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Primeira Edição: Política Operária nº 82, Nov-Dez 2002
Fonte: Francisco Martins Rodrigues Escritos de uma vida
Transcrição: Ana Barradas
HTML: Fernando Araújo.
Direitos de Reprodução: licenciado sob uma Licença Creative Commons.
No momento em que a UE se decide a ocupar garbosamente “o lugar que corresponde ao seu prestígio” na “guerra mundial ao terrorismo”, quando os exércitos alemães, em hibernação desde os genocídios hitlerianos, regressam aos teatros de operações mundiais, os governos e parlamentos se afadigam na adopção de medidas securitárias fascizantes e os monopólios lançam milhões de assalariados na rua – em que ficam os denodados esforços a que se têm dedicado os chamados partidos de esquerda para a construção de uma “Europa Social”? Têm eles contribuído para humanizar o “projecto Europa” ou têm simplesmente adormecido as massas para as ameaças que se acumulam?
A este respeito será oportuno recordar um colóquio, promovido há cerca de um ano pela Universidade Autónoma de Lisboa, no qual representantes dos partidos parlamentares desenvolveram os seus pontos de vista sobre a “construção europeia”. Naturalmente, não nos vamos dar ao trabalho de comentar as posições dos partidos de poder (PS, PSD e PP) sobre o assunto. Interessa sim reflectirmos sobre o que têm para propor os partidos que de alguma forma se apresentam como alternativas ao que existe, o PCP e o BE, em cujo nome falaram, respectivamente, Honório Novo e Miguel Portas.
Miguel Portas reclamou que “o esforço e o investimento direcionados para o armamento sejam canalizados para políticas económicas e sociais”. (Todavia, para mostrar que sabe ser “realista”, admitiu que “hoje os exércitos nacionais estão em condições de formar forças multinacionais de interposição em pouco tempo, se elas se revelarem indispensáveis”, concessão da maior gravidade). Propôs uma “justiça europeia mínima que não estabeleça jurisprudência sobre os direitos nacionais, salvo no tocante à garantia dos direitos fundamentais comuns em todo o espaço da Comunidade". E em matéria de direitos dos trabalhadores, aconselhou que se opte pelo “Modelo Social Europeu” e “não se ceda à lógica americana de precarização do trabalho e de abate das despesas sociais”. Certamente os grupos financeiros vão tomar boa nota desta recomendação!
Mas o ponto forte das propostas do Bloco foi a urgência de uma “Carta dos Direitos das Cidadãs e dos Cidadãos Europeus, das Nações e dos Povos”, “documento político de refundação da União Europeia”, “pilar de grande princípios e valores” visando a “transformação da União Europeia numa Comunidade de Estados soberanos e democráticos”. Como se a natureza económico-social do império europeu pudesse ser corrigida por uma declaração solene!
“A União Europeia deveria ser um espaço de paz, de diálogo e de cooperação com todos os povos e Estados”, aconselhou do seu lado o representante do PCP. “Uma organização militar do tipo exército único europeu não deve constituir objectivo da UE”; “a sua criação só diminuirá e enquistará a UE, só diminuirá uma certa imagem de cooperação e até de ajuda com que a UE é ainda encarada por muitos países subdesenvolvidos e menos desenvolvidos, um pouco por todo o mundo”. A UE com uma “imagem de cooperação e ajuda” junto do terceiro mundo, boa piada!
No domínio económico e social, o PCP considera que “a construção de uma UE solidária e o respeito efectivo pelos objectivos da coesão económica e social exigem, em especial, uma ruptura com as actuais orientações neoliberais, uma renegociação profunda do Pacto de Estabilidade de forma a permitir a concretização de uma política de crescimento e de emprego”. O PCP exige igualmente o “reforço do orçamento comunitário de forma a transformá-lo num instrumento de mais justa distribuição ao serviço da coesão económica e social; o termo da actual e obsessiva política de privatizações, nomeadamente de serviços públicos fundamentais, e o reforço do sector público”, etc., etc.
No capítulo financeiro, a boa-fé dos dois tribunos da esquerda parlamentar é desarmante. O representante do PC avisa que o seu partido “considera necessário existir um controlo efectivo sobre o Banco Central Europeu para através desse controlo tornar esta instituição mais dependente das políticas económicas e menos de orientações monetaristas e financeiras”(!). Pelo seu lado, Portas quer saber “quem manda no Banco Central Europeu: a democracia ou os poderes financeiros?” Pergunta de difícil resposta!
“Puras utopias – concordará o leitor –, mas que mal vem daí ao mundo? Sempre é uma maneira de condenar o rumo seguido pelo grande capital”.
Justamente, não! A função prática destas tolices é fazerem um simulacro de oposição, adormecerem os trabalhadores na crença de que algo está a ser feito e deixarem o caminho Iivre para as cruas realidades que agora nos desabam sobre a cabeça: os despedimentos em massa para a rentabilização dos capitais, os massacres imperialistas e a montagem de um aparelho de repressão cinicamente justificado com a “defesa das liberdades”.
Tudo o que se tem estado a fazer em nome da luta por uma “Europa social” é puro charlatanismo. A luta real contra o império europeu tem que ser travada pelos trabalhadores nas ruas. E essa ainda mal começou.
Inclusão | 26/07/2019 |