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Primeira Edição: Política Operária nº 68, Jan-Fev 1999
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Em ano de eleições é já tradicional que os pequenos partidos da esquerda procurem coligar-se, na esperança de virem a eleger um deputado, já que essa seria, no seu entender, a forma de “sair do gueto” e ganhar projecção. Desta vez, porém, o processo vai mais longe e reveste as formas nobres de uma anunciada “renovação da esquerda” pela criação de um novo partido, movimento ou bloco, destinado a aglutinar o PSR, a UDP e a Política XXI, assim como um certo número de personalidades e activistas independentes.
Fala-se inclusive na perspectiva de englobar o PCP na aliança, mas este último ponto deve ser levado apenas à conta de expediente propagandístico, para criar uma dinâmica de abertura.
Lançada a ideia por dois artigos do historiador Fernando Rosas na imprensa, invocando a “urgência de um recomeço à altura dos grandes desafios do mundo actual” e de “fazer das esquerdas uma esquerda”, os congressos simultâneos dos três partidos, em meados do Janeiro, acabam de mandatar as respectivas direcções para a negociação da fórmula que virá a assumir a nova força política, com vista a concorrer, se possível, já às eleições europeias de Junho.
Desde logo, causa alguma perplexidade este projecto de uma associação duradoura (e mesmo fusão?) dos três partidos, se tivermos em conta que já no passado a sua coligação pontual se revelou tão problemática. Uns aproximam-se mais do PS, outros do PCP; as posições quanto à integração europeia têm sido divergentes; a UDP é de origem stalinista, o PSR trotskista; ainda recentemente apareceram em posições opostas na questão da regionalização; etc.
Nestas condições, o surgimento de uma nova força de esquerda só seria compreensível se uma profunda revolução ideológica levasse cada um desses grupos a examinar criticamente o seu passado e a confluir num programa comum. Ora bem, esse “programa”, ou aquilo que faz as suas vezes, é um manifesto, “Começar de novo” (título de um dos artigos de Fernando Rosas), o qual faz tudo menos clarificar as grandes questões que se põem hoje à esquerda anticapitalista.
A extensa secção internacional, que ocupa a maior parte do documento, é uma espécie de manifesto contra a globalização e o neoliberalismo, inspirado no Monde Diplomatique, e que sofre das limitações deste tipo de textos: denuncia com veemência as injustiças, proclama intenções humanitárias, mas não tenta sequer caracterizar as grandes linhas da luta de classes internacional e as vias para sair do caos capitalista. A luta que se desenha entre os três blocos imperialistas pela partilha do mundo e a ameaça de caminharmos para uma nova conflagração mundial, os meios pelos quais se poderá aliar a luta do proletariado pelo socialismo com a luta dos povos oprimidos pela emancipação nacional, a construção de uma esquerda europeia visando o derrube do império Europa tudo o que poderia dar uma dimensão programática ao novo partido está ausente do documento.
Do mesmo modo, a parte consagrada à questão nacional não vai além da superficialidade do comentário jornalístico. Seria preciso reafirmar com força a opção pela luta directa dos oprimidos como motor de todas as transformações políticas; seria preciso situar em termos de classe o regime instaurado no país pelo golpe de 25 de Novembro sobre os escombros do 25 de Abril, fazer o inventário das forças capazes de lutar pela revolução, apontar os inimigos, as forças intermédias, explicar como se pode aproximar o momento da insurreição das massas, por distante que ele se apresente… Mas este “projecto de democracia para o socialismo” contenta-se em enunciar como alvo duas ou três reformas (semana das 35 horas, reforma fiscal, legalização das drogas), o que pode servir de programa a um deputado mas é manifestamente pouco para avançar para o socialismo…
Poderá contestar-se que isso tudo falta no manifesto porque não é intenção da nova força definir-se em termos marxistas e revolucionários. E esse é justamente o ponto a que queremos chegar. O novo “bloco de esquerda” não aspira a retomar o que de mais positivo tiveram no passado as forças constituintes; pretende apenas criar um espaço eleitoral entre o PCP e o PS.
E mesmo isso é duvidoso que consiga. Porque a iniciativa está a ser recebida com indisfarçada hostilidade do PCP, que precisa de tudo menos de um novo bloco a seu lado neste ano de eleições em que o duelo PS-AD ameaça estreitar-lhe o espaço. E suscita também cepticismo em boa parte da esquerda sem partido, que já não se mobiliza com fraseologia poética em torno da “nova esperança” de “começar de novo”, e quer ver clarificadas as bases de um programa revolucionário.
Assim, embora um dos textos acordados entre as três organizações assegure que “não se procura um acordo mínimo, mas uma convergência baseada nos acordos máximos, os necessários para as tarefas do momento presente, os necessários para que essa força não seja um acto de oportunismo eleitoral ou de desespero político, mas sim uma plataforma de crescimento”, etc., parece inegável que é disso mesmo que se trata: de um acto de oportunismo eleitoral e de desespero político. Sob a fraseologia optimista, audaciosa e “moderna”, transparece uma grande perplexidade. E um grande pânico, que se pode traduzir assim: ou metemos agora um deputado ou desaparecemos do mapa.
O que nos leva a concluir que a crise da esquerda portuguesa não está em vias de superação; simplesmente passa a uma nova etapa. E continuará a agravar-se enquanto a esquerda for preenchida apenas por grupos nascidos na maré de Abril mas incapazes de resistir à tendência para se atolarem na “política real”, para se tornarem uma parte reconhecida do sistema.
Uma nova esquerda? Sim, mas só quando uma força nova se definir, unida em torno de um programa para a revolução. Ou não foi para isso afinal que se inventou a esquerda?
Inclusão | 10/06/2018 |