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Porque cinquenta anos de vida militante me convenceram do que considero ser a pouca importância que os políticos contemporâneos dão ao teórico, tirando raras excepções, pensei um pouco nos motivos disto. Um deles é cultural; em grego, theoria quer dizer contemplação. Daí até identificar o teórico com o especulativo, ao mesmo tempo um estéril construir de castelos na areia e prejudiciais e complicativos esmiuçares, vai um pequeno passo. É que se não esmiuça a teoria tão finamente como seria necessário. A mesma palavra grega theoria quer dizer primeiro procissão e, na ordem intelectual, exame continuado, concepção sistemática, acção de tornar coerente: a própria essência da política. Aqui está por que é que toda a política de baixo teor teórico - inclusive filosófico - acaba por se desmoronar... por falta de travejamento conceptual. Mas isto não é tudo. Sem uma teoria forte não há verdadeira crítica desmistificadora, nem depois política revolucionária suficientemente motivadora: ponto capital quando, como hoje, há que incentivar o levantamento em massa dos opositores virtuais ao capitalismo. Tocamos aqui no principal aspecto do comunismo que ainda não comentei, a desalienação das consciências, ela própria frequentemente considerada mítica, em apoio de uma conhecida tese de Althusser: a ideologia "existirá sempre", mesmo na sociedade comunista, e "nunca mudará de funções" (Sur la philosophie [Sobre a Filosofia], Gallimard, 1994, p. 70; cf também Pour Marx). Não podemos, como é óbvio, discutir aqui a concepção de ideologia de Althusser, digamos tão só que, na forma há instantes citada, ela nos faz correr o risco de uma perigosa confusão. Isto porque a complexa noção de ideologia tem pelo menos dois sentidos inteiramente diferentes: representação imaginada da vivência e representação mistificada do real. Como o diz Hegel na Ciência da Lógica (Science de la Logique, tomo 3, Aubier, 1981, p. 213), "a vida ordinária não é conceito mas sim representações". E nas representações através dás quais eu vivo as minhas relações com o mundo, com os outros, comigo mesmo, entram necessariamente afectivo, avaliativo, optativo; numa palavra subjectivo, inclusive inconsciente. Nesse sentido vivemos efectivamente sempre não na conceptualidade mas sim na ideologia, com a sua parte variável de imaginário, talvez até de ilusório, o que contudo não equivale de modo algum a um inevitável engano em relação ao real. Uma coisa muito diferente é o que Marx tem em vista na sua constante crítica da ideologia no sentido histórico-social: o processo objectivo pelo qual, particularmente na sociedade burguesa, a realidade se apresenta a todos sob uma forma invertida, aparência fenoménica que, sem nossa consciência, desnatura nas suas bases as relações essenciais (é assim que o salário se apresenta como o evidente preço do trabalho fornecido, o mercado como reino da liberdade, a desigualdade social como um facto da natureza). Ligada nas suas formas e conteúdos a estruturas sociais determinadas, esta representação mistificada não é de maneira alguma uma invariante histórica. No próprio mundo actual está fartamente provado que se pode, por pensamento e por actos, desfazer essa "inversão" das relações reais e assim dissipar, até certo ponto, as falsas aparências da economia e da política, do racismo e do sexismo. Por maioria de razão esse será o caso quando os homens se tiverem reapropriado dos seus poderes sociais. A desalienação das consciências não é um mito histórico.
Ora, esta tarefa é mais urgente do que qualquer outra. E isto porque nunca a dominação do capital funcionou tanto na base da mistificação ideológica. Primeiramente porque a alienação chega a cumes nunca vistos em todos os domínios. À medida que, por exemplo, cresce a bolha financeira, mais se afirma a fantástica aparência objectiva segundo a qual, ao contrário do que já Aristóteles tinha apreendido, o dinheiro seria capaz de se multiplicar sozinho, crença que impede de compreender o que quer que seja das grandes questões económicas. Depois, e sobretudo, porque a grande máquina de enganar consciências por conta das forças dominantes se aperfeiçoou a um ponto sem precedentes. O discurso político-mediático dominante ganha pontos à publicidade de topo de gama quanto ao refinamento na maneira capciosa de dizer as coisas. Na utilização que hoje dela quase constantemente é feita, a televisão apaga o conceito sob a imagem e alimenta em permanência uma credulidade fenoménica e histórica sem fundo. Contra muitos professores, a escola que temos não desenvolve as capacidades críticas altamente cultivadas que uma real soberania do povo exigiria. E assim sucessivamente. O cidadão vulgar vive pois uma actualidade incrivelmente enganadora sob as aparências exteriores da evidência imediata, seja durante a mais banal das informações diárias; seja nas grandes encenações excepcionais, como as guerras do Golfo ou do Kosovo. Como admirar-se, sendo assim, do formidável hiato que persiste entre a multiplicação dos motivos de luta e o ainda demasiado pequeno número de combatentes efectivos? O contrário é que seria milagroso. Daí a grande importância daquilo a que chamaria a batalha das representações: em todos os momentos e em todos os domínios, desmontar a impostura, tornando manifestos, na simplicidade da forma a que só a penetração teórica conduz, os processos em que são engendradas as falsas aparências factuais e nocionais e, por esse meio e simultaneamente, formar a consciência vigilante, pôr de novo direita a imagem do real e voltar a abrir as vias da passagem à acção.
Trabalho decisivo e que pode começar pela crítica da linguagem, quando por exemplo, como o nota Robert Hue em Communisme, un nouveau projet [Comunismo, um Novo Projecto], quem "pede um emprego" se vê viciosamente transformar em quem "procura um emprego", quando o jovem francês, filho de pais imigrados, se vê transformado em "imigrado de segunda geração". Desenvolvida, a contestação do discurso do dia-a-dia toca no fundo das coisas, como em Banlieue, banlieue, banlieue [Subúrbios, Subúrbios, Subúrbios] (La Dispute, 1997), em que Alain Bertho, põe a nu os truques de magia feitos com palavras como "subúrbio" ou "excluído",como em Qui est le juge? [Quem é o Juiz?] (Fayard, 1999), em que Daniel Bensald revela o que esconde o entusiasmo pelo "tribunal da história". Não há grande assunto da actualidade, anunciador, de uma grande manobra do patronato ou do governo, que não mereça esta salutar desmontagem. o assunto das reformas é exemplar, deste ponto de vista. Num tom que não admite réplica, martelam-nos que tudo depende de um facto tão brutal como teimoso: o choque demográfico, irrevogavelmente inscrito na nossa pirâmide etária. Em 2040, dado o envelhecimento da população francesa, o peso das reformas que os 20-59 anos terão de suportar duplicará... Para esta flagrante impossibilidade, só três remédios existem, de que se poderá apenas discutir a dosagem: atrasar a idade da reforma, diminuir as pensões, recorrer aos fundos de pensões. Com esta representação na cabeça, cortam-se à partida as asas a qualquer luta. Com a desconstrução empreendida à esquerda da esquerda, por exemplo na brochura da "Fondation Copernic", Retraites, l'autre diagnostic [Reformas, o Outro Diagnóstico] Junho de 1999; cf. também o "dossier" "Reformas e fundos de pensões" na revista La pensée, nº 319, Julho-Setembro, 1999), tudo muda. O pretenso facto do choque demográfico? Encenação baseada num duplo arbítrio, que consiste em esconder o peso decrescente dos menores de 20 anos e em extrapolar até 2040 a proibitiva taxa de desemprego actual: feitas estas duas correcções, a anunciada catástrofe resume-se a uma evolução que há que preparar. Aumentar a idade do acesso à reforma e reduzir o montante das pensões? Seria precisamente agravar o desemprego e diminuir o poder de compra, e assim deteriorar a situação de base que se pretende melhorar. Ir para os fundos de pensões? Sem falar das devastações que faz, onde quer que operem, a sua gestão obsessivamente submetida à preocupação com a rentabilidade de curto prazo, será que se mede o perigo que haveria em desestabilizar o fiável sistema por repartição, para fazer depender o pagamento das reformas de todos os imponderáveis do mercado financeiro? Só uma vez feita esta desmistificação prévia, o muitíssimo complexo problema das reformas pode ser utilmente debatido. Exemplo eloquente das campanhas críticas que se trata de encetar em grande estilo e em todos os terrenos, a partir do trabalho teórico fundamental, através de iniciativas iconoclastas relativamente à comunicação social, de inventivos esforços da imprensa contestatária, de um relançar das batalhas a favor do livro crítico - bem precisa delas - de tudo o que pode tornar a vida impossível aos vendedores da banha da cobra das falsas aparências. Para transformar o mundo, urge transformar a representação do mundo.
Mas trata-se de um combate que é necessário ser capaz de vencer também contra si próprio: desmistifica-se mal o que é quando nos iludimos demais sobre o que somos. Foi assim que o PCF exibiu durante muito tempo um auto-retrato dos mais lisonjeiros: vanguarda da classe operária, partido dos fuzilados, campeão das grandes causas humanas... Descansado sobre esta imagem, onde nem tudo era falso, claro está, julgou-se isento da reflexão sobre as características menos amenas da ciência política, sobre as interpelações incomodativas de uma história sincera, sobre os testemunhos acusadores de antigos militantes. Nos anos oitenta, acabou mesmo por cegar para a baixa estrutural dos seus resultados eleitorais, por dissimular a queda impressionante dos seus efectivos, por atribuir os seus problemas de toda a ordem à malevolência, aliás frequente, da comunicação social, num contexto histórico-social de que dava, e se dava, uma representação unilateralmente sombria, até acabar por se encerrar na ideologia, no duplo sentido da palavra: vivência ilusória e conceito mistificado. Desconstruir esta representação falaciosa, para fazer um inventário crítico da forma-partido real de que até agora dependeu e interrogar-se a fundo sobre o tipo, muito diferente, de força organizada que exige um comunismo de depois do "comunismo": este é o capítulo que deve ainda abordar a reflexão sobre a nova questão comunista - e não é um capítulo menor.
[pgs 149_154. Começar pelos Fins - a nova questão Comunista; Lucien Séve; Campo das Letras Editores, S.A, 2001. www.campo-letras.pt. [email protected]]
Inclusão | 02/08/2002 |