Stálin

Emil Ludwig


Capítulo II — Conspirações e Perseguições


CAPA

A idéia básica do sistema era tirada de Marx; mas foi primeiro adaptada para a Rússia por Lenine; não pode haver liberação dos camponeses sem a liderança dos operários! Era entre as massas da cidade, os operários das fábricas, os que nada possuíam, que a Revolução tinha de ser preparada. Sempre que os camponeses russos se revoltaram, no século XIX, a Revolução fracassou por faltar-lhe a liderança de um proletariado de cidade; e quando, em 1905, os operários se levantaram, não tinham os camponeses com eles.

Até essa época, todos os líderes, em todos os países, tinham sido intelectuais; Marx, Engels e Lassalle, três intelectuais alemães, tinham ministrado o preparo espiritual para a Revolução russa; depois deles veio Lenine, o filho de um oficial tzarista da pequena nobreza, e Tchitcherin. Foi só com Stalin, Gorki, Kalinin, e seus camaradas, que um proletário nato entrou na liderança; mas tinham muito que aprender para preencher os claros da sua educação.

Stalin aprendeu alguma coisa no período de sua atividade em S. Petersburgo. A ordem social estava tão solapada ali, que este perpétuo fugitivo estava sendo escondido por um quartel-mestre da Guarda Imperial montada! Houve períodos, durando semanas, em que dormia cada noite numa casa diferente e nem sempre numa cama.

Uma camarada descreveu mais tarde sua vida em S. Petersburgo por esse tempo:

"As reuniões de operários de fábricas terminavam sempre muito tarde porquanto as longas horas de trabalho tornavam impossível começá-las cedo. Saindo dessas reuniões, Stalin passava algum tempo numa das duas tavernas, que ficavam abertas até às duas horas da manhã. Ficava sentado lá, diante de uma xícara de chá, até a hora de fechar. Dessa hora até às quatro da manhã, quando as tavernas dos cocheiros de carros de aluguel se abriam, ficava andando pelas ruas. Tinha que enfrentar dois perigos: o risco de ser preso pela polícia e o clima rude de S. Petersburgo. Na taverna dos cocheiros, aquecia-se com um copo de chá, depois cochilava até às seis ou sete, quando ia para casa de um camarada ou simpatizante dormir um pouco."

Ele mesmo escreveu sobre o que aprendera no S. Petersburgo subterrâneo:

"Lembro-me do ano de 1917 quando, depois de minhas peregrinações de uma prisão e de um lugar de exílio para outro, fui transferida, por vontade do Partido, para Leningrado. Lá, na sociedade dos operários russos, e em contacto com o camarada Lenine, o grande mestre dos proletários, de todos os países, no meio da tempestade de formidáveis conflitos entre o proletário e a burguesia, no meio da guerra imperialista, soube, pela primeira vez, o que era ser um dos líderes do grande partido das classes trabalhadoras. Lá, na sociedade dos operários russos — os libertadores de todas as nacionalidades oprimidas e pioneiros da luta dos proletários em todas as nações e entre todos os povos — recebi meu terceiro batismo revolucionário de fogo. Lá, na Rússia, guiada por Lenine, assenhoreei-me da arte da revolução".

Lenine, que do exílio no estrangeiro não só expôs sua teoria ao congresso do partido, como dirigia as atividades internas até aos menores detalhes, mandava seu jornal, Iskra — "A Fagulha" — para a Rússia, escondido nas tampas das caixas de cigarros, no forro dos chapéus ou em cápsulas nos barris de vinho; o periódico era impresso em tipos minúsculos e no papel mais fino possível. Chegou também ao Cáucaso, que com os seus sentimentos anti-russos estava pronto para uma revolução; foi lá, nessa época, que o jovem Gorki, trabalhando na estrada de ferro sob seu nome de família, Peshkov, e o jovem Kalinin, que era torneiro, conheceram Stalin, mais moço do que eles.

Stalin encontrou-se com Lenine em dois congressos. Fala com orgulho de uma carta que este escreveu a um terceiro camarada elogiando seu trabalho e que ele lhe mandou para a Sibéria. Em todo caso Stalin não teve papel importante nesses congressos, realizados fora da Rússia, em que o jovem partido se dividiu em menchevistas e bolchevistas. Como delegado, não fez nenhum discurso e Lenine pouco reparou nele ao princípio.

Ele, porém, teve uma inesquecível impressão de Lenine.

"Não sou mais do que um discípulo de Lenine, e não quero ser conhecido senão assim",

disse-me Stalin vinte anos depois e assim se tem manifestado nos seus discursos.

Por muito tempo Stalin caracterizou-se pela sua voluntária eclipsação, por trás, sempre, de Lenine. Hoje, a propaganda de Stalin põe esses dois homens ao lado um do outro, e isso é óbvio que deve ser feito com o seu consentimento. Como Stalin, com vinte e seis anos de idade, conheceu Lenine, com trinta e seis, num congresso na Finlândia, foi subsequentemente contado pelo próprio Stalin:

"Eu esperava a águia do partido, e esperava um homem grande, um homem que se elevaria, mesmo fisicamente, acima dos outros; sim, imaginava-o um gigante. Com surpresa, vi um homem abaixo da estatura mediana, que não se distinguia em coisa alguma dos demais. Um grande homem gosta de chegar tarde às reuniões, de maneira que a impaciência do auditório aumente e ele possa ouvir, ao entrar, de todos os lados, "Psiu! Silêncio! Aqui está ele!". Mas encontrei Lenine lá muito antes dos outros; estava sentado a um canto, conversando com um delegado sem importância. Esta simplicidade e modéstia, que me impressionou imediatamente, esse desejo de não atrair a atenção ou mostrar superioridade, era um traço saliente no novo chefe e estava conforme às massas humanas simples, que estavam começando a educar-se."

Durante um de seus raros encontros em Viena, Lenine sentiu prazer em jogar xadrez com Stalin, num dos cafés. É para lastimar que ninguém tenha fotografado a cena! Essa fotografia teria sido inestimável para a psicologia; os cérebros de ambos estavam certamente trabalhando, mas não com a habitual diária e exaustiva tensão. Os homens deviam sempre ser fotografados quando entretidos nas suas distrações.

Ao passo que a natureza reservada e inteiramente prosaica de Stalin se sentiu atraída pela simplicidade de Lenine, ficou alheada e sentiu mesmo repulsa, na mesma reunião, pela brilhante presença de Trotsky, que tinha tudo o que faltava em Lenine. Na verdade, há uma semelhança entre os discursos de Lenine e de Stalin: certa sequidão comum a ambos. Nenhum deles gesticula quando fala; na realidade, Lenine gesticula muito mais raramente do que nas suas fotografias oficiais. No jogo fisionômico, os dois se assemelhavam muito mais um ao outro do que a Trotsky com sua personalidade insinuante. Mas Lenine possuía dedicação bastante para atrair para si esse generosamente dotado colaborador, enquanto que, nesse período, Stalin devia sentir-se inferior na presença de Trotsky.

O êxito da Revolução russa e o fracasso da Revolução alemã, podem ser parcialmente explicados pelo fato de que, na Rússia, existia, havia vinte anos, um constante intercâmbio entre os líderes exilados e os líderes no local, ao passo que o governo alemão não exilava ninguém e prendia muito poucos. Dos métodos humanos do Império alemão, que poupava os adversários, pelo menos depois de 1880, resultou o fato de que, quando o domínio do Kaiser ruiu, em 1918, não houve regresso de exilados, nem mártires libertados para espalharem as chamas da Revolução. Esta foi uma das razões da fraqueza e curta duração da República de Weimar, que se deixou derribar por Hitler. Ao contrário disto, a crueldade do regime tzarista na Rússia foi um preparo para a Revolução, tanto internamente como no estrangeiro.

Stalin, como soldado no exército de Lenine, que entre 1900 e 1919 transmitia suas ordens do estrangeiro e preparava todas as campanhas, adquiriu importância lentamente durante esses anos; e até à Revolução nem uma vez apareceu no primeiro plano. Quando lhe perguntei se, na sua opinião, um revolucionário podia preparar-se melhor no seu país ou no estrangeiro, Stalin não me respondeu sim ou não, mas expressou-se do seguinte modo:

— Considero Lenine uma exceção. Muito poucos dos que viviam e trabalhavam na Rússia estavam tão perfeitamente ao par de tudo o que ocorria como Lenine no estrangeiro. Visitei-o em 1907, 1908 e 1912 e vi as pilhas de cartas que recebia diariamente da Rússia. E, contudo, ele próprio considerava uma grande desvantagem nunca estar na Rússia. Os outros, os que ficavam aqui, prestavam grandes serviços: por cada homem que tínhamos no estrangeiro havia duzentos trabalhando no país. Hoje, temos no nosso Comitê Central, que se compõe de setenta membros, três ou quatro que nunca estiveram além das fronteiras russas. Mas, ao par disso, temos aqui camaradas que viveram vinte anos em Berlim e nos podem dar uma resposta precisa a uma pergunta sobre as condições na Alemanha.

A vida de Stalin na Rússia era muito mais horrível e perigosa do que a de Lenine no estrangeiro. Foi por essa época, 1905, que a primeira Revolução russa fracassou, sem outro resultado além de um Parlamento de fachada, um pequeno aumento nos salários e uma pequena melhora na sorte dos operários. E mesmo esse pouco foi devido à derrota na guerra russo-japonesa. Ao mesmo tempo, houve uma intensificação na perseguição dos primeiros socialistas e bolchevistas, não obstante ambos esses partidos estarem representados no Parlamento pelos seus delegados devidamente eleitos, que podiam falar aberta e livremente pela primeira vez na história do país. Foi precisamente nesse período da chamada liberação, entre 1905 e 1909, que o número de condenações políticas subiu de 85.000 para 200.000 por ano. Existiam então na Rússia as chamadas "Centenas Negras" e "Fanáticos Brancos" que usavam máscaras pretas. O governo empregava a violência e medidas ilegais, como fazem os ditadores dos nossos tempos. Era perfeitamente natural para os grupos radicais revidarem na mesma espécie. Em casos tais, é muito difícil distinguir-se entre causa e efeito. Nenhum historiador pôde jamais dizer quem disparou o primeiro tiro numa revolução. Em lugar de discutir se foram os pretos ou os brancos, os anjos ou os demônios que começaram a atirar, seria bom compreender que em todos os casos é o espírito da histeria que dispara o primeiro tiro.

Entre os métodos violentos a que recorreram os radicais, estava o de obter dinheiro para fins partidários por meio do roubo. O mais famoso desses roubos a mão armada foi levado a efeito pelo próprio Stalin. No dia 26 de Junho de 1907, houve uma súbita explosão de tiros de revólver e bombas no principal boulevard de Tiflis, homens e cavalos ficaram mortos no asfalto e $175.000, dinheiro do Estado, tinham desaparecido de um auto. Esse processo era conhecido por "expropriação" ou "ex" simplesmente, e já tinha sido praticado, com êxito, em outras ocasiões.

Stalin, que era membro de alta categoria no partido, representou o mesmo papel de um general numa batalha; planejou e preparou o ataque, e levou-o a efeito com oito camaradas, dois dos quais eram mulheres e pertenciam ao Partido Social Democrático. Kamo, o líder, e ladrão romântico par excelíence, tinha recentemente perdido um olho numa tentativa semelhante fracassada; estava ainda doente e pálido quando chefiou o ataque. Os conspiradores sabiam que o novo pacote de notas, na importância de 250.000 rublos, devia chegar de S. Petersburgo para o correio de Tiflis de onde seria retirado por militares num carro protegido, e transferido para o Banco do Estado. Um membro do bando ficou numa esquina do boulevard e, quando o carro rodou, fez aos outros o sinal, que consistia em abrir um jornal.

Então, de súbito, as bombas voaram e os soldados e a polícia caíram na rua movimentada àquela hora. Um homem saltou para a frente e jogou outra bomba no meio dos cavalos; outro, disparando o revólver, saltou no carro, apanhou o pacote de dinheiro e desapareceu. Esse pacote foi depois levado para o gabinete do diretor do Observatório e depositado lá. O astrônomo, cuja mente estava nas estrelas e não em dinheiro, não tinha a menor idéia do enorme tesouro que estava perto dele.

Os assaltantes não deixaram vestígio algum. Pessoas alheias ao assalto foram presas e os verdadeiros perpetradores do ataque ficaram desconhecidos até onze ou doze anos depois, quando Lenine ordenou que o caso fosse investigado, a pedido de um grupo político. Como os números das notas roubadas tivessem sido espalhados por todo o mundo, havia a possibilidade de que certos bolchevistas, que tinham recebido algum desse dinheiro para despesas do partido e estavam ainda no estrangeiro, pudessem ser presos, mesmo depois de tanto tempo.

Lenine, gracejando, chamou Kamo "o bandido do Cáucaso", porque este realmente se assemelha aos "salteadores nobres," cujo tipo original aparece nas antigas baladas de todos os povos. Quando um crime é cometido a serviço da liberdade e da justiça, o senso público de moralidade parece suavizar-se com a passagem do tempo. Cem anos depois de um incidente como esse, os poetas e trovadores com prazer esquecem as vítimas de seu herói, mesmo se tiver sido um assassino. A história do mundo antigo está cheia desses exemplos.

Depois de uma série de atos fantásticos de violência, sempre a serviço do partido, esse mesmo Kamo foi, finalmente, preso e condenado à morte quatro vezes. Na prisão, mandou o seguinte bilhete ao seu vizinho de célula:

"Estou perfeitamente calmo. O capim já devia estar com seis pés de altura sobre minha sepultura. Mas gostaria de tentar a sorte novamente. Veja se encontra um meio de fuga. Quem sabe se um dia ainda nos riremos dos nossos inimigos? Estou a ferros. Faça o que puder; estou pronto para tudo."

Os juízes sentiram tanta simpatia por essa fantástica personagem que demoraram o andamento do processo até que um jubileu da família imperial trouxe com ele uma anistia geral e Kamo foi só condenado a vinte anos de prisão. Mas, muito antes de acabar de cumprir sua sentença, foi libertado pela Revolução e iniciou uma nova carreira.

Contamos esta história para mostrar em que companhia e em meio de que aventuras Stalin passou sua mocidade. Homens da sua têmpera têm um modo diferente de ver a vida humana, tendo arriscado a própria vida tantas vezes.

Tendo esta história sido suprimida na sua biografia oficial, não obstante estar definitivamente estabelecido ter sido ele a cabeça dirigente desse roubo, interroguei-o a respeito, esperando que negasse por palavras, mas que poderia obter a verdade pela expressão do seu rosto.

— Na Europa — disse-lhe — o senhor é descrito ou como o "sanguinário tzar" ou como o "bandido da Geórgia". Contam-se histórias de assaltos a bancos e semelhantes, que se diz que o senhor organizou em benefício do partido. Gostaria muito de saber até onde podemos crer nelas.

Stalin começou a rir-se com aquele seu modo pesado, pestanejou diversas vezes e pôs-se em pé pela primeira e única vez na nossa entrevista de três horas. Dirigiu-se, com os seus passos um tanto arrastados, à secretária, e trouxe-me um panfleto de cerca de trinta páginas: sua biografia em russo; mas não continha nada, naturalmente, sobre minha pergunta.

— Encontrará todas as informações necessárias aí — disse-me e riu-se maliciosamente para si, porque me lograra. A pergunta sobre o roubo do Banco era a única a que não desejava responder, salvo até onde deixar de responder fosse uma resposta.

Seu modo de escusar-se proporcionou-me oportunidade para um novo exame mais profundo do seu caráter. Poderia ter negado; poderia ter confessado ou simplesmente descrito tudo como uma lenda. Mas, em vez disso, agiu como um verdadeiro asiático e até mesmo com o seu sorriso parecia um mongol. Não muito antes do incidente de Tiflis, em 1906, um outro homem, que deveria ser depois líder de uma nação, isto é, Pilsudski, levara a cabo um latrocínio muito mais violento contra um trem russo.

Que Stalin não era um escritor nato, ao contrário de Trotsky, demonstra-o o fato de não ter escrito seu primeiro livro — aliás um panfleto — até aos trinta e quatro anos. Seu principal interesse estava em resolver o problema que o ocupara por tanto tempo e que mais tarde o levou ao seu grande sucesso. O título "O Marxismo e a Questão Colonial" é um título tão ponderoso e pretensioso como em geral o estilo de Stalin. Nele, garante teoricamente a cada nação o direito de auto-determinação, que reafirmou vinte anos depois na sua Constituição. Mas, nele, leva esse direito ao ponto de permitir a secessão e a formação de Estados independentes — diferindo assim, apesar de unicamente em teoria, da concepção de Lincoln. Na Europa, essas idéias eram revolucionárias, numa época em que o tão apregoado nacionalismo assumia proporções cada vez maiores até sua coerção levar à guerra e à dissolução da monarquia austríaca. Lenine aplaudiu o autor quase desconhecido e escreveu a Gorki:

"Agora temos um esplêndido georgiano, que reuniu e analisou todo o material."

Em Junho de 1913, um ano antes de rebentar a Guerra Mundial, Stalin foi exilado para a Sibéria pela sexta vez, mas agora para uma região terrível, de onde raramente voltava um exilado vivo. Kuleika, na região de Turukhansk, fica vinte milhas ao sul do Círculo Ártico; um lugar desolado que consiste só de três casas e só fica livre de neve três meses em cada ano. É a estepe gelada onde um homem tem que viver como um Robinson Crusoé do norte. Lá, Stalin passava a maior parte do dia caçando e pescando para obter o que comer e mover-se. Depois rachava lenha para aquecer-se e cozinhar os alimentos. Fez suas próprias redes, seus anzóis e também o machado com que abria buracos no gelo.

Uma exilada política descreve a vida dessa gente:

"Como regra, só criminosos comuns eram exilados para a região de Turukhansk; mas ultimamente o governo tzarista começou a mandar também presos públicos, visando isolá-los completamente do movimento revolucionário. Não é, pois, acidental, que um grupo de bolchevistas e membros do Comitê Central, camaradas de Stalin, Spendarian e Sverdlov, tenham sido despachados para Turukhansk. À frente do grupo estava Stalin. De lá, esse grupo, junto com os bolchevistas, exilados, mantinha contacto com Lenine, com a organização dentro da Rússia e individualmente com camaradas ativos entre os operários e no Exército.

"Todos os meios possíveis eram empregados. Cartas eram recebidas por prisioneiros que chegavam e enviadas pelos que voltavam do exílio. Marinheiros nos navios, pescadores e mesmo comerciantes serviram de intermediários. As cartas eram cuidadosamente codificadas e passavam por numerosos endereços secretos antes de chegarem ao seu destino. A cada passo surgiam dificuldades exaustivas e graves riscos. Os exilados eram espalhados por grandes áreas numa região quase impraticável e eram rigorosamente vigiados. Não obstante, nenhum afrouxava e o trabalho continuava.

"A aldeia de Monasterskoye, nessa região, era usada pelos exilados para ponto de reunião. Além das visitas ilegais, Stalin tinha artes de encontrar pretextos legais para visitar a aldeia. Por esses meios podia centralizar e regularizar o trabalho.

"Lembro-me de 1914, quando rebentou a guerra imperialista e Stalin tomou uma posição firme contra os indecisos, abalados pela propaganda dos patrioteiros. Pedia sem hesitar a derrota da autocracia tzarista. Seu prestígio entre os exilados era tal, que essa posição firme assumida por um revolucionário merecedor de tanta confiança, foi o bastante para resolver dúvidas e animar os vacilantes.

"O recebimento de instruções de Lenine era um grande acontecimento na vida dos exilados. A caminho para o meu lugar de exílio, em Turukhansk, parei em Krasnoyarsk, onde recebia as primeiras teses de Lenine sobre a guerra. Entreguei o material ao camarada Stalin, então na casa de Suren Spendarian, em Monasterskoye É difícil descrever com que manifestações de alegria o camarada Stalin leu as teses de Lenine, que confirmavam inteiramente suas idéias e eram a garantia da vitória da Revolução. Nos momentos difíceis do seu trabalho subterrâneo, os bolchevistas acompanhavam Stalin, tendo inteira confiança na intuição revolucionária desse discípulo de Lenine."

Que paciência! Que impaciência! Ali estavam sentados aqueles homens que tinham esperado e trabalhado vinte anos para que rebentasse a guerra. Agora ela viera e eles não se podiam mover na sua solidão septentrional! Tinham estado ali por quase três anos, recebendo poucas notícias, muitas vezes por longos períodos sem jornais — tudo isso antes da idade do rádio. Não foi senão em Março de 1917, quando rebentou a revolução burguesa, que esses exilados, e Stalin como prisioneiro do Tzar, foram postos em liberdade e tiveram ordem de regressar, depois de quatro anos de passividade forçada no meio do turbilhão revolucionário.

Nenhum governo no mundo, hoje, tem estado por tanto tempo no poder como os Comunistas Russos. Por mais de vinte e quatro anos, sem uma só interrupção, tem sido o único poder governativo na Rússia; e não só consolidaram seu poder, como estenderam-no. Mussolini com seus dezenove anos de poder vem em seguida. Nas democracias, como a Inglaterra e a América, os partidos se alternaram; dez anos têm sido a máxima duração dum período de poder; nas meias ditaduras ainda menos.

A grande experiência de um Estado socialista puro na Rússia tem tido só um êxito parcial; mas o partido, que tomou as rédeas em Outubro de 1917, tem se conservado no poder. Por que esses homens tiveram êxito onde outros têm fracassado? Por que estão eles no leme há vinte e quatro anos, enquanto Hitler, que governa há nove anos, não alcançará nem a metade do seu recorde? Estas perguntas só poderão ser respondidas sendo examinadas desapaixonadamente.

O extraordinariamente fácil sucesso da Revolução russa foi devido principalmente ao atraso do país. As classes altas, a família imperial, a Corte, os militares superiores e a claque oficial, eram ou degenerados ou corruptos, e não ofereceram resistência. A classe média, exausta depois duma guerra perdida, estava intimidada e acovardada. Foram os operários que fizeram a Revolução, que os diversos partidos das classes operárias vinham preparando por vinte anos. Os camponeses, que a esse tempo constituíam oitenta e cinco por cento da população, aderiram, quando viram diante deles a realização de seu sonho imemorial: a remoção dos seus senhores feudais, os proprietários das terras, e o arrendamento destas aos camponeses pelo Estado. Os soldados, entre os quais havia nada menos de 2.000.000 de desertores, votaram pelo partido que prometia a paz.

Assim foi que as duas revoluções, a de Fevereiro de 1917 e a de Outubro do mesmo ano, se efetivaram praticamente sem derramamento de sangue. Foi só mais tarde que teve lugar o tremendo sacrifício de vidas, que teria sido consideravelmente menor se não fosse a intervenção dos Estados ocidentais.

Se Lenine fosse vivo hoje — e seria só um par de anos mais velho do que Churchill — poderíamos atribuir a longa duração do governo às mesmas causas que atuaram em todas as ditaduras desde Augusto até Mussolini; poderíamos dizer que era devido aos interesses dos amigos e partidários do ditador ou ao medo que este inspirava. Mas na Rússia aconteceu uma coisa surpreendente: Lenine pôde passar o poder a um herdeiro; e esse herdeiro não era um filho, mas o seu partido. Tem um recorde de construção; apresenta ao mundo o espetáculo de uma nova Rússia que não só acompanhou a tendência geral ascensional da nossa época, como converteu o mais primitivo e atrasado país da Europa no tecnicamente mais adiantado, não sendo talvez inferior senão só à Alemanha.

É nessa herança de poder que encontraremos as razões secretas para a duração do regime que suplantou todas as dificuldades. E suplantou-as precisamente porque continuaram aquilo que os fundadores do Estado começaram. Porque há um simbolismo no fato de Lenine ter morrido seis anos depois da Revolução, e Trotsky ter sido exilado poucos anos mais tarde, e de que estes dois homens estavam só no começo da reconstrução. O homem que não levou a cabo a Revolução, Stalin, levou a cabo a reconstrução.

"Depois de uma Revolução, homens inteiramente diferentes sobem ao poder"

— disse-me Trotsky uma vez no seu exílio; e esse dito histórico era correto, a despeito de Trotsky ter-lhe querido dar um sentido irônico.

Não há a menor dúvida de que Lenine, o primeiro revolucionário, foi também o mais importante. Mesmo os seus rivais reconheceram-no como líder e mestre, à semelhança de Cromwell, a quem foi concedida a posição de líder no seu tempo. Contrastando com esta situação, a Revolução Francesa produziu seu homem mais forte depois, Napoleão. Stalin, cuja personalidade não tem nada de napoleônico, foi, contudo, o homem que encerrou a época revolucionária e dirigiu a reconstrução do país. Seus inimigos acusam-no de ter traído a Revolução, o que é absolütamente injusto. O que é certo, contudo, é que ele não estava entre os seus grandes planejadores, e o mais que se pode dizer dele é que a acompanhou desempenhando um papel sem importância especial. O comunismo galgaria o poder, exatamente como galgou, sem Stalin; mas, sem ele, seu rumo subsequente teria provavelmente sido diferente.

Os homens que chegaram a Petersburgo em Fevereiro de 1917, com o propósito confesso de jogar a Revolução burguesa para a esquerda e transformá-la numa Revolução proletária, apresentavam uma variedade de temperamentos e ideologias. Odiavam a burguesia tanto quanto tinham odiado o Tzar. Desde a instituição da Duma, cerca de onze ou doze anos antes dessa data, os partidos liberal e socialista na Rússia tinham estado atassalhando-se um ao outro; assim, a literatura política da época está cheia dos nomes e dos dogmas sob os quais os socialistas se digladiavam. Duas seitas pertencentes à mesma igreja odeiam-se reciprocamente com mais fúria do que se odiariam fora da religião.

Um punhado de deputados liberais, na maioria príncipes ou professores, tomou conta do governo da Rússia, depois do colapso ocasionado pela derrota militar. À testa do grupo estava Kerensky. Mas a jovem República que esses homens fundaram não obteve apoio; não deu nem terra aos camponeses, nem paz aos soldados. Estava absolutamente determinada a bater primeiro a Alemanha, a qualquer preço. Como a maioria dos liberais, esses homens queriam provar seu patriotismo e esse foi o erro que os perdeu.

Quem desejava a continuação da guerra depois de ter durado trinta meses? O homem da cidade e o camponês muito pouco se importavam com Constantinopla, o velho sonho de todos os tzaristas ambiciosos de poder. Que lhes importava que fosse a cruz ou o crescente que tremulasse por cima da mesquita de S. Sofia? Os cento e vinte milhões da Rússia, que se sentiam traídos, queriam pão e paz, e ficaram profundamente desapontados com o governo liberal.

O único ato histórico praticado pelo governo liberal foi a libertação dos presos políticos e a permissão dada aos exilados políticos para voltarem. Pode-se observar geralmente que Hitler aproveitou imenso com o exemplo dos comunistas e particularmente com as experiências de Stalin. Quando Hitler, uma vez, perguntou a alguns dos seus amigos o que pensavam das memórias de Trotsky, e todos mostraram o mais profundo desprezo por esse livro, escrito por um judeu, ele respondeu:

"Por mim, aprendi muito nesse livro."

Mas antes aprendera nos métodos tolerantes dos liberais russos o que não devia fazer.

A derrota de Kerensky foi devida, em primeiro lugar, a essa tolerância; porque, sem os líderes vermelhos, a revolução social teria sido pelo menos adiada.

Com a erupção da guerra em 1914, a Internacional ruíra. Em todos os países, os operários estavam influenciados pelo patriotismo; em todos os países, eles sentiram que tinham sido atacados. Só um punhado de marxistas fanáticos se mostravam hostis aos seus governos; um homem e uma mulher em Berlim, quatro ou cinco políticos liberais em Paris, Londres e Viena, que foram presos. O que eles queriam era a revolução social, que só poderia vir com a derrota militar dos seus próprios países.

Este conflito existe em todo coração humano. Um sentimento afetivo para com seu próprio país é um característico inato, como o que existe para com os nossos pais. Mas um homem pode facilmente desistir de uma guerra de conquista. Depois da derrota, o homem comum vê através da traição e revolta-se. Isso era tão verdade na antiga Atenas como o é na moderna Paris.

Lenine, que vivia como emigrado na Áustria, tinha fugido em Agosto de 1914 para a Suíça e desse centro continuava a campanha com um jornal, panfletos e discursos contra a Rússia tzarista. Despejava o desdém sobre os "socialistas do Tzar" e queria a derrota da Rússia como o "mal menor."

Quando, na Primavera de 1917, os franceses e os britânicos lhe recusaram um visto de trânsito, obteve-o dos generais alemães que esperavam, com isso, alcançar uma paz mais depressa com a Rússia e de fato a alcançaram. Mas, com esse ato, deram lugar à criação do Estado comunista. Se Lenine não tivesse chegado a Petersburgo, a Revolução dos operários e camponeses nunca se teria realizado; todas as crônicas provam isto e ninguém o põe em dúvida.

Trotsky que, ao tempo, ainda não era um bolchevista, adotou um ponto de vista semelhante ao de Lenine durante os primeiros anos da guerra, não obstante ser menos extremado. Foi expulso da França, fugiu para os Estados Unidos e foi preso em Halifax, quando tentava voltar para a Rússia. Seu filho de doze anos atirou-se contra o oficial inglês que ordenou a prisão, mas foi muito amável com os marinheiros que a efetuaram, tão bem educado tinha sido na teoria da luta de classe. Trotsky foi, finalmente, libertado. Com um intervalo de poucas semanas de uns para os outros, Lenine, Trotsky e Stalin chegaram a Petersburgo de três pontos diferentes.

Que sentiria Stalin sobre a situação? Por três longos anos, cortado todo o contacto com seu chefe Lenine, levara a vida do caçador e pescador no seu exílio ártico. Só uma vez durante esse tempo teve um companheiro; um camarada ficou com ele na sua cabana por algumas semanas e os dois homens ficaram odiando-se cordialmente, o que não é nada surpreendente, considerando a intimidade forçada e a solidão de sua existência.

Stalin pelo fio de um cabelo deixou de se transformar num soldado de Sua Majestade Imperial, o Tzar, e talvez de ser varrido na grande carnificina. As perdas do Exército russo eram tão enormes, que até presos políticos estavam sendo recrutados, e vinte camaradas de Stalin, na Sibéria, tinham sido alistados. Um defeito no braço esquerdo, livrou-o da mesma sorte. Não sei se ainda sofre desse defeito.

Não é impossível que Stalin tenha lamentado sua recusa; porque estar cortado de toda a correspondência e sem noticias do mundo exterior, e estar condenado a caçar e rachar lenha eternamente, naqueles dias em que na Rússia se feriram as mudanças, deve ter levado um homem, com o seu temperamento de lutador, às bordas do desespero. Quais eram seus pensamentos, durante esses três anos, não sabemos. Uma vez que era extremamente cuidadoso nos últimos anos com todos os seus documentos e papéis, escolhendo-os de maneira a deixar uma impressão favorável, seus adversários apontam significativamente para a falta de documentos relativos a esse tempo; porque certamente publicaria todas as linhas radicais que tivesse escrito. Em todo o caso, sabemos que, de volta do exílio com dois camaradas, mandou este telegrama a Lenine:

"Saudações do camarada no momento de partir para Petersburgo. Stalin".


Inclusão 30/04/2011