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Primeira Edição: Política Operária nº 72, Nov-Dez 1999
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Conotado habitualmente na área do “comunismo”, Varela Gomes distingue-se radicalmente do PCP pelo radicalismo das suas apreciações sobre o período revolucionário e a restauração burguesa. Neste seu livro (Esta democracia filofascista, João Varela Gomes. Ed. do autor. Distr. Terramar, Lisboa, 1999), ele diz, sem circunlóquios diplomáticos, que o 25 de Novembro pôs fim à “Gloriosa Revolução” do 25 de Abril e deu início a uma democracia “filofascista”, ou seja, “tendencialmente fascista”, o que, aliás, considera apanágio de toda a democracia burguesa.
E, ao contrário de Cunhal, não perde tempo a queixar-se de Spínola ou dos bombistas; ao inimigo há que combatê-lo, não que censurá-lo. Varela Gomes procura responsabilidades pelo desastre no próprio campo “abrilista”. Demonstra que o 25 de Novembro estava antecipadamente ganho porque vinha sendo preparado, pelo menos desde Julho, com a complacência do próprio Conselho da Revolução e dos principais chefes militares; desde o resultado das eleições para a Constituinte, tinha-se instalado no campo revolucionário “o espírito de negociação, isto é, da cedência, isto é, da derrota”, tudo porque não houve a ousadia de adiar as eleições, “apesar de o golpe spinolista de 11 de Março ser razão suficiente para as adiar”; devido às manobras de Costa Gomes, “com a ajuda de Otelo e Fabiâo”, “ao entrar Outubro, a chamada esquerda militar estava arredada dos centros de decisão e dos postos de comando” (p. 38); condena Otelo (a reintegração de Jaime Neves no comando do Regimento da Amadora, “desastrada, louca ou de pura traição à Revolução”); e não hesita em criticar também o PCP, apesar da simpatia que lhe dedica: “Com o seu prudente seguidismo em relação ao MFA, com a falta de audácia revolucionária de que deu provas”, o PCP ficou à espera de que o oficialato dirigisse a revolução" (p. 44).
O livro desfia um libelo esmagador contra Costa Gomes. Esse pseudo “pacificador”, tão preocupado em “evitar a guerra civil”, surge como um jogador maquiavélico, mestre na intriga palaciana, marcado pela sua carreira de chefe militar do fascismo, ocultando o conluio com a direita sob a capa da isenção. Mas não só ele. A Comissão Coordenadora do MFA e o Conselho da Revolução também saem de rastos do exame: “O MFA não era simplesmente composto por jovens capitães inexperientes”, lembra o autor; “tinha muita gente já de rabo pelado” em que se apoiou Costa Gomes e são passados em revista Fabião, Vítor Alves, Charais, Costa Brás, Rocha Vieira…
A odiosa perseguição aos militares de esquerda e o festival de reabilitações de fascistas a que se entregou o Conselho da Revolução após o 25 de Novembro preenche um dos capítulos mais impressionantes do livro, onde é recordado o inquérito à “conspiração anti democrática”, falso de uma ponta à outra, os conselhos disciplinares, cuja missão foi depurar as fileiras das Forças Armadas dos elementos antifascistas, e o “relatório das sevícias” (que V. G. justificadamente classifica como “abjecto”), em que se registaram, contra os militares de Abril as queixas dos pides por terem sido… insultados e interrogados de noite! Biografias como a de Canto e Castro, figura tenebrosa, de Garcia dos Santos ou do próprio Eanes (pp. 79-86) dão a imagem verídica do que foi esse órgão de tutela… da Revolução.
O livro é completado pela reprodução de duas dezenas de artigos que V. G. tem feito sair na imprensa (muitas vezes mutilados) e que voltam exaustivamente ao tema: o que vale afinal esta Democracia construída sobre a derrota da Revolução?
Naturalmente, não acompanhamos V. G. nas acusações sistemáticas que formula, neste como noutros trabalhos, contra o “esquerdismo”; é fácil denegrir o “esquerdismo” como instrumento da direita em 74-75 reduzindo-o ao MRPP e à AOC, como ele faz. Mas não se pode ignorar que, para além destes grupos, efectivamente de direita, outros, nomeadamente a UDP, tiveram uma actuação importante no crescimento do movimento popular e na luta contra o espírito de capitulação. As críticas que a UDP então fez ao PCP revelaram-se no essencial clarividentes. Com a sua aversão indiscriminada a tudo o que tenha o rótulo do “esquerdismo”, Varela Gomes assume aqui uma atitude semelhante à de Cunhal: a recusa a reconhecer que existe uma crítica à esquerda do PCP, a qual anuncia o surgimento, talvez ainda demorado mas inevitável, de uma nova corrente comunista.
Empenhado há 25 anos no combate à hipocrisia “filofascista”, autor de denúncias frontais da maquinação de direita, como A Contra-Revolução de Fachada Socialista, Varela Gomes está condenado a bradar no deserto, porque a sua voz se situa fora dos grandes alinhamentos partidários. Abominado pelos meios do poder estabelecido, e especialmente pelo PS, ele é também ignorado pelos responsáveis do PCP, que o olham com algum temor como um radical imprevisível, sempre disposto a pôr em risco as laboriosas combinações “unitárias”. A conspiração do silêncio não pode todavia retirar um átomo ao peso real das suas acusações, porque elas contêm a verdade.
Inclusão | 06/09/2018 |