Começar Pelos Fins - A Nova Questão Comunista

Lucien Sève


1.06 - Da crispação à mutação


Foram, assim, perdidos anos para o debate sincero e investigação plural sobre esta questão de importância capital. Devo dizer que a minha defesa do comunismo começou por não ter também grande repercussão no que iria tornar-se a área dos refundadores onde, aliás, depois, nem todos aceitaram a fórmula arvorada pelo semanário Futurs: "Comunista, de outro modo". Também é verdade que a minha compreensão da questão comunista dava certamente o flanco a muita crítica por volta de 1986-1987. Era já menos o caso, parece-me, em 1990, no primeiro capítulo de Communisme, quel second souffle?, em que o meu pensamento beneficiava da rica elaboração colectiva que o manifesto refundador Urgence de futur iria condensar. A publicação desse livro, de cuja redacção não fiz segredo, não deixou de preocupar um pouco a Direcção do Partido que tinha na manga a melhor das defesas: um livro do próprio Secretário-Geral. Tendo enviado o meu manuscrito em 1 Fevereiro à Editora do partido que entretanto se transformara na Messidor, tive de esperar imenso tempo pelas primeiras provas e depois pelas segundas. Ora acontece que Démocratie, de Georges Marchais, pôde ser redigido durante o mês de Março com pleno conhecimento do meu texto, sem o meu aval, entenda-se, mas sendo mesmo assim publicado em Abril na própria Messidor - quase um mês antes do meu próprio livro - para beneficiar então de uma longa campanha promocional em todo o partido, o que não deixava, evidentemente, grande coisa para o seu tardio e modesto competidor. A obra de Claude Quin, Idées neuves pour sociétés en crise [Ideias Novas para Sociedades em Crise], confiada ao mesmo tempo à Messidor, teve igual sorte. Variante inesperada da palavra de ordem "trabalhar em conjunto", víamos assim, as nossas ideias utilizadas ou vilipendiadas, mesmo antes de publicadas.

Sem que o autor explicasse porquê, Démocratie inaugurava uma mudança conjuntural do discurso da Direcção, em que o comunismo fazia uma entrada em grande, já não subitamente como "ideal", mas como "objectivo", ancorado no movimento real, "perspectiva" aberta pelos antagonismos do capital, e na qual convinha mesmo dar um "segundo alento ao movimento comunista"... Em suma, "embora não tivéssemos falado disso durante tantos anos, continuámos plenamente comunistas". Mas atenção: "Fazer disso objectivo imediato da luta do nosso povo", seria, saibamo-lo, pura "utopia". O próprio Marx o tinha visto muito bem, pelo que afirmava "a necessidade de uma fase transitória", o socialismo: "O comunismo não é para amanhã". Referirmo-nos a ele por palavras não é pois forçosamente uma culpa, mas é evidente que só o "socialismo à francesa" pode orientar a nossa estratégia. Em suma, neste não diálogo de surdos respondiam-me tranquilamente ao lado da questão, persistindo em entender como comunismo apenas uma longínqua sociedade futura, mas de modo algum ao mesmo tempo, como fazia Marx, um processo actual que o visava à partida e sem o depreciar. Numa representação da história inteiramente periodizada à moda antiga, haveria hoje lugar apenas para uma luta defensiva contra o capital, amanhã só para a construção do socialismo, e quanto ao comunismo este não seria ainda situável no calendário. Como se, só para dar um exemplo, a proposta avançada por Paul Boccara - bater-se sem demora a fim de inventar e impor um vasto sistema de "segurança de emprego e de formação", dando início à superação parcial do mercado de trabalho e do trabalho assalariado capitalista - não ilustrasse a possibilidade e até a urgência em dar início, sem qualquer ingenuidade, a batalhas imediatas de desígnio autenticamente comunista. Que fosse evidente poder fazê-lo, e que nada fosse sem dúvida, mais indicado a uma força política que se pretende revolucionariamente em sintonia com os dramas colossais e as possibilidades não menos imensas do nosso tempo, eis o que, inferia-se da leitura de Démocratie, parecia ainda não suspeitar em 1990 o quinto andar da Place du Colonel Fabien.

Acusar-me-ão de ser severo e, em todo o caso, muito seguro de mim? Á partida, não era nem uma coisa nem outra. Ainda em 1981 defendia publicamente Georges Marchais, além do que seria razoável, contra as críticas em que o via submerso (cf. Anexo II). Quanto à pista de reflexão que comecei a expor perante o Comité Central em 1984, prezava-a demais para não estar plenamente receptivo a qualquer crítica que fosse capaz de me obrigar a traçá-la melhor. Em vez disso, tive direito às mais infamantes interpretações da minha postura, a que se sucedeu a fuga a qualquer verdadeiro debate, a lengalenga de objecções desarmantes, acompanhadas do recurso a práticas de direcção sobre as quais considero que fui bastante discreto... Por ter levantado grandes questões incomodativas fui tratado sem escrúpulos como adversário e, por mais de uma vez, e contra toda a evidência, como inimigo, coisa pela qual nenhum dos dirigentes de então me dirigiu uma única palavra de arrependimento. Seguro de mim? Como não sê-lo, vendo o que me opunham, embora tentasse manter-me atento à eventualidade de críticas pertinentes? Severo? Levei tempo demais a compreender que era absolutamente necessário sê-lo muito menos com os indivíduos - desejaria fazê-lo sentir mesmo nas passagens mais asperamente críticas deste livro: qualquer comunista é para mim, antes de mais, um camarada - do que para com um sistema que privava o militante de qualquer possibilidade efectiva de intervir nos assuntos que lhe dizem mais directamente respeito. Esta é uma inverosímil contraprodutiva forma-partido, a cuja necessária e possível superação será dedicado o último capítulo; e embora se diga muitas vezes o contrário, creio que o PCF, apesar das suas muito temíveis especificidades, não é sem dúvida, diga-se o que dele se diz muitas vezes, o exemplo mais extremo, porque nele o pior não abafou todo o melhor, só uma grande parte...

Seja como for, o Partido ainda não morreu, a despeito de tantos prognósticos peremptórios. E sobre a questão maior que aqui me ocupa, há que dizer que depois de 1994 o contributo do movimento de pensamento refundador foi finalmente tomado em consideração de modo potencialmente revigorante que chegue para dar um segundo alento ao comunismo francês - potencialmente, mas ainda não necessariamente. Intitulando em 1994 o seu primeiro livro Communisme: La mutation [Comunismo: a Mutação], Robert Hue, o novo Secretário Nacional, ostentava a sua vontade de reabrir a reflexão sobre a perspectiva histórica. Meses depois - o debate geral não teve a amplitude necessária - o XXIX Congresso ratificava uma nova maneira de encarar as coisas. Sem considerar obsoletos os objectivos para que remetia a estratégia anterior, o socialismo encontrava-se, por seu turno, inteiramente recoberto por um discurso inédito sobre o comunismo, mais para lhe exaltar o valor humanista, diga-se, do que propriamente para lhe precisar o conteúdo histórico. Falando do desígnio comunista, aquele discurso - a meu ver demasiado implicitamente - afastava quer o adiar para as calendas gregas, quer a divisão do caminho em etapas: é desde já que este desígnio deve tornar-se operativo ao inscrever no limite dos possíveis actuais mudanças reais que transcendem já esse limite. Caracterizando esta nova concepção do processo revolucionário como superação do capitalismo - palavra exposta aos piores mal-entendidos à falta de suficiente esclarecimento teórico, inclusive filosófico - recusava muito justamente a utopia devastadora das abolições por decreto e das inovações sem bagagem, para remeter a transformação social para a fecunda complexidade dialéctica do processo em que verdadeiramente mudam as coisas. Aqui está o que, sem chegar para constituir uma verdadeira reviravolta, assinalava alguns notáveis avanços. Mas passar de um discurso de tonalidade temporariamente nova sobre o comunismo a uma política duravelmente inovadora, que dê sentido mobilizador a este vocábulo, exige o mais inventivo trabalho de pensamento e de acção. E antes do mais, para fazer compreender claramente o que neste caso está em jogo. Porque não esqueçamos que, coisa inacreditável e todavia flagrante, nunca o Partido Comunista se tinha explicado até aqui sobre o comunismo. Porque Marx não deixou qualquer tratado global, para além de cem profundas indicações sobre o tema, apenas escaparam ao esquecimento dos partidos que dele se reclamam raras fórmulas disjuntas, todas a cheirar à mais completa utopia, do género "a cada um segundo as suas necessidades", ou "definhamento do Estado". Quando em 1990 tentei restituir à ideia comunista marxiana a sua impressionante coerência e pertinência, creio que não estou em erro se disser que, em várias dezenas de anos, nenhum livro, ou sequer artigo na literatura do PCF, a fortiori nenhum documento, tinha tratado a questão com um mínimo de seriedade. O que incansavelmente repetiram aos comunistas foi o socialismo de vulgata, e só ele. De onde este fabuloso resultado, mas em suma tão compreensível: no XXIX Congresso alguns militantes puderam suspeitar, no declarado retorno ao comunismo, de um inquietante "abandono do socialismo!". Como se, indiferente às exigências precisas de uma real saída do capitalismo, o comunismo não fosse mais que vaga proclamação de um humanismo mole... e, em nome da firmeza relativamente às posições do marxismo-leninismo - que nunca foi mais do que desnaturação estalinista do pensamento marxiano e leniniano - assistiu-se mesmo a este excepcional espectáculo: a intransigente defesa que alguns fizeram da socialização dos meios de produção e de troca, graças à conquista operária do poder político contra a plena revalorização do comunismo, sem minimamente tomarem consciência de assim estarem a refazer a um século de distância a operação historicamente constitutiva da social-democracia aquém de Marx! Ao que nós chegámos! Isto diz muito sobre a urgente necessidade de empreender finalmente a tarefa, mesmo que elementar, de clarificação teórica fundamental.

No entanto, como poderemos nós explicarmo-nos melhor sobre o comunismo sem começar a aplicá-lo? Porque a grande questão está aqui: se o Partido Comunista nunca se explicou verdadeiramente sobre o comunismo, é porque nunca experimentou fazer política com ele. Era este o fundamento que a sua relegação para o reino do "ideal" reconhecia - terminologia muito significativamente retomada por Arlette Laguiller (cf. Le Monde, 7-8 de Fev. 99): a mais completa impreparação para dele tirar alguma coisa de real. Ora, insistamos: não é num futuro mítico que se vai tratar, não se sabe muito bem como, de acabar com o trabalho assalariado capitalista e o Estado de classe, com a fragmentação do indivíduo e com a consciência social alienada, não havendo entretanto mais nada a fazer, mesmo que seja a coberto de inconsequentes incantações revolucionárias, do que defender-se contra os golpes baixos da finança (como se a melhor defesa não fosse uma ofensiva bem pensada), e acumular forças para mais tarde (como se as forças existissem independentemente das transformações que elas demonstram ser capazes de impor). Reactivar o desígnio comunista significa romper enfim com o perpétuo adiamento dos combates essenciais, de que a perspectiva do socialismo se tinha tornado sinónimo para empreender sem mais delongas e em todas as frentes as tarefas cruciais da superação das regulações capitalistas e do trabalho-mercadoria, das dominações estatistas e da consciência mistificada, das mil e uma relações humanas em que se produz e reproduz a alienação histórica. Está quase tudo por inventar, para construir deste modo uma autêntica estratégia comunista tão realista nos objectivos imediatos que se impõe, quão sugestiva nos imensos fins que lhe conferem o seu sentido. Fora desta invenção teórico-prática, comunismo continuará a ser uma palavra oca. Pelo contrário, encetemos, tacteando, esta via seguramente difícil em que os actores do quotidiano começam a ver o objectivo comunista dos seu actos e tudo pode começar a modificar-se no que terá sido, de maneira tão infrutuosa apesar de tantos méritos, o combate revoucionário do século xx.

[pgs 056_061. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]


Inclusão 02/08/2002