desvios, podia abrir passagem ao capitalismo, mais ou menos pacificamente.
Mas esta tese era tão absurda como a dos revisionistas. Se até hoje nenhum sistema de organização social deu lugar a outro sem profundas convulsões, como poderia isso acontecer com uma restauração capitalista realizada contra o socialismo, que é justamente, por definição, a mais ampla democracia, o poder dos trabalhadores, a ditadura do proletariado?
Na verdade, a tese chinesa era uma confissão implícita de que se concebia o socialismo como um regime controlado por uma classe restrita, que podia seguir em frente ou optar pelo retorno ao capitalismo, recorrer a manobras astuciosas para enganar o povo, etc. Mas este “socialismo”, que pode desaparecer quando os trabalhadores estão distraídos, o que é se não capitalismo estatal de fachada socialista?
Para quem tinha dúvidas, a fulminante conversão ao capitalismo de milhões de “comunistas” e de toda a população trabalhadora da ex-URSS veio comprovar que aí funcionava o capitalismo, apenas coberto por uma fina película, cada vez mais ténue, de mentiras oficiais “socialistas”. No dia-a-dia imperava a guerra de todos contra todos, típica da “civilização” capitalista. Por isso a “contra-revolução” foi tão fácil: foi só pôr a lei de acordo com a vida real.
Citam-nos as vantagens que os trabalhadores ainda detinham, apesar de tudo, em comparação com o Ocidente (serviços sociais a baixo preço, artigos de primeira necessidade subsidiados, pleno emprego, leque salarial mais reduzido, ritmos de trabalho mais baixos). Só que isto não chega como prova de socialismo; prova apenas que a fraqueza estrutural da burguesia de Estado não lhe permitira ainda liquidar esses vestígios das conquistas sociais da revolução.
Chegado a esta encruzilhada, o autor do artigo encontra uma “solução” original: os dirigentes puderam enveredar pelo mau caminho não por ser essa a dinâmica do sistema mas devido à “demissão cívica” dos trabalhadores, que se desinteressaram da defesa do socialismo! A burocratização e degeneração do regime “não foram causa mas efeito da desmobilização das massas”!
E como pôde isso ter acontecido? O problema foi “ter emergido [graças aos avanços do socialismo!] uma classe média agrupando a grande maioria da população (!), a qual, devido aos benefícios que recebeu do regime (!), segregou uma ideologia pequeno-burguesa e se orientou para o modelo da sociedade de consumo capitalista, desinteressando-se dos sacrifícios necessários à construção do socialismo e à solidariedade internacional”.
Os trabalhadores aburguesados pelos benefícios do socialismo optam pelo capitalismo! A tal absurdo reaccionário (e a outros do mesmo jaez) chegam os paladinos do “socialismo real” da ex-URSS, que pretendam encontrar o ponto de regressão em 1980 ou um pouco mais atrás.
A sórdida explosão burguesa, reaccionária e mesmo fascizante nos países da ex-URSS e da Europa de Leste (a seguir já se alinham a China, a Coreia, Vietname, Cuba…) não provoca apenas a debandada vergonhosa dos restos do “movimento comunista”; alimenta, por reflexo, uma escola “comunista ortodoxa”, com grupos em vários países e representada entre nós pelo PCP de Álvaro Cunhal.
Embora esta corrente procure fazer-se acreditar aos olhos dos trabalhadores como o “último reduto leninista” e mantenha um alinhamento político democrático, nem por isso deixa de ser reaccionária. Em nome da condenação do presente, tenta manter os operários amarrados a uma imagem idealizada do passado e impedir-lhes uma perspectiva comunista sobre o ciclo de revoluções deste século e as causas do seu malogro.
Naturalmente, privada da protecção e da justificação que lhe dava o “campo socialista”, esta corrente não pode durar muito tempo. Mas será na luta aberta contra ela que o movimento operário se libertará de saudosismos mentirosos e narcotizantes e se rearmará com uma crítica comunista que o capacite para a revolução.
Inclusão | 02/10/2018 |