O Trunfo de Cavaco

Francisco Martins Rodrigues

Janeiro/Fevereiro de 2006


Primeira Edição: Política Operária nº 103, Jan-Fev 2006

Fonte: Francisco Martins Rodrigues - Escritos de uma vida

Transcrição: Ana Barradas

HTML: Fernando Araújo.

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Enquanto os candidatos da “esquerda” aborreceram os eleitores com frases gastas sobre o “rigor” e a “solidariedade”, Cavaco burlou-os com a miragem da prosperidade. Ganhou o mais esperto.

Apoiado pelos meios do alto negócio, acarinhado pela grande imprensa, beneficiando ainda por cima da barafunda dos dois candidatos socialistas, Cavaco teve a tarefa facilitada desde o início. Mas a sua grande superioridade foi outra: foi a tónica que ele pôs na “recuperação económica” como chave para os portugueses viverem melhor. Isto foi ao encontro do que sente toda a gente: o que interessa é sair da crise. E claro que ele teve o cuidado de não dizer o resto: para haver recuperação económica é preciso interessar os investidores, e para os interessar é preciso oferecer-lhes novas regalias e “incentivos”, privatizar todos os serviços que eles cobicem, generalizar o trabalho precário, simplificar mais os despedimentos, acabar com as “resistências conservadoras corporativas”, etc. A sua promessa de um futuro radioso para “os nossos filhos e netos” traduz-se, na prática, em mais poder para o capital, mais escravização para o trabalho.

Era nesta duplicidade que os outros candidatos deveriam concentrar o fogo. Porque não o fizeram? Porque é que Soares, em vez disso, insistiu na tecla suicida de minimizar a economia, contrapondo-lhe a conversa chocha de “o que interessa são as pessoas”? Porque é que Alegre se ficou pela retórica da ‘liberdade” e da “esperança” e caiu em palermices como “incutir um espírito ético e patriótico aos empresários”? Mesmo Jerónimo e Louçã, que se assumiram como defensores do mundo do trabalho, porque não disseram que, na ausência de uma resistência unida dos assalariados, a crise cairá sempre sobre as suas costas? Porque não disseram que o poder político está hoje inteiramente enfeudado às multinacionais e que o “Estado de direito democrático” é uma ficção? Que Cavaco, Soares ou Alegre representam a mesma política, formatada pela União Europeia?

Não o fizeram porque a questão do sistema, para eles, é fogo: como “esquerda” que se afirmam, não podem defender explicitamente os interesses do capital; mas também não podem atacá-los, sob pena de ser catalogados como “loucos fora da realidade”, “demagogos”, “populistas”. O mais a que se atreveram foi a uma ou outra referência aos banqueiros, à corrupção e à evasão fiscal, mas com cuidado para não pisar o risco. Com medo de perder votos, ficaram-se pelo discurso oco da “solidariedade”, do “rigor” e da “cidadania”.

Conseguiram a sua pequena dose de votos, mas não impediram o triunfo de Cavaco e sobretudo, não ajudaram a clarificar a via para os trabalhadores saírem do impasse a que chegaram.


Inclusão 26/07/2019