A História do PCP segundo Pacheco Pereira

Francisco Martins Rodrigues

14 de Novembro 1992


Primeira Edição: Público, 14 Novembro 1992

Fonte: Francisco Martins Rodrigues — Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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A pretexto de recordar “os rivais de Cunhal", Pacheco Pereira brindou-nos, no PUBLICO de 4 de Dezembro, com uma exposição sugestiva das terríveis lutas pelo poder no PCP. Por mim, nada teria a opor ao folhetim, nesta época de telenovelas, se não fosse ver-me aí incluído na lista dos rivais derrotados pelo dr. Alvaro Cunhal.

É uma história ridícula. Pacheco Pereira leu que eu fiz criticas a Cunhal quando fazia parte da Comisão Executiva do partido e dai deduziu que eu seria um malogrado aspirante a lider. Como ajudá-lo a compreender que as coisas não funcionavam assim? Primeiro, ninguém no PCP sonhava em disputar a liderança a Cunhal e eu menos do que qualquer outro. Depois, o meu lugar na Comissão Executiva do partido (aque, de resto, só fui chamado numa situação de emergência, devido à súbita prisão dos principais dirigentes na clandestinidade) não me dava quaisquer poderes para fazer mudar a opinião do corpo dirigente do partido, e eu sabia-o. A linha do partido assentava na luta por uma democracia burguesa e na fidelidade indiscutida à União Soviética; ao pôr esses “principios” em causa, eu colocava-me automaticamente à margem do partido.

Assim, depois de manifestar as minhas divergências, saí em 1963, por ter chegado à condusão de que aquele partido não me servia. Desde então, já lá vão quase 30 anos, a minha actividade como comunista não tem nada a ver com o PCP. Não só nunca considerei a minha saída como uma “derrota”, como estou muito feliz por ter percebido a tempo que o PCP era (e é) um partido reformista com emblema “comunista”. Derrotado foi justamente Cunhal, ele que arranja agora justificações atabalhoadas para o fiasco da sua “revolução democrática e nacional" e para a sua fidelidade canina à URSS dos “apparatchiks".

Em tudo isto, não houve nem podia haver rivalidades ou lutas pelo poder. Só quem esteja intoxicado com outras lutas pelo poder mais actuais, essas sim surdas e impiedosas, poderá imaginá-lo. Pacheco Pereira sabe do que falo, e não é do PCP.

Mas não fica por aqui a invencionice. Disposto a instruir o povo sobre a implacável luta dos comunistas pelos postos de chefia, Pacheco Pereira desencanta “lutas de rivais” como um mágico tira coelhos da cartola. É preciso dizer que a sua digressão sobre a história do PCP não vale um chavo, já que, do lado deste, com a sua sonsa moral de convento, não virá certamente resposta.

Quem conheça minimamente a história do PCP sabe como é absurdo aprentar Piteira Santos como outro dos “rivais” derrotados. Piteira Santos foi, em certo momento, um responsável pelas actividades de “frente antifascista” do PCP. A sua passagem pelo Comité Central foi curta; nunca chegou a desfrutar de autoridade política para integrar o núcleo central de decisão do partido, justamente pela sua crença num atalho “reviralhista” que pudesse simplificar a luta pela queda da ditadura.

Mais caricato ainda, se possível, é o romance do pobre Franciso Paula de Oliveira, que não chegou a ser rival de Cunhal, mas poderia ter chegado a ser... porque “testemunhos da época refeririam “a rivalidade surda entre ambos desde os tempos da juventude”. Com franqueza Pacheco Pereira! Até nas telenovelas é preciso manter um simulacro de coerência! “Pável" foi afastado pela Internacional devido à paranóia da “provocação” nesses anos de ascenso do nazismo. Só por grande esforço imaginativo se pode ver aí uma luta pelo poder.

Único dos quatro “rivais” a sê-lo de facto, por defender uma política alternativa à de Cunhal dentro do tipo de partido democrático-burguês que o PCP era, Júlio Fogaça também não foi vitima da “brutalidade” de Cunhal; ele foi apenas vítima da sua inábil tradução primeiro do browderismo, depois do krutchovismo, que não podiam deitar raizes no áspero solo português (o mesmo aconteceu, nesses anos, a muitos outros Fogaças que tentavam aplicar a “linha pacifica” em países fascistas); vítima, por outro lado, da sua imprevidência deixando-se prender pela PIDE nas condições de todos conhecidas, o que lhe retirava o mínimo de credibilidade como dirigente de um partido clandestino.

Todo o tremendo enredo imaginado por Pacheco Pereira em tomo dos “rivais” de Cunhal reduz-se, assim, à oscilação que acompanhou toda a vida do PCP na clandestinidade, entre a perspectiva cunhalista de um “levantamento” tutelado pelos oficiais patriotas e aperspectiva fogaciana de uma “saída doce” proporcionada por fascistas “liberais”.

Ainda mais algumas observações marginais ao indigesto “refogado” de Pacheco Pereira:

E já agora, Pacheco Pereira, você não acha que essa do Pável ser expulso pela Internacional Comunista como "inimigo do povo” e, ao mesmo tempo,ser enviado em missão para o México (para ajudar a matar Trotsky?) é um bocado forte demais? E o que vêm aqui fazer os romances de espionagem série B sobre Henri Curiel e Michel Raptis? Até parece que você quer impressionar os ingénuos com os seus conhecimentos do “sub-mundo comunista”.

Por último, se não lhe causa engulhos citar a opinião dos anarquistas de que a Amnistia dos Centenários teria sido a “paga” de Salazar pela cedência expressa na carta de Bento Gonçalves, não seria seu dever moral acrescentar:

  1. que os presos acusados de actos de violência comunistas ou anarquistas, não foram amnistiados
  2. que, se se tratasse de “paga”, não se compreenderia que o próprio Bento Gonçalves não tenha beneficiado da amnistia e tenha ficado no Tarrafal e lá tenha morrido?

Toda a montagem feita por Pacheco Pereira em tomo dos “rivais” de Cunhal destina-se a dar força à tese que lhe interessa fazer passar “Não há, no modelo do centralismo democrático do partido leninista lugar para qualquer mecanismo de debate.” Ora, se é verdade que no PCP os mecanismos de debate sempre foram atrofiados, distorcidos e falseados, isso nada tem a ver com o centralismo democrático nem com o partido bolchevique. Porque, nesse, o debate não faltava.

Será que Pacheco Pereira nunca ouviu falar no debate de 1918 sobre a paz com a Alemanha, no debate sabre os sindicatos, no debate com a oposição operária, no debate sobre a NEP, para só citar os mais conhecidos depois da tomada do poder e em vida de Lenine? Nunca lhe constou que vários membros do partido atacaram, em artigos na imprensa as posições defendidas por Lenine, que houve debates violentes em congressos do partido e dos sovietes?

Pacheco Pereira sabe disto tudo, mas não lhe chega. Ele exige “mecanismos de debate” mais amplos. Como se nós todos não soubéssemos que, se um dia por absurdo, Pacheco Pereira entrasse em divergência com o prof. Cavaco e ousasse criticá-lo em púbico, logo no dia seguinte era irradiado dos seus cargos e do partido! Deixe-se de histórias, Pacheco Pereira!


Inclusão 26/07/2019