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Primeira Edição: Política Operária nº 61, Set-Out 1997
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Definitivamente, as revoluções estão fora de moda. Adeptos do “progresso social”, ainda se encontram por aí alguns; mas já ninguém se atreve a defender publicamente a revolução, isto é, o derrube violento da ordem existente. Por isso, o 80.º aniversário da revolução russa vai passar entre o silêncio reprovativo ou embaraçado das gentes de “esquerda”. É simplesmente “indefensável”. Porquê? Porque não respeitou os direitos humanos.
Pode, de facto, dizer-se sem receio de errar que a revolução não é o momento mais propício ao exercício equilibrado dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Rios de sangue correram na Rússia por efeito das jornadas de Outubro. O mesmo veio a suceder mais tarde na China. Como não preferir então os meios pacíficos de evolução gradual da sociedade?
Poderíamos lembrar que o poder dos sovietes começou por ser extraordinariamente tolerante e que a espiral de violência foi iniciada pelo campo contrário, mas isso nem sequer é o mais importante. A simples verdade é que não existem meios pacíficos de evolução da sociedade. As revoluções, seja qual for o sacrifício que impliquem, são o único meio existente, independentemente da vontade das pessoas, para pôr termo a relações sociais caducas.
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Não é realmente muito difícil construir um raciocínio em que o sistema democrático, representativo, respeitador dos direitos humanos, se contrapõe virtuosamente às convulsões da revolução, com o seu cortejo de excessos, ausência de lei, vítimas inocentes, horrores. Mas há uma fraude nesta demonstração. Compara-se uma sociedade em que a massa está resignada a acatar a autoridade dos de cima com outra sociedade em que essa autoridade se esgotou e novas relações de classe emergem. Omite-se que a convulsão revolucionária é preparada e tornada inevitável em longos anos de ordem e tranquilidade públicas. Esconde-se que ordem e revolução são duas etapas complementares no progresso das relações sociais. Separadamente nem uma nem outra podem ser entendidas na sua natureza. A estabilidade democrática de hoje foi edificada sobre a revolução de ontem e está por sua vez a acumular factores da revolução de amanhã. Oferecendo à escolha a legalidade, a tolerância e o consenso, ou a incerteza, a insegurança e a violência, apresentam-se como categorias opostas aquilo que são etapas interligadas da mesma sociedade de classes.
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Não é por acaso que as escolas burguesas se encarniçam em fazer o levantamento de todas as violências desencadeadas na sequência da revolução russa. Condenar a revolução russa é condenar como ilegítima toda a revolta dos oprimidos.
Inventariando de modo imparcial e objectivo os genocídios e massacres através dos tempos, decreta um historiador sem pestanejar que “tanto é genocídio o projecto de supressão de uma etnia ou de uma nacionalidade, como o projecto de supressão de uma classe social”.(1) Onde se prova que Lenine não diferiu muito de Hitler! Que seja doravante santificado o estatuto de burguês como um direito humano inalienável!
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Recapitulemos ainda uma vez a lista dos fracassos de Outubro.
O poder dos sovietes, apenas esboçado, logo evoluiu para um regime de partido único governando em nome dos sovietes; a aliança operário-camponesa, que deveria garantir um apoio popular maioritário à revolução, desfez-se em interesses antagónicos; o capitalismo de Estado, adoptado como um degrau para o socialismo, devorou a revolução; não houve democracia operária ou popular mas autocracia, que atingiu nos anos 30-40 os paroxismos do mais tenebroso terror de Estado; não houve internacionalismo mas egoísmo nacionalista maquilhado com álibis “marxistas”; as conquistas iniciais dos operários, das mulheres, das nacionalidades oprimidas, esvaziaram-se numa disciplina laboral opressiva; a liberdade criadora dos primeiros anos dissipou-se num dogmatismo asfixiante.
… E no entanto, vista na sua perspectiva histórica, a revolução de Outubro permanece como um dos maiores saltos em frente da Humanidade — pelo inédito protagonismo, mesmo breve, que proporcionou a centenas de milhões de despossuídos, pelos movimentos libertadores que pôs em marcha por todo o mundo, pelo golpe que representou para o imperialismo, pelas conquistas sociais que fez irradiar a todos os continentes (sem os sovietes, alguma vez teria havido Estado-providência no Ocidente?), por ter libertado um quarto da humanidade das reminiscências da servidão feudal e aplanado o terreno para a vida moderna.
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A campanha de banimento da revolução em nome dos “direitos humanos” é mais uma trincheira na guerra ideológica do capital contra as suas vítimas. Tanto mais abjecto é o pensamento de “esquerda” que aceita docilmente examinar as revoluções sem “preconceitos ideológicos”, reconhecer os seus “excessos” e condená-las em nome dos direitos humanos violados —, alguns já chegam ao ponto de se sentirem obrigados a sentar a Revolução Francesa no banco dos réus!
Pela nossa parte, continuamos a estudar na escola da revolução russa. É uma boa escola.
Notas de rodapé:
(1) Guy Richard, L’Histoire inhumaine, Armand Colin, Paris, 1995. (retornar ao texto)
Inclusão | 10/06/2018 |