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Será que têm razão os que pensam, como o nosso leitor e assinante de primeira hora, Fernando Pulido Valente, que Marx errou quando considerou que o proletariado estaria em condições de desempenhar o papel revolucionário de abolir o sistema capitalista?
Talvez seja útil reflectir sobre este tema a partir da conjuntura actual, na medida em que ela poderá dar-nos pistas para respondermos a esta interrogação e concluirmos algo mais, para assim irmos ao encontro das preocupações do nosso amigo leitor.
O que o momento actual nos diz com uma clareza cada vez maior é que o sistema não presta, o domínio da maioria é uma balela. A prova é que, apesar de se estarem sempre a queixar de não têm dinheiro para pagar centros de saúde, aumentos de salários, reformas, o buraco da segurança social, etc., os Estados são os primeiros a acorrer com milhares de milhões de euros aos bancos que, por irresponsabilidade e má gestão, fizeram evaporar num dia capitais que foram acumulados a partir do trabalho esforçado da mão-de-obra que os capitalistas controlam. Nesta operação internacional concertada de massiva apropriação privada de recursos públicos, o que vigora é o socialismo para os ricos e o capitalismo para os pobres, a privatização dos lucros e a socialização dos prejuízos. Não se ouviu ainda falar, nem se ouvirá, de multas, sanções ou prisão para nenhum dos executivos responsáveis por este colapso de dimensões globais.
Perante o fracasso do neoliberalismo, não há terceira via, pelo que, enquanto não desaparecer, o capitalismo declinante poderá ser ainda mais perigoso. O modelo económico que gerou a actual crise é o mesmo que origina o aumento das desigualdades que empurram as classes mais desfavorecidas para um endividamento sem fim à vista. Apesar da sociedade do conhecimento da qual tanto se esperou, a pauperização não cessa de aumentar em todo o mundo e também nos países europeus. O perigo de uma catástrofe mundial pode mesmo arrastar-nos a todos para a barbárie, se entretanto não ocorreram acontecimentos que invertam esta marcha para o abismo.
Seja como for, para já cai por terra o mito do fim das ideologias, do fim da história. O capitalismo parece estar a evidenciar que chegou aos seus limites. Não só não há possibilidade de compatibilização de interesses entre as classes, como o neoliberalismo nos pôs a todos diante de um beco sem saída em que, mais uma vez, serão os trabalhadores a pagar a factura.
Mais do que indignar-nos com o descalabro económico, há que vê-lo numa perspectiva marxista, ou seja, sob o ponto de vista do proletariado.
O capitalismo globalizou-se, mas não saiu dos parâmetros da análise marxista, isto é, continua a contradição principal da luta de classes entre o proletariado e a burguesia, as duas únicas classes “puras”, como dizia Marx. Segundo este, a burguesia cava a sua própria sepultura, cria a sua própria negação, a sua própria não-burguesia, o proletariado. Incapaz, no plano teórico geral, de elevar-se acima da compreensão dos sintomas do processo económico, está condenada ao impasse no plano prático. Nestas condições, poderá o proletariado gerado pelas actuais infra-estruturas fabricar e instrumentalizar uma ideologia que o leve a tornar-se classe dominante, substituindo-se à burguesia?
Ao pensarmos no proletariado real, actual, e ao modo como ele está alienado pelos mecanismos capitalistas, teremos tendência para pensar que não. Mas essa é uma impressão que não toma em conta que a acção do proletariado muda nas épocas decisivas de crises. Mesmo que o efeito na consciência imediata dos trabalhadores tenha de início um carácter isolado, essa necessidade será sentida instintivamente por camadas cada vez mais amplas do proletariado.
Claro que seria desastroso alimentar ilusões sobre a distância que o proletariado tem de percorrer na sua maturação ideológica. Há uma luta a travar, a do proletariado contra si mesmo, contra os efeitos devastadores do sistema capitalista na sua consciência de classe. Contudo, seria também desastroso não ver as forças que agem no sentido da superação ideológica por parte do proletariado desses efeitos nefastos do capitalismo. Diz-nos Marx em A Guerra Civil em França:
“Ela [a classe operária] não tem utopias prontas a introduzir par décret du peuple [por decreto do povo]. Sabe que para realizar a sua própria emancipação – e com ela essa forma superior para a qual tende irresistivelmente a sociedade actual, pela sua própria actividade económica – terá de passar por longas lutas, por uma série de processos históricos que transformam circunstâncias e homens. Não tem de realizar ideais, mas libertar os elementos da sociedade nova de que está grávida a própria velha sociedade burguesa em colapso.”
De facto, só a vontade consciente do proletariado pode salvar a humanidade de uma catástrofe e portanto o destino da revolução depende da maturidade ideológica do proletariado. Sabendo-se que no seu seio há formações que procuram impedir que a sua consciência de classe continue a evoluir para se transformar em acção adequada à evolução objectiva da situação, percebemos que os obstáculos são muitos e que o processo pode demorar muito tempo. E temos de concluir que, enquanto essa consciência não existir, a crise será permanente, repetem-se os ciclos de crise e prossegue a espiral da decadência, visto que a burguesia nada mais sabe fazer.
Mas que é do proletariado? Será que ele está a desaparecer, como parece supor Fernando Pulido Valente? Não, pelo contrário. Estamos longe de uma diminuição absoluta da classe operária à escala mundial, e talvez mesmo de uma diminuição em percentagem da população activa total. O número de proletários está em crescimento no mundo, já que a baixa do seu número nos países europeus e a tendência de queda nos Estados Unidos e Japão são largamente compensadas pelo crescimento do emprego industrial nos países do Sul. Basta pensar no acelerado desenvolvimento capitalista da Índia e da China – para citar apenas dois países entre muitos outros – para percebermos que todos os anos se proletarizam muitos milhões. Os poderosos contingentes operários que se estão a formar nesses países e nessas regiões compensam só por si as reduções que se têm dado nos países desenvolvidos. Globalmente, nestas três últimas décadas o proletariado industrial quase quintuplicou os seus efectivos. Aliás, estes cálculos estão bem documentados nas estatísticas da OCDE, OIT, FMI e ONU (tendo até sido comentados em vários artigos publicados na PO 42, 44, 48, 50 e 75 e 77).
É um facto que a dialéctica da situação de classe do proletariado no capitalismo torna mais difícil o desenvolvimento da sua consciência, se comparado com o processo de consciência de classe da burguesia quando suplantou o feudalismo. O Manifesto Comunista formula assim essa ideia:
“Todas as classes anteriores que conquistaram o poder buscavam assegurar a situação que já tinham adquirido, submetendo toda a sociedade às condições de sua aquisição. Os proletários só podem apropriar-se das forças produtivas sociais suprimindo o modo de apropriação que até aqui era o seu, e, por conseguinte, todo o antigo modo de apropriação.”
Este é um processo que pode levar muitos e muitos anos. As primeiras experiências históricas fracassaram e degeneraram em regimes em tudo contrários aos interesses proletários. O processo de substituição de uma classe por outra parece estar condicionado a espaços temporais muito longos e à necessidade de tentativas sucessivas (como aliás aconteceu no longo processo de luta da burguesia contra o feudalismo). Hoje em dia, são enormes os obstáculos que se põem a essa necessidade de ir além dos dados imediatos. Um deles tem a ver, paradoxalmente, com os comunistas actuais. Com efeito, estes, em vez de se posicionaram como o sector mais firme, constante e revolucionário das classes trabalhadoras e contribuírem com a sua acção para o proletariado se tornar uma “classe para si” e proceder à negação do capitalismo moderno, globalizado, à abolição da propriedade privada dos principais meios de produção, afastaram-no da sua consciência de classe, apontaram-lhe caminhos de conciliação, sufocaram as suas manifestações mais radicais e avançadas e por isso o proletariado está amarrado a compromissos interclassistas e dominado pela classe capitalista não só do ponto de vista económico, mas também ideológico.
Contudo, daqui não se pode concluir que haja uma superioridade geral da burguesia ou uma incapacidade do proletariado de ter pensamento e acção próprios. Nem sequer podemos concluir que só acontecerá no tempo dos nossos netos, porque é sabido que a história avança por saltos súbitos e imprevistos e pode percorre rapidamente as suas etapas. Além disso, a motivação histórica da classe operária, a força motriz que mais tarde ou mais cedo o levará a pôr-se em movimento, é uma lei da natureza, inelutável por definição. Como dizia Marx:
“A questão não é o que este ou aquele proletário ou mesmo o proletariado inteiro representa em dado momento como alvo. Trata-se do que é o proletariado e do que, de conformidade com o seu ser, historicamente será compelido a fazer.”
Seguindo na mesma senda, Lenine, em perfeita coerência com Marx, afirmou que a teoria revolucionária
“pôs a claro a verdadeira tarefa de um partido socialista revolucionário, que não é inventar planos de reorganização da sociedade, ou de pregar aos capitalistas e seus lacaios a melhoria da sorte dos operários […], mas organizar a luta de classe do proletariado e de dirigir essa luta cujo objectivo final é a conquista do poder político pelo proletariado e a organização da sociedade socialista.”
O marxismo elevou todas as relações humanas à categoria de relações de luta de classe históricas e de resistência contra a escravatura assalariada e transformou-as num todo dialéctico do qual emana o factor subjectivo revolucionário, a consciência de classe histórica, a teoria revolucionária. É dela que a vanguarda revolucionária se deve servir, reforçando a consciência da classe proletária para esta conseguir libertar-se.
A constituição de novas classes operárias a nível global, como proletariado em diferentes estados de desenvolvimento e de exploração e como categoria objectiva, é em si mesmo um fenómeno histórico inédito e muito promissor, que só contribui para tornar possível a bela utopia marxista que, colocando a revolução na sua verdadeira dimensão, que é mundial, conjura os operários de todo o mundo a unir-se.
Inclusão | 28/09/2016 |