MIA> Biblioteca> Adhemar Schwitzguébel > Novidades
Primeira Edição: l’Almanach du Peuple pour 1872
Fonte: Passa Palavra - https://passapalavra.info/2016/06/108470/ e
Tradução: Marcelo Mazzoni, revista pelo Passa Palavra, a partir da coletânea de textos de Adhemar Schwitzguébel realizada por James Guillaume, intitulada Quelques Écrits. As notas são da autoria de James Guillaume. O original em francês pode ser conferido em https://archive.org/details/quelquescrits00schwgoog
HTML: Fernando Araújo.
O socialismo se apresentou de início para as classes trabalhadoras sob a forma de diferentes sistemas, cada um com seus adeptos mais ou menos numerosos, e cada um colocando a si mesmo como o Evangelho infalível que salvaria a sociedade.
A esses diferentes socialismos, feitos nos gabinetes de pensadores especulativos, sucedeu um socialismo muito mais popular, que tomou corpo durante a Associação Internacional dos Trabalhadores.
Quando estudamos os diferentes autores socialistas, percebemos que a fantasia joga um papel considerável na elaboração de seus escritos; tanto que a história da Internacional nos oferece outro espetáculo, não de uma teoria preconcebida, mas de um grande fato econômico se produzindo longe da influência de seitas: é o próprio proletariado que toma a consciência de sua própria situação, de seus anseios, e do futuro para o qual é compelido por necessidades inelutáveis.
Do que precedeu, devemos concluir não podemos retirar nenhuma importância do trabalho dessas valentes escolas socialistas que, na primeira metade do século dezenove, bateram nas brechas do velho edifício social, e prepararam assim a organização do proletariado no seu porvir? Longe disso; nós devemos a todos esses infatigáveis lutadores, lembrando que muitos deram suas vidas à causa, um profundo reconhecimento; são aqueles que iniciaram a rota; e, marchando mais unidos e mais firmes para a realização do objetivo comum, é justo que guardemos uma lembrança daqueles que guiaram nossos primeiros passos.
O ponto fundamental da questão é a maneira de encarar a propriedade. Todo o mundo a compreende, os adversários da emancipação dos trabalhadores assim como seus partidários. A propriedade, este é o centro do debate.
Essa questão importante foi tratada nos diferentes Congressos da Internacional, e o princípio da propriedade coletiva é parte, como uma necessidade histórica e econômica, das discussões do último Congresso Geral acontecido em setembro de 1869 na Basiléia. Antes do Congresso, a Internacional não havia sido mais que debilmente atacada; mas a partir desta época, deu-se uma avalanche de ataques tal que a história não apresenta outro exemplo de uma associação que teria levantado contra si tanto ódio.
Para nós, quando esses ataques vinham da burguesia, eles eram perfeitamente compreensíveis; a Internacional havia atacado a base mesma do poder burguês, era natural que todos que participam do poder burguês se revoltassem, com paixão, contra a audaciosa negação dos privilégios da burguesia. Mas a ignorância, a submissão econômica do povo criou para a Internacional, no seio do próprio proletariado, numerosos inimigos, que são de nosso dever esclarecer e, se possível, trazer para o seio de nossa grande organização internacional.
É precisamente o princípio coletivista que está na base dos ataques dirigidos contra a Internacional, e é na deturpação desse princípio, e na falsificação de sua aplicação, que o arrivista suscita contra ele tantos inimigos.
O coletivismo seria, para diferentes categorias de adversários: 1º a destruição da liberdade individual; 2º a realização de uma igualdade paralisante de todo esforço individual; 3º uma repartição das riquezas, e, por consequência, a destruição gradual, sem ganho por pessoa, do capital acumulado até os dias de hoje; ou enfim, 4º um sistema social não embasado sobre nenhuma cientificidade, e por consequência uma utopia.
Responderemos brevemente a essas diversas proposições.
1º A liberdade individual não tem piores inimigos que aqueles que até hoje têm expressado a pretensão de defendê-la. Frente ao movimento social que se acentua sempre no mais alto grau, a burguesia grita contra ele que o socialismo seria o fim da liberdade individual, e apresenta-se como a protetora apaixonada da liberdade. Mas como as palavras nem sempre expressam os fatos que tencionam representar, faz-se necessário um exame.
É um axioma admitido por todos que cada um deve ter a liberdade de gozar dos frutos de seu trabalho; e esse axioma é certamente para os burgueses a parte o mais essencial do que eles chamam de liberdade individual; eles usam e abusam dela, pois essa liberdade não é um direito para cada ser humano, mas somente um privilégio daqueles que, por habilidade, fraude, ou acaso de nascimento, conseguem monopolizar todos os frutos da humanidade. Desse modo, observando o que acontece na sociedade, nós constatamos que, longe de respeitar o direito de cada indivíduo de dispor dos frutos de seu trabalho, a burguesia tende a tomar tudo para si, para seu próprio benefício, a maior soma possível de produto dos trabalhos do povo; o que ela chama de liberdade individual não é mais para ela que a liberdade de explorar, sem dó nem piedade, o povo trabalhador.
Ao observar essa liberdade totalmente burguesa, nós poderemos deduzir do princípio coletivista a verdadeira liberdade de que cada ser humano terá pleno gozo. Eis o que constitui a base da liberdade individual, é a garantia da existência, que tem a sua origem no trabalho; para que se possa ser livre, faz-se com que o instrumento do trabalho seja garantido para cada trabalhador; ou, está é a principal missão da propriedade coletiva, enquanto que a propriedade individual não admite mais que a concentração dos instrumentos de trabalho num pequeno número de mãos, e que os deserdados sejam completamente dependentes.
2º A proposição que o coletivismo não é mais que a realização de uma igualdade paralisante de todo esforço individual não deixa de ser fundada no que debatemos sobre o que seria a destruição da liberdade individual. Nessa proposição, como na precedente, há, da parte da burguesia, uma forte confusão de palavras. Pois o que eles chamam de “esforço individual” não é mais que a potência de algumas individualidades privilegiadas de fazer valer todas as suas atitudes, suas capacidades pessoais, mas, sobretudo, explorar de modo selvagem aqueles da grande maioria.
A finalidade do coletivismo é o fim de todos esses privilégios, dando a cada um, por uma educação racional de início, para possibilitar a disposição de todos os elementos necessários, a possibilidade de fazer valer todas suas atividades e todas as suas capacidades. Essa igualdade como ponto de partida, dadas condições, permitirá a todas as forças individuais se fazer valer. É verdade que a emulação (a realização desse projeto) resultará na sociedade não mais produzir esses monstros da ambição que, somente tomando, devoram todas as outras individualidades; ao contrário, cada individualidade será inclinada para o desenvolvimento de todos os indivíduos, a emulação não será mais um jogo sangrento onde perecem os mais falhos, mas um jogo saudável onde cada um produz quanto for capaz, sem prejudicar o outro.
3º A acusação posta contra a Internacional de tender a uma partilha das riquezas é certamente a mais absurda. Ela prova de início a bestialidade absoluta da burguesia: como não percebe que acusar uma sociedade de querer partilhar, porque proclama o princípio de propriedade coletiva, seria levantar uma acusação contraditória? Assim, se a Internacional desejasse realizar uma partilha, é evidente que para a ela manter-se-ia o princípio da propriedade individual ampliada; enquanto que, se ela se pronuncia pela propriedade coletiva, ela se declara, por esse fato, inimiga da partilha das terras, dos instrumentos de trabalho. Em l’Almanach pour 1871, nós viemos mostrar o que seria a verdadeira “partilha”; nós não queremos rever os mesmo vampiros ainda existentes, e as riquezas criadas pelo trabalho coletivo continuarem a engordar os bolsos dos capitalistas e seus apoiadores, mantendo o povo a sofrer sempre a mesma miséria.
Se a Internacional admitir como a base do organismo social a propriedade coletiva das terras, dos instrumentos de trabalho, de maneira que eles sejam garantidos a cada trabalhador, ela reconhece, portanto, a liberdade absoluta de os indivíduos, os grupos, se organizarem como eles bem entenderem, de modo que serão aqueles que determinarão o modo da repartição dos frutos do trabalho coletivo em cada associação. Assim, em vez de tender a um comunismo autoritário, o coletivismo assegura perfeitamente aos indivíduos, aos grupos, o direito ao produto do trabalho.
4º Nos resta examinar a última proposição direcionada ao coletivismo, aquela de não ter nenhuma base científica, sendo, portanto, uma utopia.
Por afirmar o princípio da propriedade coletiva, a Internacional, por meio de seus Congressos, fez analisar os diferentes princípios pelos quais a filosofia, a jurisprudência, a economia política, são postas para justificar a propriedade individual. Após uma análise rigorosa, restou um só princípio, que foi o fato da propriedade individual ser uma necessidade social, pois ela é o fundamento da ordem social até hoje. Mas essa necessidade social ainda existe?
Para responder a essa questão, fez-se examinar os fatos econômicos contemporâneos. Portanto, constatamos que há uma concentração mais e mais crescente, nas mãos de uma minoria, ou seja, de todos os capitalistas(1) em geral. Essa potente concentração é uma transformação da propriedade: não é mais o modesto campo que, por necessidade social, tem a propriedade pessoal do pequeno cultivador; não é mais o ateliê que, por necessidade social, é a propriedade pessoal do trabalhador industrial. As companhias financeiras transformaram nosso mundo econômico, e as grandes explorações agrícolas e industriais enviesando e aniquilando, pouco a pouco, o pequeno “camponês” e o “artesão”. Nós não propomos a realização da propriedade coletiva em favor de alguns. E, querendo ou não, nós iremos enfrentar esse dilema: ou a propriedade coletiva realizar-se-á em favor de todos, ou o mundo se tornará a propriedade exclusiva de alguns grandes senhores financeiros.
Não podemos, em algumas páginas, entrar nos detalhes que nos permitiram apurar os fatos precisos desse tipo de análise: pensamos que é o bastante fazer entrever, àqueles que ignoram, o corte científico do coletivismo, e recomendamos, para aqueles que queiram entender os meandros do movimento que nós travamos contra a grande propriedade, a leitura do Manifesto aos Camponeses anunciado na capa do almanaque do ano passado(2).
O que seria mais difícil estabelecer é a realização prática do coletivismo. E, sob a pena de cair num sistema preconcebido e utopista, na fantasia, nós não podemos tomar algumas regras absolutas.
A realização do princípio coletivista depende completamente da marcha dos eventos revolucionários que nossa sociedade é chamada a realizar. Se o princípio do Estado não é destruído na tormenta, nós teremos um comunismo autoritário; mas, se for a Comuna livre que triunfar, será na comuna que se realizará de pronto a idéia coletivista. Ou, se estudarmos as aspirações da classe que a lógica dos fatos chama ao governo da Revolução social, nós poderemos induzir que o princípio da Comuna livre e da livre federação das comunas terminará por ser o princípio político do proletariado.
Após ter, durante séculos, visto perdurar o triunfo do individualismo absoluto, nós não teremos de temer triunfar seu extremo contrário: o comunismo autoritário.
Leia a segunda parte desse artigo
Notas de rodapé:
(1) Pelo termo “capitalistas”, o autor entende aqui igualmente os donos da propriedade fundiária, como se verá. (retornar ao texto)
(2) O Manifesto, redigido em alemão por John. Ph. Becker, e traduzido em francês por James Guillaume, veio aparecer numa brochura em Genebra, no começo de 1870, sobre o título: “Manifesto aos trabalhadores do campo”, publicado pelo Comitê de propaganda das seções alemães da Associação internacional dos trabalhadores. (retornar ao texto)