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Apreciei a frontalidade com que M. Faria desenvolve os seus argumentos a favor do apoio eleitoral ao PCP e BE mas discordo de quase tudo o que escreve. Ele acha que deveríamos apelar ao voto nos candidatos do PCP e do BE para permitir que fossem para o governo em coligação com o PS. Desse modo, ou trairiam as suas promessas eleitorais, o que ajudaria os trabalhadores a perder ilusões e a deslocar-se para a esquerda, para o nosso campo, ou revelar-se-iam como revolucionários sinceros e aí a revolução iria de vento em popa.
Lembrando que o PCP e o BE fazem uma oposição muito mais efectiva ao grande capital e ao imperialismo do que a PO, remetida à sua quase nula influência (o que ninguém poderá contestar), Faria defende que devemos “aprender a lidar com os chefes reformistas de esquerda” e votar no PCP, “criticando-o nas suas vacilações”. Como recusamos fazê-lo, afirma que a nossa pequenez se deve a uma “linha táctica e estratégica rígida, isolacionista”, “fechados num casulo ‘anti-reformista’”, chama-nos anti-leninistas, anarco-sindicalistas e ultra-esquerdistas e avisa-nos de que “abster-se é fazer o jogo da direita e perder qualquer credibilidade aos olhos da vanguarda operária”. É uma acusação pesada mas que não nos tira o sono. Tentarei dizer porquê.
Para clarificar as nossas diferenças, comecemos por afastar os falsos argumentos(1). Há muitíssimas situações em que é útil e necessário aos comunistas concorrer às eleições ou apoiar outras candidaturas. O apoio à candidatura de Humberto Delgado teve efeito muito positivo no movimento antifascista dos anos 60. Quem o duvida? Tiveram efeitos positivos a candidatura da CDE em 1973, a concorrência da extrema-esquerda às eleições para a Constituinte, na Primavera de 1975, o empenhamento na candidatura de Otelo à presidência, em 1976, as primeiras candidaturas da UDP às legislativas, às autarquias, etc.
Mas esses e outros exemplos não servem para o nosso caso actual. Tentar demonstrar que a PO deveria ter ajudado o PS a derrotar Freitas e Cavaco nas eleições presidenciais de 1986 e 2006, usando como termo de comparação as eleições de Fevereiro de 1936 em Espanha, em plena crise revolucionária, às vésperas do golpe fascista, não faz sentido. Não estamos a discutir situações históricas, como a concorrência dos bolcheviques às eleições no Verão de 1917, durante a crise revolucionária na Rússia, ou o conselho de Lenine aos comunistas ingleses para que fizessem um acordo eleitoral com os trabalhistas contra os conservadores, em 1920 (aliás, sobre isso, já escrevi bastante nesta revista). Também não estamos agora a julgar os processos eleitorais na Venezuela, na Bolívia ou no Equador. Estamos a falar de tácticas eleitorais comunistas, em Portugal, hoje. E aqui, precisamente para não sermos mecanicistas, como reclama Faria, há que analisar a situação concreta.
Faria reclama o apoio eleitoral ao PCP porque acredita que “só com o PCP no governo podemos esperar um crescimento significativo das lutas populares.” E dá como exemplo os governos de Vasco Gonçalves, que teriam propiciado o auge da luta popular em 1975. Isto obriga-me a repetir o que escrevi no artigo anterior (PO nº 108): se olharmos para os factos temos que reconhecer que o processo é o inverso. O gonçalvismo fez reformas no interesse do povo porque as massas o empurraram e sustentaram no poder com a exigência de que realizasse as suas reivindicações. Apoiando (e contendo simultaneamente) as lutas populares, o gonçalvismo foi uma tradução imperfeita e transitória do caudal do movimento de massas, não o seu criador. Hoje, quando estamos claramente nos antípodas da agitação social que se viveu em 1974-75, não há qualquer perspectiva de se repetir um fenómeno semelhante: as massas não têm força nem convicção para elevar o PCP ou o BE, ou ambos, ao governo; e a burguesia não precisa deles lá; só a estorvariam. Parece-me evidente que Faria, ofuscado pelo aparente protagonismo das instituições, vê de pernas para o ar a relação entre movimento de massas e governos em período de crise revolucionária.
Outro erro de apreciação de Faria é, em minha opinião, a sua visão idealizada da oposição que PCP e BE fazem ao poder actual. Esses partidos opõem-se à ofensiva antipopular em curso, às guerras imperialistas, etc., mas, não sendo empurrados por um vigoroso movimento de massas, mantêm a sua oposição nos limites do jogo parlamentar, do aceitável para o sistema, do sonho de deslocar o PS ou uma parte dele para a esquerda. Estão amarrados por mil laços às instituições e, como escreveu uma vez Engels,
“à força de mentirem ao povo, acabam por acreditar nas suas próprias mentiras”.
Ainda mais quando a presente avalanche do capital em busca de soluções para a sua crise torna o sistema de poder burguês muito mais totalitário e enquadra mais rigidamente a esquerda parlamentar no aparelho de Estado. Assim como a social-democracia teve de evoluir para a direita para ser admitida na governação também o reformismo do PCP e do BE se vai tornando mais domesticado e integrado no sistema. Quando Faria escreve que “teoricamente, se o PCP e o BE obtiverem um dia a maioria dos deputados no parlamento” poderão adoptar “as primeiras medidas da ditadura do proletariado” (!) reflecte uma incompreensão profunda da natureza social desses partidos e da situação que vivemos.
Não creio por isso que a nossa abstenção seja, nas condições presentes, “fazer o jogo da direita e perder qualquer credibilidade aos olhos da vanguarda operária”. Primeiro, porque a luta eleitoral entre a esquerda e a direita do regime ilude, não clarifica, as alternativas que se colocam às massas. E, segundo, porque não me parece que se possam considerar “de vanguarda” as tais dezenas de milhares de operários que votam no PCP e no BE. Constituem uma massa popular derrotada e em busca de protecção, que só pela intervenção de uma força exterior poderá deslocar-se de facto para posições de vanguarda.
Faria incorre, a meu ver, num erro muito comum no que resta da nossa esquerda revolucionária. Esses camaradas discutem com toda a seriedade a linha táctica correcta que os comunistas deveriam aplicar, como se estes já existissem como força política real. Esquecem – o que é verdadeiramente extraordinário – que não existe, nem sequer em esboço, um campo proletário revolucionário no nosso país. Esquecem que os comunistas dos diversos países, entre os quais nos contamos, ainda estão a procurar reformular um programa e uma linha política no meio dos escombros deixados pela agonia do movimento do século XX.
Em vez de olhar de frente o grande recomeço que nos é imposto pelas transformações da luta de classes mundial, esses camaradas caem numa busca ansiosa de fórmulas tácticas que, como por milagre, nos devolvessem a influência passada. Isso não existe. Nada pode substituir a reconstituição do comunismo revolucionário e este só renascerá de uma real vanguarda proletária desejosa de ajustar contas com a burguesia, animada por um projecto de tomada do poder. Nada pode substituir o trabalho directo dos comunistas entre as massas exploradas, pelas suas reivindicações diariamente desprezadas.
E aqui chego o último ponto desta nota. Atribuir aos comunistas, nesta situação caótica, capacidade para tirar proveito de manobras eleitorais é sonhar acordado. Se forças de esquerda, sem programa, sem intervenção política, sem implantação, apelarem ao voto no PCP ou no BE, tornar-se-ão, por muito que não o queiram, simples satélites desses partidos. A ânsia de inverter a relação de forças pelo recurso ao apoio aos reformistas, sem se dispor de forças próprias, conduz em linha recta à capitulação perante o reformismo – eu sei que para Faria este é mais um palavrão “estereotipado”, mas depois de tanta experiência desastrosa não posso dispensá-lo.
Notas de rodapé:
(1) Não vou aqui comentar o devaneio de Faria sobre os ciclos de 84 anos que anunciariam uma viragem à direita em Portugal exactamente no ano 2010. Nem a sua defesa da “possibilidade de passagem relativamente pacífica ao socialismo”. Nem a opinião de que Chávez está a “orientar pacificamente a Venezuela para um socialismo híbrido” e que o vice-presidente venezuelano “até pode ser um Lenine”. É tudo demasiado ingénuo para se poder discutir. (retornar ao texto)
Inclusão | 02/05/2018 |