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Primeira Edição: ....
Fonte: Primeira Linha
Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo.
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Com poucos dias de diferença, falecêrom duas das figuras mais relevantes da história contemporánea portuguesa, intimamente ligadas à tentativa revolucionária de 1974: o que fora primeiro ministro de quatro governos provisórios entre 74 e 75, e membro da comissom coordenadora do Movimento das Forças Armadas (MFA), Vasco Gonçalves; e o líder histórico do Partido Comunista Português (PCP), secretário geral entre 1961 e 1992, Álvaro Cunhal.
É umha boa altura para propormos a leitura de um dos trabalhos publicados no livro de Francisco Rodrigues O comunismo que aí vem, publicado recentemente pola Abrente Editora. Em "O Verao quente dez anos depois", trabalho de 1985, o autor e histórico luitador comunista português avalia os acontecimentos que dérom cabo da Revoluçom dos Cravos, e o papel dos diversos agentes sociais envolvidos, ajudando-nos a interpretar tanto o processo revolucionário quanto o protagonismo de personagens como os próprios Vasco Gonçalves e Álvaro Cunhal.
É impossível aprender seja o que for do Verao de 1975 se nom se puger no centro da análise a oposiçom de interesses entre o proletariado e a pequena burguesia "revolucionária". Isto parece insuportavelmente "sectário". No entanto, o êxito demasiado fácil do 25 de Novembro obriga a examinar com mais atençom a política seguida polo PCP, pola ala esquerda do MFA e polos grupos da "esquerda revolucionária".
Por umha série de abalos em cadeia, o projecto regenerador e ordeiro do movimento dos capitáns fora-se desmoronando. Num ano, a vaga das ocupaçons, saneamentos, manifestaçons e greves tornara o país irreconhecível. Era umha vaga pacífica, que vitoriava inebriada o MFA, mas que galgava mesmo assim todos os diques. A bela revoluçom dos cravos descambava em pesadelo para os amantes da ordem.
No Verao, a "originalidade da via portuguesa para o socialismo" atingia o limite extremo. Coexistiam em fantástico equilíbrio ocupaçons maciças de terras e leis anti-greve; seqüestros de patrons e convites ao investimento; orgaos de "poder popular" e declaraçons de fidelidade à NATO. O país parecia encaminhar-se para umha situaçom de duplo poder e para um confronto revolucionário.
Seis meses mais tarde, todo estava terminado e a burguesia felicitava-se por ter dominado a "ameaça totalitária" sem efusom de sangue. O que se passou afinal nesses seis meses para tornar possível umha tal reviravolta? Ou, em termos mais gerais: como pudo o proletariado português, mantido em menoridade por meio século de circunspecta oposiçom democrática ao fascismo, atingir tam facilmente os píncaros de 75? E como pudo deixar-se expulsar deles de forma tam infantilmente vergonhosa, até chegar às misérias do tempo actual?
É impossível aprender seja o que for do Verao de 75 se nom se puger no centro da análise a oposiçom de interesses entre o proletariado, motor dos acontecimentos, e a pequena burguesia "revolucionária", sua condutora.
Isto, é claro, parece à primeira vista insuportavelmente "sectário". O 25 de Novembro foi obra de umha amálgama de forças social-democratas, liberais e reaccionárias, animadas polo PS e apadrinhadas pola social-democracia alemá e polo embaixador Carlucci. A que propósito lançar responsabilidades sobre as forças de esquerda, que podem ter cometido erros mas foram, de qualquer modo, a vanguarda possível do movimento?
E, no entanto, o êxito fácil demais do 25 de Novembro, que é a sua principal originalidade, obriga a examinar com mais atençom a política seguida polo PCP, pola ala esquerda do MFA e polos grupos da "esquerda revolucionária". O objectivo destas notas é mostrar que essas forças aplicaram, em nome dos interesses populares, umha táctica que lhes era contrária e que exprimia, em última análise, a ánsia pequeno-burguesa por encontrar umha saída intermédia entre revoluçom e contra-revoluçom.
Aquilo a que se assistiu no Verao de 75 foi a umha grande vaga de fundo, espontánea, anárquica, mas perfeitamente coerente, pola qual a pequena burguesia "revolucionária" começou por manietar politicamente o proletariado, para poder ser ela a dirigir o processo, e acabou por assistir, angustiada mas também aliviada, à parada dos Chaimites.
Por muito impopular que esta conclusom apareça aos olhos dos últimos fiéis da aliança Povo/MFA, é a ela que os factos conduzem. Há que examiná-la. Porque é aí, na avaliaçom do papel da pequena burguesia "revolucionária", que se pode entender o fundo da luita de classes em 75 e destrinçar, no nebuloso terreno das conquistas de Abril", o que era a favor e o que era contra o proletariado.
Por razons de espaço, limitamo-nos neste artigo ao período de Março a Agosto. Esperamos num próximo artigo falar dos antecedentes directos do 25 de Novembro.
O fiasco do 11 de Março mostrou a senilidade irremediável da velha direita. Os banqueiros nacionais e estrangeiros retraírom-se, descoroçoados: aquele imbecil do Spínola só servia para espicaçar a esquerda cada vez mais para diante.
Mês e meio depois, contodo, as eleiçons para a Constituinte dérom o toque de clarim para umha nova direita, mais consistente, agrupada em torno dos partidos "ordeiros", que recolhêrom 3/4 dos votos. A burguesia sentiu renascer a esperança. As eleiçons vinham contrapor ao "povo unido" imaginado pola exaltaçom colectiva o povo real, desejoso de estabilidade e legalidade. O PS, com os seus 116 deputados, confirmou-se como o baluarte natural da ordem, tanto mais que o PPD nom atinava com um líder e umha linha de rumo. Por umha lógica intuitiva de concentraçom de esforços, boa parte da burguesia e a massa da pequena burguesia aderiram ao "socialismo" e lançaram-se a disputar para o seu campo a ala moderada do MFA.
Mas o MFA, entretanto, fora ganho por onda radical, em reacçom ao 11 de Março: criaçom do Conselho da Revoluçom e da Assembleia do Movimento, prisom dos figurons reaccionários até aí intocáveis, começo das nacionalizaçons, anúncio da Reforma Agrária, lei do arrendamento rural, proclamaçom da via socialista. E nom ficou por aqui: divulgou os relatórios do 28 de Setembro e do 11 de Março, extorquiu aos partidos um Pacto que os amarrava aos objectivos da Revoluçom, congelou os preços dos artigos de primeira necessidade e as rendas das casas. umha semana antes das eleiçons, grandes manifestaçons populares vitoriavam a aliança Povo/MFA. O PS podia ter a maioria dos votos mas os oficiais "revolucionários" tinham ganho a iniciativa das operaçons.
A "revoluçom" viveu entom os seus breves dias de esplendor. Ao assumir o comando, o MFA pareceu superar-se a si próprio e libertar-se da vacilaçom que o paralisara desde o 28 de Setembro e o levara a convocar a Constituintes. Até os grupos revolucionários se sentírom ultrapassados pola esquerda.
Lisboa parecia transfigurada. Os bancos exibiam faixas: "Nacionalizado, nosso! Discutia-se a "apropriaçom colectiva dos meios de produçom". Dirigentes do PCP cumprimentavam, num comício de homenagem a Catarina Eufémia, a nova GNR democrática e faziam palestras educativas à PSP. Os soldados descobriam estupefactos que podiam comer na mesma messe com os oficiais. Os engenheiros trajavam como operários. Pacatos democratas saudavam de punho cerrado nos comícios. Até os merceeiros, encantados com o respeito e o maior poder de compra dos trabalhadores aprovavam a "passagem ao socialismo".
Numha palavra, o MFA parecia escapar às leis da luita de classes e instituir esta cousa nunca vista: umha revoluçom sem ruptura da ordem, sem guerra civil, sem combates ferozes entre esquerda e direita. O professor americano Paul Sweezy exprimiu o sentimento geral da esquerda nesses dias quando comentou que o MFA nom podia ser entendido como umha mera variante da intervençom dos militares na política(1). Era, por qualquer milagre inexplicável, a vanguarda da revoluçom".
Bem podia o MFA repetir, para se tranquilizar a si próprio, que era "o motor da Revoluçom". O 11 de Março modificara muita cousa. A táctica de capitalizar a indignaçom popular contra a direita em apoio patriótico ao MFA já nom aquietava o povo. As barragens nas estradas, o saque às sedes os partidos de direita, a nova onda de ocupaçons de casas, as ocupaçons de terras a alastrar no Alentejo, as armas passadas de contrabando para fora dos quartéis, ridicularizárom dum dia para o outro Costa Gomes, cuja primeira reacçom fora relacionar o golpe com a 'indisciplina social explorada por agitadores profissionais", e o PCP, que saíra a condenar pressuroso "as violências e destruiçons anárquicas praticadas à sombra da luita contra a reacçom"(2).
Os tempos mudavam. A iniciativa da rua, libertada pola crise do poder, nom só bloqueava a reproduçom normal do Capital, como abria fendas em todo o imponente edifício das instituiçons, leis e costumes. Os ideólogos que hoje aparecem a querer explicar os acontecimentos polo conflito entre as instituiçons, só para nom admitirem a fragilidade do poder sob o embate do movimento de massas(3), talvez se desforrem assim das humilhaçons que na altura lhes impujo a "populaça". Mas condenam-se a nom entender nada do jogo das forças políticas que conduziu à crise do Verao.
De facto, começava a acontecer algo de que ninguém suspeitara e que ninguém planeara: as massas, tomando à letra a Democracia, ameaçavam fazer desmoronar o regime burguês. A burguesia ainda fingia acolher com democrática serenidade as moçons explosivas dos plenários, mas via que o respeito pola ordem era umha capa cada vez mais fina, que já mal encobria a impotência real dos orgaos do poder.
O povo já constatara que a GNR e a PSP, suspeitas de envolvimento no golpe, eram desautorizadas polo MFA e que as forças do Copcon se recusavam a reprimir as suas iniciativas. Logicamente, nom levava a sério os apelos à disciplina e as ameaças de severas penas para as ocupaçons ilegais. Alargava a brecha o mais que podia. Exprimia a sua vontade nas comissons e plenários e tratava de a levar à prática. Aproveitava os rasgons no controlo burguês da imprensa e da rádio para as usar como orgaos das suas denúncias e exigências.
Era esta impetuosa aspiraçom de mudança das massas avançadas que lhes permitia marcar o andamento da política e cilindrar a resistência medrosa da direita e a inércia da grande massa, indecisa e flutuante. Era ela que engrossava dia-a-dia a ala esquerda do MFA, dava vida aos grupos revolucionários e condicionava a política do PCP.
Este movimento que começava a descobrir a sua voz e a sua força estava contodo ainda longe de descobrir a sua identidade política. Aceitava o MFA, o PCP, o MDP, em parte até o PS, como seus representantes. Só as franjas mais radicalizadas seguiam os grupos revolucionários, opostos a toda a autoridade estabelecida. Esses grupos, porém, nom passavam de parcelas confusas da nova corrente revolucionária que fermentava na luita de classes.
Nada mais longe da verdade do que a acusaçom de que o PCP teria tentado, após o 11 de Março, "queimar etapas" e impor umha Democracia Popular em Portugal.
O MFA pudo assim adiantar-se à rua e proclamar o "socialismo" e o "poder popular" antes que ela o figesse. Sancionou com a sua autoridade as iniciativas populares que nunca supugera possível admitir. Cedeu a todo com o justo instinto de que o mais vital era nom perder o controlo do poder. A força do movimento tornara-se tam indiscutível que a luita contra o proletariado só podia ser travada em nome do socialismo e da revoluçom.
Esta súbita conversom do MFA ao socialismo, seria um erro vê-la como umha manobra maquiavélica para confiscar a bandeira da revoluçom aos operários e assalariados. A luita de classes nom é assim tam simples.
O MFA viera aprendendo à sua custa que o nobre projecto de "devolver a liberdade ao povo" nom escapava à acçom devastadora da luita de classes. Dividia-se em tantas tendências quantas as forças politicas que do exterior o solicitavam. De momento, estava dominado pola corrente radical.
Acicatados pola sabotagem económica dos capitalistas e polas conspiraçons reaccionárias, comovidos pola razom das exigências populares, desejosos de se manter coerentes até ao fim com as suas promessas democráticas, os oficiais progressistas deslocavam-se para a esquerda a cada luita que eram obrigados a travar contra a direita e contra os militares moderados. Sentírom-se encantados por poder dar umha liçom aos monopolistas, latifundiários e grandes colonos que até aí tinham escarnecido do 25 de Abril. Em breve, ganhárom a hegemonia nas Assembleias do MFA e reconhecêrom-se embriagados como protagonistas de umha revoluçom "a sério". O fim do império colonial e do fascismo seria também o fim do capitalismo português.
As nacionalizaçons e as intervençons estatais nas empresas, exigência objectiva para afastar o perigo de bancarrota do sistema, aparecêrom-lhes como a prova de que se entrara em plena revoluçom socialista. Declarárom solenemente a "opçom socialista da revoluçom portuguesa". E como, obviamente, nom se podia avançar para o socialismo com umha Constituinte dominada por partidos retintamente burgueses, anunciárom, perante o pasmo indignado do PS e PPD, que "democracia socialista nom é votaçom formal mais nacionalizaçons, mas sim poder popular"(4). Estava lançada a ideia do 'poder popular", que viria a constituir o cerne da luita de classes nos meses seguintes.
A euforia reinante nom deixava perceber aos oficiais progressistas a falsidade paternalista do seu projecto, que advinha deste facto muito prosaico: eram eles que conservavam o comando dos soldados e o controlo das armas e, por sua vontade soberana, se arvoravam em libertadores do povo. Dizer que o MFA era "o povo armado" ou que as Forças Armadas estavam em vias de se transformar num Exército Popular nom passava de flores de retórica.
Na realidade, as comissons do "poder popular" que mais tarde vinhérom a reunir sob a presidência benévola dos oficiais, vinham na linha de continuidade das campanhas de "dinamizaçom cultural", que tinham percorrido a província, a explicar às populaçons o que era bom para elas. Eram umha reminiscência sublimada da "acçom psico-social" em Africa. Ansiosos por se resgatar da ignomínia colonialista, os oficiais progressistas exultavam por julgar estar a dar a libertaçom, desta vez verdadeira ao seu próprio povo. Nom sabiam que estavam, mais umha vez e em condiçons diferentes, a afogar umha revoluçom.
Mas nem todo era ingénuo no projecto "socialista" do MFA. A luita surda entre a ala esquerda e a direita do Movimento era arbitrada polo bloco central "gonçalvista", que aprendera em meses de governo a defender-se das massas e a desconfiar dos seus impulsos destrutivos. A teoria do MFA como "motor e garante da Revoluçom", reafirmada por Vasco Gonçalves em 7 de Abril, foi aclamada como a decisom de nom entregar o poder à social-democracia. Na realidade, expressava já em embriom a luita em duas frentes em que o CR se iria empenhar: impor as reformas democráticas de estrutura contra a resistência da social-democracia e da direita; mas também manter sob controlo os impulsos anárquicos da rua.
As iniciativas imprevistas dos trabalhadores, a quem nada parecia capaz de satisfazer, a recusa insolente dos grupos de extrema-esquerda a assinar o Pacto, as exigências "irrealistas" de que se expropriassem as fortunas e se submetessem a julgamento os anteriores governantes e os pides, a reivindicaçom "provocatória" do abandono da NATO, a "falta de respeito" que começava a contagiar os soldados, eram outros tantos golpes na confiança de V. Gonçalves no civismo do povo.
Os dous meses seguintes figérom amadurecer rapidamente esta atitude. À direita, o PS, apoiado em grandes comícios e manifestaçons tornava-se cada vez mais audacioso na exigência do lugar que lhe correspondia polas eleiçons. À esquerda, as comissons de trabalhadores e moradores criavam conflitos e sobressalto permanente com as suas reivindicaçons insaciáveis, sem quererem saber do estado catastrófico da economia.
Para agravar as cousas, o ELP fazia a sua apariçom em público e os pides fugiam da cadeia, enquanto Otelo, sempre impulsivo, declarava que teria sido melhor se no 25 de Abril os contra-revolucionários tivessem sido encostados à parede ou metidos no Campo Pequeno.
A necessidade de encontrar um partido que lhe servisse de suporte político para navegar gradualmente para o "socialismo", evitando os escolhos da reacçom e da revoluçom, começou a impor-se ao CR. Inviabilizada a ideia inicial de apoiar o MDP como grande frente unitária ao serviço do MFA e sem perspectivas de ver materializado o projecto de um de um novo partido da esquerda socialista(5) a maioria do CR tivo que optar polo apoio no PCP. Apesar de todos os inconvenientes que isso acarretava (o medo ao comunismo, a retracçom dos capitais, a hostilidade da NATO), o PCP era a única força capaz de enquadrar o movimento de massas e já com provas dadas de "responsabilidade".
Nada mais longe da verdade do que a acusaçom de que o PCP teria tentado, após o 11 de Março, "queimar etapas" e impor umha Democracia Popular em Portugal. Dizer que Cunhal tentou "seguir rigorosamente as pisadas" dos Partidos Comunistas da Europa oriental(6) ou atribuir a fractura do bloco militar em Agosto à manipulaçom e desvirtuamento dos movimentos sociais populares polo PCP(7), é verdadeiramente injusto.
Na realidade, Álvaro Cunhal já nom sabia se devia felicitar-se ou alarmar-se pola marcha imparável dos acontecimentos. Todas as suas metas, previstas para um largo período histórico, realizavam-se em marcha acelerada, de forma tumultuosa e imprudente.
Nom se chegara de forma nengumha a um quadro político em que as comissons, apoiadas em orgaos armados, se pudessem apossar do poder pola força.
A impaciência e temeridade das massas, que facilmente davam ouvidos aos incitamentos "esquerdistas", ameaçavam romper todo o delicado equilíbrio requerido polo projecto da "Revoluçom Democrática e Nacional". As acçons na "República" e na "Rádio Renascença" eram umha provocaçom gratuita ao PS e à Igreja. A torrente incontrolável das comissons suplantava as direcçons sindicais e autarquias, conquistadas em luita árdua como pilares do novo poder democrático. O entusiasmo ingénuo da ala esquerda do MFA, e sobretodo do Copcon, polo poder popular ("o povo tem sempre razom", declarava Otelo por essa altura) dava rédea solta à anarquia e acentuava perigosamente o retraimento dos militares moderados. Em princípio de Julho estivo-se à beira de umha ruptura no CR.
O pior é que o PCP, se previa atormentado o perigo fatal da desuniom das forças democráticas, previa também o perigo de ver fugirem-lhe pola esquerda amplos sectores do proletariado da regiom de Lisboa, do Alentejo, do Porto. A jornada de trabalho da Intersindical a 10 de Junho caíra no ridículo. A 4 de Julho, a Siderurgia véu para a rua, sem querer saber dos avisos dramáticos de que se poderia dar pretexto a um golpe fascista. Muitos militantes operários do partido, perturbados por se encontrarem a cada passo na cauda do movimento, começavam a vacilar na luita contra o "esquerdismo".
Foi necessário portanto apurar a táctica para tentar aquilo de que nengum outro partido seria capaz: enganchar na mesma dinámica o ascenso operário e o recuo pequeno-burguês. É isso que dá sentido à política do PCP no Verao de 1975 e nom o plano para um imaginário "golpe de Praga".
A acusaçom, lançada polo PS para galvanizar os pequenos patrons e a massa intermédia das cidades (e também para estimular o empenhamento mais directo dos americanos), apresentava como provas a insaciável ocupaçom de lugares polos quadros do PCP - na comunicaçom social, no aparelho económico estatal, na 5ª Divisom. A verdade, porém, é que a hipótese de um golpe "comunista" estava excluída à partida polo lugar de Portugal na NATO. Mesmo antes de ir a Moscovo conferenciar com Brejnev, Cunhal já o sabia.
Alarmado pola tendência para desintegraçom da aliança Povo/MFA em facçons antagónicas, o PCP procurava ganhar influência a todos os níveis do aparelho - para persuadir a burguesia liberal à colaboraçom, dissuadir a burguesia reaccionária de tentaçons golpistas e impedir os trabalhadores de se lançarem em "aventuras". A recente liçom do Chile, para Cunhal, nom era obviamente o fracasso estrondoso da táctica reformista em fase de crise revolucionária mas a necessidade de aperfeiçoar essa táctica. O Chile ensinava que era preciso levar mais longe as medidas preventivas contra umha reviravolta imprevista da direita ou umha explosom de "esquerdismo". Por um momento, pareceu que iria consegui-lo.
Julho começou com um novo salto do PREC (o "processo revolucionário em curso"), quando a Assembleia do MFA institucionalizou, após dura luita interna, a aliança Povo/MFA como base da construçom do socialismo. Os militares outorgavam às Assembleias Populares o direito de partilhar o poder e reconheciam as organizaçons unitárias de base como "embrions de um sistema de democracia directa", passando o parlamento para segundo plano. Do MFA-motor, passava-se para a aliança Povo/MFA "binómio-motor da RevoIuçom".
A convicçom de que o MFA rompera definitiva mente com a social-democracia desencadeou umha explosom de entusiasmo. No dia em que o PS abandonou o governo, umha enorme manifestaçom da Inter foi a Belém aclamar o CR e Vasco Gonçalves. Manifestaçom semelhante tivo lugar dias depois no Porto. A TAP suspendeu a greve em sinal de boa vontade. No Alentejo, rompêrom-se os últimos diques que ainda retinham a ocupaçom maciça dos latifúndios. As cooperativas e UCPs, somando-se às novas nacionalizaçons, ao controlo de gestám, às Assembleias Populares... - que mais era preciso para acreditar na realidade do socialismo? Além disso, o reconhecimento sucessivo da independência das colónias nom provava a boa-fé e habilidade do CR para pôr termo também ao pesadelo de Angola, afastando o perigo de umha explosom chauvinista reaccionária?
A avalanche das ilusons num socialismo redentor permitia ao boletim do MFA enumerar nas "classes trabalhadoras interessadas caminhar para a revoluçom socialista", "os pequenos e médios agricultores, comerciantes, industriais, os funcionários públicos, intelectuais, técnicos"...(8) Um país inteiro feito "classes trabalhadoras" dispostas a marchar para o socialismo!
Nom era difícil porém divisar, sob a demagogia arrevesada do "binómio-motor da Revoluçom", a inconsistência suspeita do Programa de Acçom Política do CR. "Esquecia-se" de definir como funcionaria a "democracia directa" nos quartéis, especificava que "nom serám admitidas organizaçons civis armadas" e prometia reprimir por igual as actividades contra-revolucionárias e "esquerdismo pseudo-revolucionário", contra o qual admitia, inclusive, o recurso à "acçom armada". A repressom sobre os manejos obscuros do MRPP "maoísta" poderia servir de precedente para umha real perseguiçom à esquerda em caso de necessidade.
Os militares estavam conscientes do risco deste novo passo "irreversível" para o socialismo.
No fundo, a corrente do "poder popular" cingia-se a tentar revitalizar e revolucionarizar" a aliança Povo/MFA. Teria sido necessária a intervençom massiva da classe operária conduzida por um partido comunista, entom inexistente, para poder passar além dessa aliança.
Com a oferta de um poder fictício às Assembleias Populares esperavam descomprimir de novo a pressom da rua e recuperar espaço de manobra para enfrentar a campanha do PS e da direita. Mas sem perder o controlo da situaçom. "Urge inserir os orgaos populares na aliança Povo/MFA", alertava a 5 Divisom, "de modo a prevenir o seu desenvolvimento anarquizante ou aventureirista"(9). Nom tardaria muito que o ascenso paralelo à esquerda e à direita espalmasse os bons propósitos dos socialistas militares.
A ressaca ao "poder popular" nom se fijo esperar. O PS, na oposiçom, arrastou o PPD para fora do governo e iniciou umha grande prova de força. Gigantescas manifestaçons nas Antas e na Alameda, a 18 e 19 de Julho, comprovárom a base de apoio do "socialismo democrático". Já nom se podia pretender que a oposiçom ao CR era obra só dos saudosistas do antigo regime. O PCP iria pagar cara a tentativa de impedir estas acçons por meio de barragens, como se elas fossem umha mera repetiçom da "maioria silenciosa" do 28 de Setembro.
Nom havia qualquer exagero nas denúncias de Cunhal acerca de umha escalada reaccionária orquestrada. Os assaltos e incêndios do ELP articulavam-se com as manifestaçons católicas, com a agitaçom promovida polas confederaçons patronais, com a ofensiva separatista nos Açores e com a conspiraçom febril dos colonos de Angola, dispostos a todo para salvar os seus bens da independência. Mas o ataque geral da direita fazia-se agora, ao contrário do ano anterior, a coberto de um grande movimento de massas da pequena burguesia e em nome da defesa do "verdadeiro espírito do 25 de Abri!". Já nom se podia ocultar que a "revoluçom de Abril" se fraccionara em dous ramos antagónicos.
O PCP, contodo, respirava confiança inabalável na Revoluçom. A ocupaçom do Alentejo pola vaga dos assalariados rurais, o congresso da Intersindical presidido por Costa Gomes e Vasco Gonçalves, a nacionalizaçom do grupo CUF, nom eram a prova da vitória? Cunhal triunfava em comícios delirantes. Demonstrava aos que o tinham suspeitado de timidez que todo vinha a seu tempo. A ideia de que estavam em curso conquistas "irreversíveis" e de que o partido avançava imparavelmente para o poder ("em aliança com os militares revolucionários, os democratas e patriotas") embebedava a base proletária do PCP.
Uma espessa tradiçom de reformismo crónico ocultava-lhe o quadro real da luita de classes. Convenciam-se de que todos esses avanços, à sombra do MFA e do respeito polo capital estrangeiro e pola NATO, formavam um matreiro plano revolucionário para roubar umha a umha as bases de apoio da burguesia, até deixá-la suspensa no ar, sem a assustar com excessos "irresponsáveis", como fazia a extrema esquerda.
Era esta ilusom de que estavam a fazer umha revoluçom "pola surra" que levava os operários mais combativos do PCP a alinhar com fervor na "batalha da produçom", a aclamar os discursos lacrimejantes de Vasco e a minimizar a força de massas do PS. Nom entendiam que, ao entregar-se nas maos dos "militares revolucionários" e ao instalar-se no aparelho de Estado em vez de o desmantelar, o seu partido os conduzia para umha derrota certa.
Em Julho, a extrema-esquerda começava a abrir espaço no impasse a que chegara a crise politica. À medida que se definia a ameaça de direita e a incapacidade do PCP, maiores sectores da vanguarda operária e popular se voltavam para as palavras de ordem da esquerda revolucionária. Começavam a reconhecer a justeza das suas denúncias acerca dos alçapáns da aliança Povo/MFA e da necessidade de luita mais radical.
As manifestaçons de 16 e l8 de Julho (Lisboa e Porto) e sobretodo a de 20 de Agosto, promovidas por comissons de moradores e trabalhadores e apoiadas por contingentes de soldados, projectárom para primeiro plano a aspiraçom de umha unidade popular renovada, por cima da divisom cavada entre os blocos do PS e do PCP. As suas palavras de ordem centrais eram a efectivaçom do poder popular e a passagem à ofensiva contra a direita. O seu documento programático, a Proposta de Trabalho do COPCON, divulgada em Agosto como alternativa ao V Governo e ao Documento dos Nove.
Havia contodo muito pouca convicçom nesta exigência de poder popular. As comissons de moradores e trabalhadores (estas últimas já em grande parte neutralizadas pola influência moderadora do PCP) tinham feito um largo caminho desde o ano anterior, mas estavam longe de querer assumir realmente o poder.
Rodeavam as instituiçons como orgaos de reivindicaçom, pressom e vigiláncia, mas nom se atreviam a substituir-se a elas.
Faltava-lhes a força para o fazer. Nom se chegara de nengumha forma a um quadro político em que as comissons, apoiadas em órgaos armados, se pudessem apossar do poder pola força. Por isso, o objectivo político difuso que inspirava as manifestaçons polo poder popular e a articulaçom das comissons em Assembleias Populares era ainda o de tentar encontrar essa força nas unidades do COPCON. No fundo, a corrente do "poder popular" cingia-se a tentar revitalizar e "revolucionarizar" a aliança Povo/ MFA, descolando, pola pressom das massas, umha nova ala esquerda do MFA. A lógica democrático-revolucionária pequeno-burguesa, mesmo levada ao limite, nom se transformava em lógica proletária, soviética.
A extrema-esquerda nunca foi além da "extrema-esquerda das ilusons de Abri!". Por detrás de um radicalismo superficial, foi a moderaçom da sua estratégia que a impediu de ganhar a direcçom do movimento no Verao de 75.
Teria sido necessária a intervençom massiva da classe operária conduzida por um partido comunista que nom existia.
Esta timidez tinha raízes na base social confusa da corrente do "poder popular": sectores operários avançados em fusom com moradores pobres, estudantes, pequenos comerciantes arruinados, intelectuais de esquerda - toda umha massa popular amorfa sem espinha dorsal de classe. Isto mesmo se traduzia na poeira de grupos políticos que lhe disputavam a direcçom, nengum deles capaz de ganhar hegemonia: maoístas, socialistas de esquerda, trotskistas, anarquistas.
Na ausência de umha força política dirigente, o movimento era levado a buscar no prestígio popular de Otelo a coerência unificadora que lhe faltava. Otelo, porém, nom era mais do que um intérprete vacilante de um movimento vacilante. Tentava manobrar entre os ataques que lhe eram desferidos polos Nove e polos gonçalvistas, polo PS e polo PCP, em busca de um espaço político que nunca chegou a encontrar. Em mais de um momento, as suas oscilaçons levaram-no a aproximar-se dos Nove. A sua decisom conciliatória de reintegrar Jaime Neves, saneado polos soldados dos Comandos, viria a ser-lhe fatal.
A corrente do "poder popular" nom tinha táctica porque nom tinha um projecto real de poder. Tam depressa apoiava os ataques do PCP contra o PS como os do PS contra o PCP, o que a conduzia à desagregaçom. Se, em vez de denunciar o V Governo como um "governo fantoche", tivesse sido capaz de enunciar as condiçons para umha luita comum contra o PS e os Nove, ela teria certamente deslocado para si umha boa parte das massas que se agarravam com desespero ao PCP e ao "gonçalvismo". Assim, a luita ficou de facto cingida à disputa entre o PCP e o PS.
Fracassadas as negociaçons para um novo governo de coligaçom, Agosto serviu para a disputa febril do apoio de massas a cada um dos diversos programas de saída da crise. Frente a frente ficárom o V Governo, que apostava no prolongamento da aliança Povo/MFA, e o Documento dos Nove, defensor da passagem à "normalidade democrática". Tornou-se claro desde logo que a terceira via defendida polo Copcon com a sua Proposta de Trabalho nom dispunha de força para triunfar.
Quem contasse o número de manifestantes e de moçons que se pronunciavam em apoio de cada umha das correntes seria inclinado a atribuir a vitória ao V Governo. O Documento dos Nove foi repudiado e estes foram suspensos do CR. Vasco Gonçalves produzia umha enxurrada de leis "socialistas" e tentava incendiar as massas com discursos sobre a "batalha da produçom". O PCP garantia-lhe o apoio com os Comités de Defesa da Revoluçom. No Século, Miguel Urbano Rodrigues reclamava "um governo que governe" e que se apressasse a "criaçom do Poder Revolucionário".
Na realidade, as aclamaçons ao "companheiro Vasco" mobilizavam multidons mas nom podiam suprir a impotência real do V Governo. Com as massas operárias desencantadas pola carestia e o desemprego, os camponeses exasperados pola ausência de medidas de apoio à produçom, a pequena burguesia em pánico com a desordem, o V Governo só consolidaria umha base de apoio sólida se adoptasse medidas políticas e económicas eficazes em benefício dos trabalhadores à custa da burguesia e as impugesse pola força.
Só o conseguiu em relaçom aos assalariados rurais do Sul. No conjunto do país, as suas indecisons, em vez de desarmarem a hostilidade do PS e da direita, como ele esperava, semeárom a vacilaçom nas massas e tornárom cada vez mais afoita a ofensiva unida para o derrubar. A força maioritária aparentada polo centro gonçalvista era fictícia. Apostar na estabilizaçom da luita de classes no ponto a que esta chegara era puro suicídio.
Incapaz de desmantelar o ELP e as conspiraçons militares que fervilhavam, de golpear seriamente os especuladores, os patrons sabotadores, a padralhada, de dissolver a Constituinte, o V Governo revelava-se como um "tigre de papel".
Isso mesmo entendiam social-democratas, liberais e reaccionários. O Documento dos Nove e o Programa de Acçom Imediata do PS, ao exigir o fim do "anarco-populismo", das formas selvagens e anarquizantes do exercício do Poder", das "usurpaçons e vandalismo" no Alentejo e a concentraçom do poder na Assembleia Constituinte, galvanizárom as massas burguesas e permitiam-lhe puxar à sua órbita largos sectores de camponeses pobres, assalariados, desempregados, desejosos do retorno à estabilidade. O PS e os Nove dispunham de vantagem esmagadora: eram os únicos que apresentavam um modelo de organizaçom social, contra o marasmo do centro gonçalvista e as indecisons da esquerda.
Entrou-se entom no penúltimo acto da comédia revolucionária. Sob a fachada das proclamaçons cada vez mais exaltantes, Álvaro Cunhal começou a procurar umha plataforma de compromisso com o PS e os Nove. As imponentes manifestaçons de fins de Agosto, em Lisboa e Porto, de apoio ao Copcon, servírom-lhe de capital de negociaçom. O PCP aderiu à última hora às manifestaçons, procurando inflecti-las para o apoio ao V Governo. Em seguida, foi mais longe e entrou com alguns grupos da extrema-esquerda na chamada Frente de Unidade Revolucionária (FUR). Os ingénuos incorrigíveis exultárom com o "passo decisivo" que se dava para a unidade da esquerda. Três dias depois, estabelecido um acordo básico com o PS sobre a distribuiçom de forças no futuro governo, Cunhal negou qualquer apoio à FUR e apelou a umha conciliaçom entre as três tendências do MFA. Era o fim do V Governo.
A partir daqui, estava aberto o caminho para golpe de Tancos e para a morte política de Vasco Gonçalves. Os Nove tomárom o controlo do CR e acabárom com as subversivas Assembleias do MFA. O PS redobrou de energia no ataque ao movimento popular. O 25 de Novembro está em marcha. Nem sequer a extrema-esquerda lhe conseguiu ser obstáculo.
Tem sido fácil ridicularizar os grupos de extrema esquerda pola desproporçom entre e suas exigências radicais e a escassez das suas forças. Seria necessário concluir, polo contrário, que foi a moderaçom das suas proposta políticas que os impediu de ganhar a direcçom do movimento no Verao de 75.
Todo o que os grupos tinham feito de positivo polo movimento nos meses anteriores, levando-lhe ideias novas, avançadas, ensinando-lhe anti-imperialismo militante, impondo-lhe salto para diante, estilhaçando o bronco conformismo legalista e sindicaleiro do PCP, tinha que ser elevado a um nível novo que eles nom se atrevêrom a franquear.
De facto, apesar do radicalismo exasperado da sua linguagem, o arsenal estratégico dos grupo nom tinha nengumha resposta coerente para o cerco à revoluçom, montado polo duelo entre as duas alas pequeno-burguesas agrupadas em torno do PS e do PCP.
Se excluirmos a direita da corrente maoísta (MRPP, PCPML/AOC), que viera evoluindo com o seu "anti-social-fascismo" assanhado, para reserva do PS e da reacçom (também a OCMLP enveredou por esse caminho a partir do Verao) e a ala esquerda social-democrata (FSP, LUAR, LCI), que se limitava a flutuar na esteira do PCP e do CR, as forças que constituíam a extrema esquerda propriamente dita (UDP, PRP, MES) nom passárom além da busca de um impossível arranjo popular-militar.
A UDP, por exemplo, umha das forças entom mais influentes da esquerda revolucionária, tentou corresponder à nova situaçom com a proposta de um "Governo de Independência Nacional, em aliança com o Terceiro Mundo", numha tentativa nítida de ganhar o apoio de parte da pequena burguesia. A verdade é que a UDP começava a recuar perante a perspectiva de um confronto: por isso entrou em campanha contra o "aventureirismo", pola atracçom das camadas médias e pola "unidade do povo contra o fascismo", quando o que estava em jogo era saber se se avançava ou nom para derrubar a burguesia. Por isso também, a sua breve agitaçom a favor de milícias populares nom foi levada à prática. A UDP viria a acabar logicamente no defensismo impotente do "nom à guerra civil" de Outubro.
Mais radical soava a proclamaçom da revoluçom socialista anunciada polo PRP e a sua iniciativa de constituir comités revolucionários (CRTSM), inclusive alguns deles armados. Mas o seu primitivismo político, formado na escola da acçom directa, nom dava ao PRP estofo para ganhar sectores significativos do proletariado. O mais que conseguiu foi um corpo de brigadas girando em volta dos quartéis e a reuniom de algumas assembleias populares, tam tumultuosas como indecisas. O seu revolucionarismo "activo" era afinal tam impotente como os apelos unitários da UDP. Para já nom falar do MES, que se evadia das tarefas revolucionárias com umha combinaçom aberrante de "socialismo militar" e "revoluçom cultural".
A raiz desta capitulaçom estava na linha centrista, maoísta-estalinista, em que se traduzia o marxismo-leninismo dos grupos comunistas. A sua perspectiva de umha revoluçom democrática-popular já nom tinha nada para lhes dar, no ponta a que chegara a luita de classes. Baseava-se na esperança de umha aliança operário pequeno-burguesa que a vida demonstrava ser inviável. Era essa ausência de estratégia revolucionária que os impedia de arrancar o grosso da vanguarda operária ao PCP e constituir o novo Partido Comunista que reconheciam como sua principal tarefa.
Polo seu lado, a corrente "anti-estalinista", num leque que ia do PRP ao MES e aos trotskistas, condensava todos os preconceitos da social-democracia de esquerda: umha fé mística na "auto-organizaçom das massas e nos órgaos de "poder popular", como se deles pudesse sair espontaneamente o partido dirigente da revoluçom; o namoro aos oficiais revolucionários como chave da conquista do poder; como pano de fundo, umha incapacidade absoluta para diferenciar os interesses do proletariado dos da pequena burguesia. Resultava daqui o pragmatismo invertebrado que os levou à armadilha da FUR.
Numha palavra, a extrema-esquerda nunca foi além de extrema-esquerda das ilusons de Abril. Estava condenada a assistir impotente ao 25 de Novembro.
No Verao de 75 tratava-se de saber se a classe operária era capaz de enfrentar o desafio que a História inesperadamente lhe apresentava: reconhecer a morte do MFA, umha vez esgotada a tarefa democrática que lhe dera origem e levar audaciosamente o confronto a um plano superior: polas nacionalizaçons, pola reforma agrária à escala nacional, polo castigo dos contra-revolucionários, pola soluçom da crise económica - todo o poder às comissons de trabalhadores, soldados e moradores, dissoluçom da Constituinte, formaçom de um governo revolucionário, armamento do povo, controlo operário, expropriaçons sem indemnizaçom, ruptura com a NATO.
Para se poderem manter, as conquistas de Abril tinham que ser levadas mais longe. O próprio desenrolar dos acontecimentos demonstrava que nom havia lugar para qualquer "revoluçom democrática e nacional", "revoluçom socialista de todo o povo" ou "revoluçom democrático-popular", todas elas imaginadas na base de um impossível bloco unido operário-burguês. Os factos mostravam que a revoluçom só se tornaria realidade se rompesse o casulo da aliança Povo/MFA e ganhasse envergadura de umha luita definitiva dos produtores contra os exploradores, dos soldados contra os oficiais, das comissons contra as instituiçons - em suma, umha revoluçom do proletariado contra a burguesia, umha revoluçom socialista.
Poderia essa revoluçom triunfar sobre a ameaça de guerra civil e de cerco e invasom imperialistas? Pode-se duvidar. Mas nom restam dúvidas de que era essa a única revoluçom que havia para fazer. Fora dela, só ficava o que efectivamente ficou - a reorganizaçom da ordem burguesa.
Saber se a revoluçom era ou nom possível nom era questom que tivesse resposta antecipada. Dependia da capacidade do proletariado para assumir a direcçom dos acontecimentos, disposto a vencer a todo o preço, e nesse processo arrastar para o seu lado as grandes massas semi-proletárias e retirar margem de manobra à pequena burguesia.
Essa situaçom nom chegou sequer a esboçar-se . Acima de todo porque faltou ao proletariado um partido revolucionário, comunista, capaz de se assumir e fazer reconhecer como a direcçom política da revoluçom. Esta é naturalmente a conclusom imediata que se impom a todo o marxista. Mas é preciso ir mais além e perguntar por que nom chegou esse partido a formar-se, nem sequer como embriom, numha situaçom tam propícia, que nom só favorecia como exigia o seu aparecimento.
E aqui entramos na questom-chave das relaçons políticas entre proletariado e pequena burguesia. Enquanto o proletariado procurava às apalpadelas o caminho da revoluçom, a pequena burguesia, dividida num arco-íris de tonalidades, tratou, toda ela, de lhe bloquear esse caminho. Criticar as "vacilaçons" da pequena burguesia, como habitualmente se fai, é ainda umha maneira de dourar a realidade. A pequena burguesia nom vacilou nunca no essencial para a sociedade estabelecida, que era salvar o Estado.
Isso ficou evidente quanto à massa pequeno-burguesa alinhada atrás do PS e da direita contra a "anarquia". Mas já nom ficou claro quanto à fracçom radical da pequena burguesia, precisamente polo seu comportamento pseudo-revolucionário. Guiada polo instinto seguro de que o mais vital era ficar junto das massas revoucionárias para evitar umha convulsom irreparável, a pequena burguesia de "esquerda" montou umha fraude política de grandes proporçons.
Todas as reivindicaçons revolucionárias dos operários e restantes trabalhadores fôrom por ela esvaziadas em palavras de ordem de fantasia: aliança Povo/MFA em vez de aliança dos operários, camponeses pobres e soldados; "poder popular" tutelado polos quartéis em vez de poder popular autêntico; "batalha da produçom" em vez de expropriaçom da burguesia; respeito polos compromissos internacionais em vez de saída da NATO; unidade popular em vez de partido operário revolucionário; "transiçom para o socialismo" em vez de revoluçom violenta.
Face ao bloco da ordem, comandado pola burguesia, forte do apoio imperialista, alinhárom-se assim as hostes desgarradas de um "exército operário-pequeno-burguês, cujas energias se esgotárom nas maos de chefes de empréstimo, mais receosos da vitória do que da derrota.
Em vez de ser o proletariado a encostar a pequena burguesia à parede e forçá-la a escolher entre dous campos, foi a pequena burguesia que se arvorou em árbitro da crise. O resultado estava traçado de antemao. Nem chegou a haver batalha.
Hoje, a dez anos de distáncia, é evidente que a missom histórica da pequena burguesia "revolucionária", agrupada no PCP e na ala gonçalvista do MFA, era promover a transiçom do regime fascista-colonialista defunto para a democracia burguesa, afastando o perigo de umha revoluçom. O que fijo com êxito.
Naturalmente, umha vez cumprida essa missom, a pequena burguesia "revolucionária" foi empurrada sem cerimónia para fora do poder que lhe fora dado provisoriamente polas forças do Capital. Álvaro Cunhal, Vasco Gonçalves, Costa Gomes tenhem boas razons para se sentir vítimas de umha injustiça histórica. O serviço que prestárom à "democracia" jamais será reconhecido.
Resta-lhes umha consolaçom. É que a sua sabotagem da revoluçom pudo manter-se oculta aos olhos das grandes massas graças à incoerência e fraqueza da esquerda revolucionária. Ao cair polo ultimato pola direita e nom ultrapassado pola esquerda, o V Governo santificou-se com umha enganosa auréola revolucionária que permanece até hoje no espírito do movimento operário. Nom admira a crise ideológica em que este se debate: todo o sentido da luita de classes em 75 lhe permanece oculto.
Tornar claro o antagonismo de interesses entre proletariado e pequena burguesia de "esquerda" é afinal a liçom de Abril que continua por tirar. Admitir ou nom a necessidade de o proletariado se libertar da hegemonia pequeno-burguesa, como questom central da luita de classes nacional, é o que distingue, em última análise, o marxismo revolucionário do reformismo.
Notas de rodapé:
(1) Paul Sweezy, "Luta de classes em Portugal", Ed. SLEMES, 1976, pág. 21. (retornar ao texto)
(2) Comunicado da comissom política do CC do PCP, 11/3/75. (retornar ao texto)
(3) O processo de formaçom das instituiçons até aí banidas - di saborosamente Medeiros Ferreira - "foi mais importante e determinante do ponto de vista da construçom do regime político do que, por exemplo, a luita de classes que também se travou nessa altura" (!). J. Medeiros Ferreira, "Ensaio histórico sobre a revoluçom do 25 de Abril. O período pré-constitucional" Ed. Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, pág. 88. (retornar ao texto)
(4) Boletim do MFA, n° 17, 6/5/75. (retornar ao texto)
(5) César de Oliveira, na altura um dos principais ideólogos do MFA, expujo numha série de artigos os objectivos programáticos que deveria assumir esse partido (retornar ao texto)
(6) João Martins Pereira, "O socialismo, a transiçom e o caso português". Ed. Bertrand, 1976, pág. 190 (retornar ao texto)
(7) Boaventura Sousa Santos, "A crise e reconstituiçom do Estado em Portugal (1974-1984) (retornar ao texto)
(8) Boletim do MFA, 25/7/75. (retornar ao texto)
(9) Nota da 5 Divisom, 16/7/75. (retornar ao texto)
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