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Primeira Edição: Política Operária nº 80, Mai-Jun 2001
Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando A. S. Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
Para o chamado “espírito democrático” reinante, a história do Grande Terror na URSS de Staline é assunto esgotado. A razão democrático-burguesa, segura dos seus valores e da sua virtude, não vê nada de especial a inquirir nesse fenómeno: totalitarismo produz terror, seja ele de direita ou de esquerda, Staline é o avesso de Hitler, ponto final.
O pensamento comunista, porém, não pode deixar-se aprisionar nestes estereótipos. Tem que procurar entender a natureza de classe específica do terror stalinista, para chegar à sua lógica interna. Em vez de se entregar a maldições anti-stalinistas, jurando que não sabia, como agora fazem os que precisam de ganhar o perdão dos seus pecados passados, tem de pôr a nu as relações de classe que produziram o fenómeno stalinista e que tornaram o apoio dos trabalhadores e progressistas à URSS não só admissível como necessário num determinado período histórico. É uma tarefa que diz respeito aos comunistas, e só a eles; devemos prossegui-la com tenacidade, sem nos deixarmos intimidar pela punição que o pensamento oficial reserva aos que insistem em caminhar com o passo trocado, calúnias, silenciamento, marginalização.
Para limpar a memória de Bukharine das acusações infamantes com que foi insultado pelo poder stalinista, o historiador soviético Roy Medvedev evoca no livro Os últimos anos de Bukharin (Ed. Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1980) os últimos dez anos da vida desse dirigente bolchevique; mostra a integridade do seu carácter, a dedicação ao regime que o leva a sujeitar-se ao lento processo de execução moral que acaba na execução pura e simples, quando poderia ter fugido para o Ocidente (esteve em França, em missão oficial, não muito antes de ser acusado).
Parece contudo altamente duvidosa a tese do autor, de que Bukharine não teria efectivamente conspirado contra o poder stalinista. E não precisamos de o ver como um ingénuo filósofo fora da política – coisa que ele nunca foi – para condenarmos a maquinação do processo em que foi envolvido. Precisamente, o ponto mais enigmático do processo, a confissão final de Bukharine, só adquire sentido se o virmos como uma confissão real: sim, diz Bukharine, falei contra Staline com A, B e C, mas não conspirei para matar ninguém. Nessas conspirações, Bukharine procurava uma alternativa para o governo ditatorial de Staline, por ver, como tantos outros, que ele conduzia à liquidação de todos os restos da democracia soviética dos anos 20. Mas na URSS de 1937, na histeria de uma “revolução” sobre-humana cercada do exterior e do interior, de um poder frágil, à beira da guerra mundial, toda a dissidência continha em potência as raízes dum crime.
Por outro lado, o livro tem já duas décadas e ressente-se disso. Ao escrevê-lo, Medvedev estava ainda sob o efeito do choque “reabilitador” causado pelas revelações de Kruchov no XX Congresso: se as acusações de “espião” e “cúmplice do nazismo” contra Bukharine foram forjadas pelo tribunal às ordens de Staline a fim de desacreditar as suas ideias políticas, não seria isto a prova de que era ele que tinha razão e que a política por ele defendida era a mais adequada para a URSS dos anos 30? Dificilmente se pode hoje acompanhar este raciocínio, que assenta no pressuposto – irrealista, sabemo-lo agora – de que houvesse um caminho para o socialismo na URSS. Não havia, e por isso mesmo as propostas antagónicas de Staline, Trotsky, Bukharine se combatiam com tanta ferocidade, por isso eram todas elas unilaterais e desembocariam em qualquer caso no desastre.
A luta política de final dos anos 20 que põe termo à NEP e dá início à “segunda revolução”, à “passagem vitoriosa ao socialismo”, é disso o melhor exemplo. Tinha razão Bukharine quando observava (aliás, inspirando-se em Lenine) que era loucura querer avançar para o socialismo fazendo a guerra aos camponeses, a 80 por cento da população do país, e que nessa aventura se perderia a democracia soviética. Mas também tinha razão Staline – e é o que Medvedev não entende – quando respondia que, a não esmagar o capitalismo camponês, a não dar um salto para a industrialização e a colectivização agrária, o regime soviético se afundaria a curto trecho na restauração burguesa ou esmagado pelas potências imperialistas. A acusação de “desviacionismo de direita” lançada contra Bukharine a partir de 1930 não foi pois uma invenção malévola de Staline, fruto do seu “espírito tortuoso” – mas a conclusão que se impunha aos que queriam romper para diante com o regime, pela via que fosse possível. Nem foi por hipocrisia que Bukharine reconheceu no XVII Congresso que o seu grupo “acabara por se transformar inevitavelmente no pólo de atracção de todas as forças que lutavam contra a ofensiva socialista, em primeiro lugar sectores de kulaks e os seus ideólogos entre os intelectuais”.
Reabilitar a visão “humanista moderada” de Bukharine, como Medvedev faz até certo ponto neste trabalho, é um empreendimento que só pode interessar à social-democracia; do mesmo modo seria insensato tentar demonstrar a “justeza” da linha de Staline, quando se conhecem todas as consequências que acarretou. A única coisa que podemos dizer, hoje, é que as alternativas apresentadas por um e pelo outro reflectiam o impasse histórico com que chocara a revolução russa. Nenhuma das políticas em confronto podia impedir a marcha do capitalismo no país. Todos tinham razão contra todos, o que quer dizer que ninguém tinha razão. Só que a via defendida pelo moderado Bukharine teria acarretado custos humanos provavelmente superiores aos provocados pela via stalinista, com todos os horrores que esta significou. E isto não quer admitir o pensamento democrático burguês.
De qualquer modo – perguntam-nos – como puderam comunistas degenerar ao ponto de se lançar no carrossel infernal das acusações caluniosas, dos processos forjados, das torturas, dos julgamentos montados, das deportações em massa, dos fuzilamentos de inocentes? Se a ideologia comunista pode produzir tais monstruosidades, não devemos opor-nos a ela, do mesmo modo que nos opomos à ideologia fascista? A pergunta, contudo, está mal colocada. O que devemos perguntar é: que tipo de conflito social fez evoluir o corpo dirigente da URSS da sua anterior postura comunista e revolucionária para o entrincheiramento implacável no poder? Chegada a sociedade russa no fim dos anos 20 ao dilema inapelável — avançar para o capitalismo pela via estatal ou pela via privada —, os comunistas deixaram de ser comunistas. Transformado em autocrata, Staline eliminou o seu antigo camarada, transformado em democrata burguês.
Inclusão | 13/09/2018 |