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Primeira Edição: Política Operária nº 59, Mar-Abr 1997
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Vem aí o Novo Socialismo. Que ninguém se assuste, porém; será um socialismo cordato, com propriedade privada, com ordem e sobretudo com muito amor pelo próximo. À atenção do PCP, UDP e outros católicos progressistas.
O professor Adam Schaff, filósofo encartado do antigo regime polaco, devidamente reciclado depois de 1990 como “marxista antileninista”, tem vindo a bater-se pela descoberta de um socialismo e de um marxismo “modernos”. Já aqui tivemos ocasião de nos referir às suas elucubrações por ocasião do lançamento da malograda revista O Socialismo do Futuro (P.O. na 26, Set./Out. 1990). Desde então, muitos daqueles que o acompanhavam na busca do caminho para um “socialismo de rosto humano” acabaram por se cansar e passaram-se, com idêntico afinco e muito mais proveito, para o serviço do capitalismo de rosto desumano. Não foi porém o caso do professor Schaff, que continua a bater-se com denodo pela criação de uma nova Esquerda. Para benefício dos leitores, resumimos a seguir a sua perspectiva do Novo Socialismo, desenvolvida em artigo recente.(1)
Schaff não permite que duvidemos da sua adesão ao marxismo, mas empenha-se em deitar abaixo os “velhos dogmas marxistas” que relacionavam o socialismo com a liquidação da propriedade privada dos meios de produção, a supressão do mercado e o gradual fenecimento do Estado. Objectivos, em seu entender, ultrapassados, se abordarmos “com objectividade e sem paixão” o novo capitalismo e reconhecermos que ele é “em muitos aspectos inovador”.
Propriedade para o progresso “Nas novas condições criadas pela revolução científico-técnica temos que admitir que, no socialismo, possam ser conservadas algumas formas de propriedade privada dos meios de produção”. E isto pelo seguinte: “No mundo que surge, a classe operária irá rapidamente desaparecendo e, com ela, desaparecerá o capitalismo tradicional que conhecíamos”. Com a substituição dos trabalhadores por robôs, desaparecerá a mais-valia, no sentido empregado por Marx; o antigo esquema marxista de exploração “desmoronar-se-á”. Aliás, os próprios meios de produção deixarão de ser ferramentas, objectos físicos; não é verdade que já hoje se desmaterializam sob os nossos olhos, caso dos programas de computador?
Ora, ninguém negará que o progresso destes novos meios de produção requer uma forte motivação por parte dos trabalhadores intelectuais que os criam. “Quando não existem incentivos apropriados, a inventiva seca-se como uma fonte”. Logo, “no Novo Socialismo a propriedade privada dos meios de produção será admissível e necessária: não só não será veículo da exploração do homem pelo homem como, pelo contrário, reforçará o avanço para o bem-estar”.
Mercado social Segundo ponto: “As novas realidades que nos rodeiam exigem que renunciemos à intransigência marxista” contra o caos da economia de mercado. Na realidade, Marx “subestimou a capacidade de adaptação e auto-aperfeiçoamento do capitalismo”.
Atenção, avisa Schaff, que isto não seja entendido como uma concessão às potências do capital! Adversário irreconciliável do neoliberalismo e das teorias do chamado “mercado livre”, o qual não passa de uma “ditadura monopolista imposta pelos grandes consórcios internacionais”, Schaff admite, contudo, que possa existir um mercado disciplinado, “social”, apoiado no papel paternalista do Estado. Combine-se o mercado com a planificação económica conduzida pelo Estado, “essa sim, apropriada e sensata”, e chegar-se-á ao equilíbrio até hoje nunca alcançado: a existência de um mercado socialista planificado.
Por um Estado forte Dominados pela influência do socialismo utópico, Marx e Engels acreditaram que, sob o socialismo, o Estado seria gradualmente privado do seu actual papel coercivo e reduzido a simples “administrador das coisas”. Mas “acaso podemos imaginar um mundo sem o papel repressivo do Estado nas mais diversas esferas da vida?” interroga Schaff. E para mostrar o absurdo de tal crença enumera “os problemas da defesa dos países, visto que as fronteiras não desaparecem”, nem desaparecem os móbeis actuais da delinquência, o tráfico de drogas, etc.
Será decerto necessário depurar o Estado dos seus actuais “desvios classistas”, descentralizar as suas funções e harmonizar o poder central com as mais diversas formas de autogestão e de participação dos cidadãos na vida pública. Mas, se quisermos falar seriamente do Novo Socialismo, teremos que admitir que nele “o Estado terá que continuar a existir com todas as suas actuais funções, pelo menos num horizonte previsível”.
Ditadura do proletariado? Sim, afirma sem vacilar o nosso professor, desde que se “desenrede o conceito da barafunda causada pela sua versão leninista”. Para os clássicos do marxismo, a ditadura do proletariado era vista como um breve período no qual, para além do mais, seriam mantidos todos os atributos de uma verdadeira democracia. Engels terá dito mesmo que a ditadura do proletariado seria o equivalente do poder da democracia parlamentar.
O que exigiam os marxistas do século passado era “que os postulados da democracia burguesa ganhassem um conteúdo real, que fossem libertos das limitações que lhes eram impostas pelo regime capitalista na altura extremamente classista” (não resisto a sublinhar). Ora, “Lenine tergiversou tudo porque na prática negou a democracia”, “o que lhe valeu as críticas indignadas dos mais prestigiados marxistas da época como Kautsky, Plekánov e inclusive Rosa Luxemburgo” e “custou um pesado preço ao movimento internacional socialista”.
Direito à diferença Encarar o socialismo como um sistema com antagonismos é tanto mais absurdo, explica Schaff, quanto, já actualmente, a desaparição do trabalho tradicional começa a provocar a desaparição do proletariado tradicional e com ele, a desaparição paralela da classe capitalista. “Perde toda a actualidade a tese marxista de que no capitalismo há duas classes frente a frente”. Assim se compreende facilmente que a propriedade de meios de produção deixará de significar exploração do homem pelo homem; a riqueza virá dos robôs.
Aqui surge uma dúvida: será cada ser humano um proprietário de robôs? Não é provável, esclarece amavelmente o professor. Haverá certamente proprietários e não-proprietários, haverá grupos sociais diferentes, e não tenhamos problemas em chamar-lhes classes. “A sociedade do futuro também será uma sociedade de classes”.
Amor pelo próximo Tudo na mesma, então? Nem por sombras! Porque neste Novo Socialismo vigorará um conceito “de que quase nunca se falou no movimento socialista mas que sempre esteve presente: o amor pelo próximo”. Aliás, não esqueçamos que “sem coração não há socialismo”.
E como este princípio é também defendido por outras correntes filosóficas, religiosas, etc., “é possível que surja um novo ecumenismo que facilite a aproximação e colaboração de todos os partidários desta ideia, independentemente das suas raízes ideológicas”. Assim será possível “uma vasta união humanista” como base do Novo Socialismo. Aleluia!
“É certo, conclui com notável modéstia o distinto professor, que as nossas teses são muito simples, mas também constituem, em certa medida, uma autêntica revolução nas concepções até agora em vigor. Contudo – acrescenta com pesar -, para muitos ortodoxos serão decerto indigeríveis”.
Ora essa, de maneira nenhuma! Achamo-las mesmo óptimas!
É verdade que não nos esclarecem quanto ao delicado período de transição entre a actual orgia dos mercados financeiros e a prevista harmonia socialista universal. Esquecem-se de indicar como conseguirá a ampla democracia futura fazer-se obedecer sem violência pelos detentores de privilégios e expropriá-los. Não elucidam a questão de saber se os futuros proprietários de robôs permitirão a sobrevivência dos biliões de não-proprietários ou se simplesmente os eliminarão da face da terra (por meios sofisticados e indolores, entenda-se). Nem especificam se a permanência de estados, de fronteiras e exércitos acarretará, como parece previsível, a continuação das guerras e quais serão os métodos de aniquilação de seres humanos adoptados por essas guerras socialistas.
Mas, tirando esses detalhes, são de facto umas teses inspiradoras.
Falemos seriamente. A “actualização” schaffiana do marxismo é pura fancaria reformista. Ele tenta convencer-nos de que, graças à automação e à explosão de produtividade que ela acarreta, a actual sociedade de classes mudará de natureza; operários e patrões simplesmente extinguir-se-ão e o socialismo brotará do seio do capitalismo, numa continuidade tão natural e necessária que dispensa rupturas e convulsões sociais.
Só não nos diz o que acontecerá ao capital obviamente porque não se vê como é que as novas tecnologias ponham termo à sua reprodução automática, silenciosa, implacável. É por isso que no seu “socialismo” permanecem mercado, propriedade privada dos meios de produção, classes, estado, nação o projecto “socialista” de Schaff é uma visão romântica e embelezada do capitalismo da era da robótica e da informática.
Mas aqui ele tropeça num obstáculo: como é que o estado, essa trincheira dos privilegiados, poderá ser posto ao serviço da maioria da população? Primeiro, convida-nos a ter em conta a “capacidade de auto-aperfeiçoamento” do capitalismo. Que Marx e Engels imaginassem o socialismo como uma ruptura radical, compreende-se: era o fruto da ignorância própria de uma época em que o regime capitalista ainda era “extremamente classista”. Mas hoje, para quê uma revolução anticapitalista? Bastará depurar o estado dos seus “desvios classistas”, democratizar um pouco mais e aí teremos a democracia socialista em funcionamento.
E, claro, esta perspectiva eminentemente “moderna” exige uma demarcação resoluta face às revoluções deste século, e ao leninismo como a expressão mais elaborada da conquista revolucionária do poder de estado. Lenine é para esquecer: tergiversou o marxismo, afogou a democracia, desacreditou o socialismo…
Como todos os reformistas de há oitenta anos para cá, Schaff critica na experiência soviética, não o carácter incipiente da ditadura do proletariado, o esmagador peso camponês, todo o atraso que impediu a revolução de passar além do marco do capitalismo estatal e da sua armadura burocrática mas a violência antiburguesa, a subversão do parlamentarismo, os sovietes. Para ele, essa é que teria sido a causa de tudo ter corrido mal depois. Felizmente, na “ditadura do proletariado” schaffiana não existirão essas aberrações; serão respeitados “todos os atributos de uma verdadeira democracia”, tal como a entende a pequena burguesia… sem esquecer o direito à propriedade privada para todos os que revelem aptidões para tal.
Naturalmente, até mesmo os ineptos devaneios de Schaff vão buscar algo à realidade: é um facto que o capitalismo tende inelutavelmente a eliminar o trabalho assalariado e que os seus progressos nos permitem já entrever os contornos da sociedade de automação e da abundância. A fraude schaffiana consiste em deduzir que essa tendência produzirá o desmoronamento do sistema de exploração e a desaparição dos antagonismos de classe, quando os factos mostram que, pelo contrário, ela exacerba os conflitos a um ponto insustentável. E isto porque o capitalismo não pode dar esse último passo, que lhe retira a base de existência.
Escrevíamos nós há sete anos, já a propósito das ideias do prof. Schaff: “De um ponto de vista meramente técnico, o desenvolvimento das novas tecnologias leva-nos à robotização e à automação generalizadas, logo, à supressão do trabalho assalariado e ao desaparecimento do proletariado e do capital. Só que estamos em capitalismo, o qual, ao desenvolver impetuosamente as forças produtivas, abordou a era da automação mas está condenado a patinar no seu limiar, porque não pode prescindir da exploração do trabalho assalariado que é o seu fundamento”.
Este o pormenor que escapou à argúcia do prof. Schaff. O capitalismo cria todas as condições materiais para a sua superação, mas, ao bater-se desesperadamente em defesa da taxa de lucro, bloqueia a passagem ao socialismo. Por isso as maravilhas tecnológicas têm que ser compensadas com as sweat-shops; as grandes metrópoles modernas com as favelas; os espaços de refinamento individual na Europa com os genocídios na África; os agradáveis desperdícios da sociedade de consumo com as ditaduras do Terceiro Mundo; a defesa da qualidade de vida aqui com as razias da fome lá.
O que se desenha no horizonte não é aquela gradual e tranquilizadora aproximação universal ao socialismo que a pequena burguesia gosta de imaginar, mas uma nuvem ameaçadora, carregada de conflitos exasperados. Só a revolução dos oprimidos pode desatar o nó a que o sistema levou todas as contradições e é isso que os professores Schaff, assalariados do capital, tentam evitar por todos os meios, porque, logicamente, receiam ser levados na torrente.
O Novo Socialismo do prof. Schaff é um condensado das utopias “progressistas” de uma certa pequena burguesia imperialista, cujo universo ideológico gira em torno da busca de uma saída razoável para o perigoso estado de coisas actual. Schaff tenta convencer o seu público de que será possível passar deste buraco neoliberal, anunciador de temíveis convulsões, para um sistema menos explosivo, um capitalismo mais equitativo (a que por necessidade publicitária chama socialismo), afastando o risco do tumulto e da subversão da ordem. É afinal uma reedição actualizada das promessas de um futuro radioso para os oprimidos desde que desistam da revolução. Falha sempre mas vai permitindo ganhar tempo.
Notas de rodapé:
(1) Adam Schaff, “La Nueva Izquierda busca un Nuevo Socialismo”, Dialéctica, nº 28, Inverno 1995/96. Revista trimestral da Universidade Autónoma de Puebla, México. (retornar ao texto)
Inclusão | 06/09/2018 |