Stálin

Emil Ludwig


Capítulo VIII — Que é Bolchevismo?


CAPA

As guerras nascem, às vezes, mais de palavras do que de fatos. Certas palavras têm ressoado tantas vezes e por tanto tempo nos ouvidos da humanidade que eles se tornaram surdos para a voz da razão. Se uma geração ouviu, dia após dia, por vinte anos, as palavras Fascismo, Comunismo, Socialismo, Democracia; se estas palavras são repetidas nos cabeçalhos dos jornais e nos discursos no rádio a todas as horas, será para admirar que os homens, perdendo seu poder de julgar, só vejam diante deles uma tela trêmula coberta de cores que se substituem e confundem, que só ouçam em redor deles um coro de dissonâncias agudas? Depois do incêndio ter sido ateado nos quatro cantos do globo, as chamas, por fim, atingiram as várias doutrinas de Estado e quase aboliram a diferença entre elas. Em parte alguma do mundo pode mais ser encontrada uma doutrina de Estado na sua forma original. Todas estão num estado de transição e se tornando cada vez mais semelhantes.

É verdade que a segurança do cidadão é, ainda hoje, muito maior nas velhas democracias do que nas autocracias. A vida diária na América é mais fácil, os direitos do cidadão melhor protegidos, sua liberdade de movimentos e de palavra é maior do que em parte alguma. Mas, por toda a parte, o Estado tem restringido e reduzido as liberdades de toda a espécie. Mr. Bevin tem o poder, dentro da lei, de fazer do Arcebispo de Canterbury um mineiro de carvão. Aqueles que vêem em tudo isso meras medidas de guerra não compreendem a natureza desta luta que não é senão uma única e grande revolução social.

Em que difere a liberdade econômica de um russo, alemão ou italiano da de um americano hoje? É óbvio que a deste é maior e, sobretudo, garantida por leis que protegem os cidadãos sem favorecer nenhum partido. Os métodos pelos quais o Estado restringe a competição e a acumulação de grandes fortunas são também diferentes.

Mas pode ainda o fabricante de pneumáticos em Detroit fixar o preço de sua mercadoria? Pode o proprietário de minas de cobre em Salt-Lake City extrair tanto quanto quiser? Poderá o banqueiro de Wall Street dispor de seus lucros como dispunha seu pai? A economia dirigida, introduzida primeiro pelos comunistas e adotada em seguida pelos fascistas, foi aplicada também nas democracias muito tempo antes de ter começado a guerra. Há só vinte anos a Inglaterra virtualmente expropriou suas famílias ricas tributando suas propriedades até 70%. Em Nothumberland, como na Champanha, nas margens do Tamisa e do Loire, a nobreza abandonou suas belas mansões, antes do primeiro nazista aparecer no Reno, porque os tributos e a conservação tornaram-se proibitivos.

A igualação geral, contendo tanta justiça e destruindo tanta beleza, começou em 1914. Então, terminou o século XIX, que, tendo começado em 1789, teve uma duração especial de cento e vinte e cinco anos. Não foi o comunismo que tornou o mundo árido; foi só o espírito da era, tentando lançar uma ponte sobre o abismo entre o rico e o pobre, os que têm e os que não têm, que primeiro se manifestou nas corajosas e revolucionárias tentativas dos bolchevistas. Da mesma classe dominante iniciada pelo terrorismo dos jacobinos, espalhou-se mais tarde pelo mundo de um modo mais calmo e mais deliberado.

Então, como agora, em Paris e em Moscou, não eram senão palavras o que assustava o mundo. Não foi por causa das vítimas que tombaram na primeira fase das Revoluções Francesa e Russa que os herdeiros e tradicionalistas começaram a luta contra ambos os movimentos; não foi tampouco por isso que as democracias iniciaram hoje o combate a favor dos judeus e cristãos assassinados e perseguidos. O Velho Mundo queria e quer ainda proteger-se contra incursões semelhantes e eliminar os perturbadores da paz. Os homens, em países mais calmos, estão amedrontados com palavras como revolução, ditadura, bolchevismo. Mas, ao passo que estão restaurando a ordem, são forçados a medidas inspiradas pelas mesmas doutrinas que estão combatendo. Hitler e Mussolini tiraram a idéia da economia dirigida desses mesmos bolchevistas contra os quais se bateram e, à proporção que o tempo se foi passando, foram entrando mais e mais no rumo bolchevista. As democracias, enquanto lutam contra esses discípulos dos russos, aliaram-se, por entre suspeitas íntimas, com os bolchevistas e estão se aproximando, cada vez mais, da mesma economia dirigida.

Se os russos não tivessem, a princípio, excitado o mundo ocidental com os seus slogans, a violenta tentativa para suprimi-los não teria sido necessária, e uma evolução gradual poderia ter igualado as condições sem ulterior reinado de terror.

Depois que os bolchevistas se apoderaram do poder, duas palavras encheram o ar com sua ressonância aguda por muitos anos: comunismo e revolução mundial. Homens acostumados com a palavra socialismo e eleitos por toda a parte membros do Partido Trabalhista em todos os Parlamentos e para muitos cargos no governo não compreendiam que os desígnios comunistas estão incluídos nos programas do Partido Socialista e são mesmo idênticos a eles. Em lugar disso, o mundo burguês, com voluptuosos estremecimentos, contou a história de que tudo na Rússia era "comum" a todos; que todos recebiam a mesma alimentação, os mesmos salários; que a religião e a família tinham sido abolidas; que as mulheres pertenciam a todos em comum. Especialmente este último item cativou a imaginação de ambos os sexos pela sugestão que continha.

As primeiras duas Internacionais de 1864 e 1889, fundadas por Marx e Jaurés, tinham quase o mesmo programa e lutaram para realizá-lo pelos mesmos meios empregados por Lenine mais tarde. A diferença está no fato de que só este último conseguiu realizar o plano. Mas a imaginação da maioria dos homens não é grande bastante para ter qualquer concepção de um programa utópico. Quando o céu está límpido, ninguém pensa em levar um sobretudo para um piquenique; porque certamente não irá chover num dia assim bonito.

A revolução mundial era um terrível espantalho. Como se jamais tivesse havido na história uma revolução aspirando menos! Cada uma delas, como uma religião, ganha em patético e passional com a noção de que lhe foi confiada uma missão: "Somos os libertadores da humanidade!" Nunca foi o sonho de Lenine libertar só os camponeses russos. Como seus predecessores, Cromwell ou Robespierre, esforçou-se pela liberdade individual do homem por toda a parte no mundo, tentando torná-lo independente do senhor de escravos que o subjuga e a seus filhos, pairando acima deles nas nuvens. Por isso. Lenine e seus partidários lançaram ao mundo o grito de:

"Liberdade! Revolução mundial!"

Quando ele fundou a Terceira Internacional em 1919, o mundo burguês gritou como um só homem:

"Os russos querem imiscuir-se nos negócios dos países amantes da paz!"

Como se mentalidades criadoras não se tivessem imiscuído tanto com os seus livros nos negócios de outros países como fazem as nações poderosas com as suas armas — e isto pelos últimos dois mil anos! O cristianismo, ou outra qualquer força espiritual, absteve-se de envolver-se nos negócios de países estrangeiros?

Não têm as vitórias decisivas da humanidade sido obtidas nas guerras resultantes dessas influências? Teses, protestos, exigências estão constantemente resvalando do elemento espiritual para o material, dos livros para os canhões. Isso tem acontecido, mesmo quando seus preceptores espirituais adjuram o homem a não fazer uso das armas. Toda grande revolução, começando com as necessidades nacionais, se tem expandido num movimento internacional, voltando depois ao nacionalismo novamente.

A Revolução Russa influenciou os cidadãos dos outros países pelos milhares de repetições de seus slogans. Estes fizeram-se ouvir ainda mais alto, quando as brigas entre os líderes russos sobre a realização da revolução mundial excitavam cada vez mais as nações estrangeiras. Sob Lenine, essa realização era teórica; tinha diante dele uma árdua tarefa se queria salvar a Revolução na Rússia. Por esse tempo, diversos líderes russos de origem burguesa, como Tschitscherin e Krassin, declararam que a Rússia estava muito fraca para chefiar uma revolução mundial; pelo momento, o capitalismo estava de cima. Os bolchevistas deviam contentar-se com influenciar outros pelo seu exemplo e não por meio de revoltas.

Posteriormente, esse assunto foi posto em evidência aos olhos do mundo pelo antagonismo entre Trotsky e Stalin. O socialismo, dizia o primeiro, não podia ser implantado num só país. Não havia dúvida que podia, respondia Stalin, e provava seu ponto de vista desenvolvendo as indústrias na Rússia na década que se seguiu.

Quando a União dos Soviets se tornou uma potência militar sob a liderança de Stalin, elevando-a simultaneamente à posição de um Estado Socialista independente, isso teria tentado um caráter napoleônico a procurar grandes vitórias nacionais sob o disfarce de promover a revolução mundial.

Deve ser levado a crédito de Stalin o fato disso não ter acontecido. Naturalmente, ele nunca sufocou seu desejo de ver o socialismo emergir vencedor, nem restringiu a influência russa sobre os Estados mais velhos. Mas reconheceu que a revolução mundial havia muito que estava em marcha sem que precisasse ser criada pelos bolchevistas. Quando ele "adiou" sua irrupção no Congresso de 1935, tranquilizou o mundo capitalista, confirmou suas intenções pacíficas, aderindo à Liga das Nações e contudo não desistiu uma só linha dos seus planos e idéias. O cavalo de Tróia já estava pronto dentro da fortaleza do fascismo. Um ano depois, Stalin fez as seguintes observações numa entrevista com um jornalista americano:

"A crença de que estamos empenhados na revolução mundial funda-se num mal-entendido tragicômico. Embora nós acreditemos que a revolução virá para outros países, não a esperamos senão quando tudo estiver preparado para ela. As revoluções não podem ser exportadas; cada país tem que adaptá-las às suas conveniências. Nunca tivemos a intenção de nos intrometer nos países e nas vidas de outros povos; todas essas histórias são mentiras. Por que nos haveríamos de preocupar com a América? Damos o mesmo asilo que eles aos emigrados políticos. Não existem russos brancos nos Estados Unidos conspirando contra nós? Por outro lado, não damos refúgio a terroristas. A América interpreta, assim, de um modo diferente do nosso, a palavra asilo. Mas está muito bem e não nos queixaremos. Naturalmente, algumas pessoas no seu país simpatizam conosco, e entre elas alguns americanos; mas outras estão do lado dos russos brancos".

O mais interessante nesta conversa é o objetivo "tragicômico". Proporciona uma profunda introspecção do caráter de Stalin.

Durante os últimos vinte anos; milhares de palavras retumbantes têm evocado para o Velho Mundo o espetáculo de uma revolução mundial no estilo de uma exibição de circo; como se um exército mongol, liderado por um Genghis Khan motorizado, estivesse marchando para o Ocidente, trazendo, erguidos, os bustos de Marx e Lenine e arrastando o comunismo após ele. Mas, no entanto, este arqui-criminoso tinha reconstruído seu próprio país e transformado a União Soviética num Estado industrializado. Porém ali estavam os assustados reis do petróleo de Londres e Amsterdam que tinham de considerar perdidos seus campos petrolíferos russos; ali estávamos banqueiros internacionais de Nova York e Paris, que tinham de desistir do reembolso daqueles milhões que tinham emprestado ao Tzar. Todos conjecturavam como esses criminosos poderiam ser desacreditados. De súbito, acusaram os russos de não serem bastante comunistas. Que tudo aquilo não tinha sido senão um blefe. Os não-comunistas eram tratados bem demais na Rússia, que estava só mascarando seu nacionalismo desenfreado. Seu verdadeiro desígnio, disse, era o mesmo da velha Rússia: conquistar Constantinopla. A única diferença era que os novos governantes tinham mais probabilidades de êxito.

A potência militar, que teve de ser criada para proteger o novo Estado de uma segunda invasão pelas velhas nações, era agora apresentada como uma arma agressiva ameaçando o mundo inteiro. Revolução mundial ou nacionalismo, ambas as fórmulas enfureciam igualmente os inimigos da Rússia. E, contudo, a perceptível transição, dando ao bolchevismo um propósito nacional, devia ter tranquilizado o mundo, se este não tivesse sido desencaminhado pelo quadro contrafeito do movimento diante de seus olhos. O slogan "imperialista", que há muito devia ter sido jogado no lixo, mas que ainda está causando confusão tanto quanto a palavra "bolchevista", tomou o lugar desta. Os russos, disse-se então, estão aspirando ao domínio do mundo.

Houve já alguma revolução em que não houvesse aspirações a desígnios nacionais além dos ideais? Cromwell, que queria libertar as almas dos homens — começando pelas dos ingleses — cobiçou também Gibraltar e outros pontos estratégicos; Danton quis o Reno para a França. Stalin desejou estabelecer uma linha fronteiriça entre a Rússia e a Finlândia, que evitasse ser Leningrado bombardeada por qualquer vizinho. Nem por caráter, nem por educação, sentiu-se impelido a macaquear Napoleão. A Rússia não é o ponto inicial indicado para uma tal empresa. A União Soviética é estorvada mais por excesso que por falta de terras; e serão precisas mais duas gerações para desenvolver a herança legada pelos Tzares aos bolchevistas.

Se Stalin fez o bolchevismo mais nacionalista do que o era sob Lenine, foi levado a isso por duas razões: primeiro, queria dar ao movimento internacional uma base poderosa, um centro que se impusesse. Segundo, queria privar seus inimigos, dentro do país, do argumento de que eram governados por teorias estrangeiras, favorecendo a invisível Terceira Internacional. Esta modificação da política de Stalin merece aprovação em lugar de menosprezo. No antigo Exército Vermelho, os soldados costumavam prestar o seguinte juramento:

"Sou um filho do povo que trabalha e encaminharei todos os meus pensamentos e atos para o sublime desígnio de libertar todos os operários."

Agora, em 1939, eles juram:

"Eu, cidadão da U. R. S. S., sacrificarei meu sangue pelo meu povo, pela minha pátria soviética e pelo governo dos operários e camponeses."

Este novo aspecto foi caracterizado como "Pan-Sovietismo". Não obstante podermos ter passado sem um outro "ismo", pelo menos o novo slogan esclarece a diferença entre ele e Pan-Eslavismo de um lado e o imperialismo do outro.

Essa designação indica também a diferença decisiva entre os fins visados pela Rússia e os visados pelos nazistas. Poderíamos condensá-los nestas palavras: Hitler, conforme suas próprias palavras, quer criar um justo equilíbrio entre nações ricas e nações pobres, por meio de uma nova divisão do mundo; Lenine e Stalin querem criar um justo equilíbrio entre classes ricas e classes pobres.

Mas, enquanto Hitler exige o domínio do mundo pela sua raça germânica soberana, Stalin nunca aspirou nada semelhante para o povo da União dos Soviets. O primeiro fomenta a revolução mundial por meio da guerra, porque este é o único meio à disposição de um conquistador; o segundo deixa-a amadurecer sem a guerra. Hitler preparou-se desde o primeiro dia contra um mundo absolutamente pacífico que não pedia nada à Alemanha e já reconhecera suas reivindicações muito antes dele aparecer; Stalin preparou-se desde o primeiro dia para defender seu sistema das ameaças de ataque, especialmente do lado alemão. O primeiro quer fazer uma nova divisão horizontal do mundo, o segundo uma vertical.

O espírito guerreiro, que inspirava os bolchevista quando o Partido se fundou em 1903 e teoricamente tentava fomentar a revolução mundial, foi absorvido quarenta anos mais tarde pela construção do primeiro Estado Socialista representando uma experiência isolada. Só a má vontade daqueles que se arreceiam de uma árvore que cresce como uma competidora no usufruto da luz, terra e água, podia ver uma defecção dos primeiros princípios no novo desenvolvimento russo e ridicularizar aquilo mesmo que os encheu de medo antes.

O fascismo foi o único adversário que, pelo menos, não negou sua semelhança com o sistema de Moscou. Em outro livro, citei a significativa confissão de Mussolini sobre as coisas que aprendera com os russos, nas próprias palavras em que o Duce me falou. Mas os nazistas, embora adotando não só os métodos da polícia secreta russa, como também parte do programa econômico soviético, o têm torcido tanto ao seu modo típico que parece só semelhante. A primeira coisa que Hitler proclamou ao seu povo em 1933 foi um "Plano Quatrienal." Assim como imitou todo o aparato fascista — inclusive as celebrações do primeiro de Maio, os gestos, a saudação romana e até seu título de "Fuehrer" — adotou a denominação popularizada de "Plano Quinquenal" do seu chamado arqui-inimigo, mudando-o só um pouco para provar sua soberania.

Uma outra coisa que os nazistas fizeram e que fará rir a história é a adoção do grito de guerra comunista. Ley, o líder dos operários alemães, escreveu num manifesto, em 1940:

"Operários de todos os países, uni-vos contra o capitalismo inglês!"

Tais truques verbais servem só para divertir crianças ou os diplomatas pertencentes a uma época moribunda. Mas o que é estranho é que essa tentativa de falsificação encerra uma grande verdade: a cada ano que se passa, os nazistas estão se tornando mais e mais bolchevistas. Assim Ley disse a verdade continuando:

"O nacional-socialismo não reconhece o predomínio do dinheiro. Na nossa sociedade, os negócios são regulados pelo Estado que assume a responsabilidade de tudo. O Estado é independente da bolsa recheada".

A perspectiva futura está indicada na semelhança desses princípios. Assim como muitos pequenos trustes se fundiram em maiores que puderam finalmente ficar a cargo do Estado, num momento dado a estrada russa, até um certo ponto drenada de comunismo, e a meia comunista da Alemanha, se igualarão de maneira que a locomotiva do Estado poderá rodar para além da fronteira sem atritos. Isso se realizará pela confraternização dos operários uniformizados de ambos os exércitos.

As lendas que o Velho Mundo espalhou sobre o bolchevismo são exatamente as mesmas com que tentou sufocar o "liberalismo" há cem anos. Uma linha de ligação corre dos privilégios da nobreza no século XVIII até as idéias liberais do século XIX e às comunistas do século XX, correspondendo a que vai da força cavalo à força vapor até que esta, por sua vez, foi suplantada pela eletricidade. O que parecera, primeiro, como idéias políticas e técnicas de amanhã, tornou-se as de ontem. O liberal, outrora aparecendo como um revolucionário de cabelos compridos e chapéu mole de abas largas, mostra-se agora, pelo menos na Europa, como velho emitindo algumas idéias obsoletas, oriundo de Mancrester, no estilo das velhas gravuras de um velho livro bolorento e dando a impressão de uma locomotiva imprestável.

Assim, se as lendas sobre bolchevismo não são mais verdadeiras; se a palavra não significa nem liberdade nem igualdade gerais, que é então o bolchevismo de 1942?

É uma filosofia pela qual todos os homens estão impedidos de explorar seu próximo e de servir-se do trabalho e do suor alheio para conseguir esses dons da vida para sempre fora do alcance do operário. Essa sociedade não conhece classes, como elas existem virtualmente em todos os outros países, inclusive nos Estados Unidos. Mesmo aí, apesar do mais pobre dos homens poder alcançar a mais elevada posição de fortuna, só poucos a alcançam, enquanto que milhares ficam em baixo. Enquanto as matérias primas e as máquinas forem propriedade particular de indivíduos, estes podem, pagando por baixo preço o trabalho e vendendo por preços altos suas mercadorias, tornar-se ricos e legar por sua vez aos seus filhos os recursos precisos para cultivarem o espírito e a mente. A classe do colarinho branco e a classe que trabalha têm recebido um quinhão desigual das coisas boas da vida nos últimos cem anos: todos os membros da primeira dessas classes podem alcançar riqueza e luxo, ao passo que poucos podem emergir da segunda depois de vencer imensuráveis dificuldades.

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual o solo e os meios de produção pertencem a todos sem distinção, e o acidente do nascimento não torna o início da vida nem mais fácil nem mais difícil. Se ninguém trabalha para outro, mas todos trabalham para a comunidade, também todos recebem as mesmas coisas: primeiro a mesma educação, mais tarde os mesmos instrumentos de trabalho. O artífice não é obrigado a economizar por dez anos para poder, afinal, comprar uma pequena máquina; mas recebe imediatamente a melhor. Se toda a vida econômica é regulada e planejada pelo Estado, ninguém pode, pela aquisição de grandes fábricas e fazendas, comprar a capacidade de trabalho de milhares de homens e assim alcançar poder; mas todos podem passar adiante dos outros pela diligência e dons naturais, aumentando assim seu salário e podendo comprar uma casa, um jardim ou um carro mais bonito do que o seu vizinho menos eficiente. A competição e a ambição não são suprimidas e sim aumentadas.

"O trabalho" — escreve Stalin — "não é mais o fardo pesado e sem proveitos que era, mas tornou-se uma questão de ambição e valor moral."

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual a propriedade particular da terra ou dinheiro não é eliminada, mas permitida como uma recompensa do trabalho próprio. Até mesmo a acumulação de dinheiro e os legados testamentários são permitidos dentro de um certo limite. Assim, o bolchevismo é mais leniente do que o sistema dos Essenios dos primeiros cristãos que reuniam todos os seus bens de maneira que todos pudessem receber quinhões iguais de alimentos e roupas, independentemente das habilitações de cada um. Centenas de reis, papas e doutrinadores têm pregado o princípio cristão de que todo o homem é filho de Deus e irmão do seu próximo; mas todos eles sabiam que estavam mentindo. Agora, pela primeira vez, se está fazendo uma tentativa para realizar esse princípio em larga escala. Um prelado é a pessoa melhor qualificada para depor neste caso. Johnson, Deão de Canterbury, escreve no seu admirável livro:

"Na melhor das hipóteses, antes, tinha sido arreada uma escada pela qual os poucos favorecidos da "ordem inferior" podiam subir até aos lugares privilegiados entre as classes privilegiadas. O programa russo abrange 170 milhões, tomando em consideração as necessidades de cada indivíduo através dos sucessivos estágios da vida, como criança, como adolescente e como adulto; no resplendor da saúde e da força e nas sombras das enfermidades e da velhice... Esse programa fez jus a um caloroso acolhimento por parte de cristãos e cientistas... daqueles que por séculos tinham pregado e rezado por uma ordem social baseada justamente nesses princípios."

Bolchevismo é uma forma de sociedade em que o pobre não necessita da caridade, de fundações ou instituições para aproximar-se das fontes de cultura. Não precisa desses donativos voluntários dos ricos, sugeridos em parte por um bom coração e em parte por um sentimento de medo ou uma consciência acusadora. Isso põe um fim a esse sentimento de vergonha- por parte do doador e do beneficiado igualmente quando estão um diante do outro. Todas as formas de cultura são gratuitamente acessíveis a todos os cidadãos, e os planos de produção são regulados de modo que cada jovem de ambos os sexos, ganhando sua vida, tem tempo e oportunidade para estudar todas essas coisas nas universidades — especialmente nas escolas técnicas — do que gostam e lhes proporcionam vantagens nas suas profissões.

Bolchevismo é a forma de sociedade sob a qual o operário não tem que recear as enfermidades nem a velhice — pesadelos que tornam o homem desamparado em todos os outros sistemas. Ninguém fica sujeito à ignominiosa necessidade de pedir auxílio aos outros nessas eventualidades: o Estado sustenta todos os que não podem trabalhar. Como não há proprietários particulares e não há crises econômicas, não há o desemprego que outros Estados só podem eliminar em tempo de guerra. As greves proibidas nas nações fascistas tornaram-se impossíveis; o mesmo sucede no que diz respeito aos comitês grevistas e compulsão moral. Todo o cidadão tem direito a duas semanas de férias com pagamento integral. As mulheres percebem salários integrais antes e depois do parto.

Bolchevismo é uma forma de sociedade em que nenhuma criança com menos de catorze anos pode trabalhar em lugar de crescer e estudar; e qualquer uma com menos de dezesseis só em casos especiais., É uma forma de sociedade sob a qual todos trabalham sete horas diárias, reduzidas a seis quando se trata de trabalho perigoso. Para 80% dos operários todo o sexto dia é livre e para os 20% restantes, todo o quinto. Tudo isto, porém, só em tempo de paz. Aqui não foi construída nenhuma pirâmide como nas nações fascistas; por conseguinte, todo o medo e todo o ódio do patrão foi eliminado. Como o diretor de cada fábrica é só um líder técnico, cada operário pode eleger um representante para a liderança comunista. Este não pode despedir ninguém sem uma razão plausível, como os donos dos estabelecimentos no mundo antigo podem ainda fazer a seu bel prazer, não obstante os operários estarem em parte protegidos pelas Uniões. O conselho dos operários russos pode obrigar autoridades mais elevadas a demitirem o diretor.

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual os mesmos conventículos e intrigas podem persistir como em quaisquer outros círculos. Mas, como ninguém pode acumular fortuna ou receber dinheiro sem trabalhar, o principal órgão de corrupção não tem força bastante para assegurar privilégios ao indivíduo isoladamente. Nenhuma autoridade superior ou redator pode ser subornado como na Europa ocidental. Todos os sentimentos de ódio e inveja ainda existentes no Velho Mundo têm que desaparecer e ser substituídos por outros novos que só estão florescendo entre nós sob a pressão de um desastre geral. O Deão de Canterbury pronunciou este significativo juízo:

"Materialmente, os Soviets estão subindo com segurança; moralmente, a ascensão é ainda mais íngreme"(1).

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual, como ficou provado nos últimos catorze anos, se tornou possível uma melhoria crescente do standard de vida — e isto para todos. Tomando-se 1929, o começo da reconstrução depois de guerras e fomes, como ponto de partida, os salários na União dos Soviets subiram de 100 para 371. Contrastando com isso, decresceram na América e na Alemanha para 86 e 79 por cento respectivamente. Ao mesmo tempo, a capacidade produtiva, da indústria soviética subiu de 100 para 941 por cento, ao passo que quase não aumentou nos países capitalistas ou até mesmo decresceu.

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual técnicos e inventores foram tomados de uma nova ambição e impelidos para novas realizações.

"As fábricas e laboratórios de pesquisas para a indústria de aviões são maiores do que no Oeste," escreveu o presidente da Curtis Wright Company, "porque têm todos os recursos do Estado à sua disposição. Engenheiros e desenhistas têm uma oportunidade para trabalho em larga escala que nenhuma empresa particular poderia oferecer." "O engenheiro russo tem novas oportunidades", escreve o engenheiro chefe da Metro-Vickers em Sheffieíd.

Os princípios mercantis de nossas indústrias no Oeste muitas vezes forçam o engenheiro a dissipar suas energias e conhecimentos sem proveito. Todas as firmas inglesas trabalhando no mesmo ramo se propõem para novas encomendas e todas se apressam em preparar desenhos, mas todos, com exceção ' forem bons. A economia dirigida deixa-o ver o fruto do seu trabalho — e isso é o que importa.

Bolchevismo é uma forma de sociedade sob a qual nem raça, ou cor, religião ou língua fazem um membro de qualquer grupo recear ser perseguido ou ficar em situação de desvantagem. Como não existe apenas uma língua oficial na União — tampouco como na Suíça — a estupidez de um nacionalismo, julgando sua língua ou seu país o melhor do mundo, torna-se duplamente aparente. Como cada raça tem direito à sua própria cultura, hábitos estrangeiros são estudados com grande interesse e muitas vezes adotados. Só foi possível reunir onze Estados com mais de cem raças e línguas, porque as leis soviéticas correspondem à filosofia e às tendências universais de humanidade. Naturalmente, há antipatias, como em toda a parte; mesmo Lincoln, que libertou os negros, declarou que não casaria com uma negra. Onde o Estado faz tão enormes exigências aos homens, como na União dos Soviets, deve dar em troca aos cidadãos uma sensação de segurança e não pode empregar uma escala semelhante à usada pelos nazistas mesmo dentro do seu próprio país, para dividir todo o povo em super-homens e homens inferiores, de forma que parece não mais existir lá alguém normal.

Bolchevismo é uma espécie de sociedade sob a qual nenhuma bolsa, especuladores, cotações de ações e obrigações podem existir. Exclui as pessoas que ganham a vida e ficam alternadamente ricos e pobres com a compra de ações de empresas industriais cujos produtos nunca viram e para cujo funcionamento não contribuíram com coisa alguma, meros jogadores que são. Essas criaturas improdutivas, um prejuízo para o Estado quer ganhem quer percam, não podem persistir numa comunidade que substituiu os casos felizes da sorte pelas realizações individuais; a especulação por meio do trabalho alheio peio trabalho próprio ou, em poucas palavras: o dinheiro pelo trabalho.

Bolchevismo é uma forma de sociedade dentro da qual pessoas criadoras, especialmente engenheiros e artistas, são largamente recompensadas pelo que imaginam ou produzem. O próprio Estado, excluindo todos os intermediários, oferece à venda o trabalho de homens de talento sem auferir disso o menor provento. O inventor não depende de um financiador ou aproveitador da guerra que ganhou milhões na bolsa, e não precisa de um patrono para obter dinheiro e dispor de tempo para a execução de seu trabalho. É o Estado que lhe fornece tudo: matérias primas, ferramentas, laboratórios e compra o invento completo por um preço tão generoso quanto o merece um gênio criador. Por outro lado, o autor vê-se no dilema de só lhe ser permitido escrever o que convém às doutrinas do novo Estado. O escritor — e especialmente o filósofo e o historiador — embora generosamente pago, sente-se mortificado por um conflito moral.

No bolchevismo são garantidos direitos iguais às mulheres peia própria Constituição. A liberdade de casamento é maior do que na maior parte dos outros países, e, como todos ganham dinheiro — ou não comeriam — e ambas as partes geralmente ganham ao mesmo tempo, não há obstáculo aos casamentos cedo. Durante a grande fome, o aborto era permitido por lei, embora a mulher de Lenine tenha escrito contra ele mesmo por esse tempo. Sua proibição em 1936 foi recebida por um debate público de muitos meses em que o povo manifestou sua preferência por mais filhos.

Lenine opunha-se à depravação sexual e manifestava-se assim a respeito:

"Qual o homem normal que, em circunstâncias normais, se sujaria bebendo numa poça de lama? Ou mesmo por um copo cujas bordas tivessem sido sujas por muitos lábios?"

Um divórcio obtem-se facilmente se uma das partes o deseja; mas frequentemente é condenado pela opinião pública. O pai e a mãe, ambos têm que prover a manutenção dos filhos e uma mulher divorciada a manutenção do ex-marido, se este é atacado de moléstia e o Estado não cuida dele como deve. Trinta e três por cento de todo o operariado da União dos Soviets compõem-se de mulheres que conseguiram ingressar em todas as profissões; representam metade dos médicos, um quarto dos pesquisadores científicos e nove décimos do professorado das escolas. Como cozinhas comunais foram instaladas no campo e nas cidades bem como máquinas e operárias especializadas em trabalhos domésticos ajudam no governo das casas, todas as mulheres podem continuar seus estudos nas suas horas vagas e pensar no bem do Estado. O Soviet Supremo conta com 189 membros do sexo feminino. Em nenhum outro país e em nenhuma outra época, as mulheres foram tão atraídas para a política, o que é um dos acentuados contrastes com o sistema fascista.

Na sociedade bolchevista, um superior que prejudica a saúde de seus operários expõe-se ao mais severo castigo. Outros grandes crimes são o de aproveitador, a manipulação de reservas comuns, o desperdício de sementes de grãos e a especulação de qualquer espécie. O número dos presos foi reduzido à metade porque a maioria dos condenados são levados para colônias abertas onde são reformados geralmente num período de dois meses. Trabalhos forçados também não são impostos por mais de um ano. Sessenta e cinco por cento das pessoas condenadas não estão confinadas em prisões. Recebem a parte maior dos salários devidos ao seu trabalho porque ninguém na União Soviética trabalha de graça. Os sentenciados elegem um Soviet cujo presidente resolve sobre todas as infrações disciplinares. Uniformes especiais para as prisões e a prisão em solitárias foram abolidos. Todos os detentos têm permissão para fumar depois do trabalho ou tocar um instrumento musical. Só uma coisa foi proibida, que os Tzares permitiam nas suas prisões: o jogo de cartas.

Bolchevismo é uma forma de sociedade na qual a antiga colaboração do Tzar e da Igreja, com o fim de manter seus privilégios preservando a ignorância das massas, terminou. A separação da Igreja, do Estado e do ensino, bem como a liberdade de propaganda anti-religiosa, são as mesmas na União dos Soviets e nos Estados Unidos. A Igreja pode ensinar dentro do círculo da família, mas não fazer prosélitos por meio da imprensa e do rádio.

Cada um pode confessar seu credo e converter outros. A ninguém é proibido pendurar um ícone na sua parede.

"Marx, Lenine e Stalin", escreve o irrepreensível Deão de Canterbury, "eram irreligiosos só por acreditarem que a religião tem estado constantemente aliada à injustiça organizada; que foram cometidos ultrajes quando a Igreja, se tornou corrupta e rica, negligenciando não só a justiça social, a liberdade, a educação das massas e o bem estar social em geral, como também perseguindo aqueles que se ocupavam com essas coisas. Não é natural que o povo assassine padres... É absolutamente falso dizer que nos Soviets, hoje, não há liberdade religiosa... O comunismo no seu verdadeiro aspecto não é inimigo fundamental da religião, e muito menos da religião cristã. Com o correr do tempo, provará ser um verdadeiro amigo, pelo menos num ponto essencial. Dá ao socialismo uma nova base moral e está em via de conseguir "neste mundo" essas coisas que nós cristãos temos que professar amiúde com os lábios, mas desmentimos com as nossas vidas: vibrou um golpe mortal numa ordem moral que nós tacitamente aceitamos.

"Tivessem os cristãos, desde o começo, dispensado ao comunismo o bom acolhimento devido a homens cujo lema — "de cada um conforme sua capacidade e para todos conforme suas necessidades" — é tão profundamente cristão, e que passaram das palavras aos fatos, para a construção de uma ordem concreta baseada nestes princípios e os cristãos teriam estado mais na altura da intenção do seu fundador e os Soviets comunistas talvez não se tivessem sentido compelidos a declarar guerra è religião."

Assim, o bolchevismo é uma forma de sociedade na qual uma grande parte da vida pessoal é sacrificada à comunidade como no fascismo; não é, porém, seu desígnio destacar ou elevar certas raças e sim abolir classes e impedir que elas se formem. É uma filosofia deificando o Estado tanto quanto a dos fascistas; não é, porém, seu propósito estabelecer o domínio mundial para além de suas fronteiras e exercê-lo sobre outras nações, e sim dar todas as garantias ao individuo dentro de suas fronteiras e tornar-lhe a vida feliz: um sistema anti-heróico para o bem da coletividade.

Dois dos três princípios da Revolução Francesa — não realizados pelos seus promotores — foram realizados na Rússia: Igualdade e Fraternidade. A Liberdade não. É limitada por causa das necessidades externas do Estado e da coerção interna para forçar todos a aceitarem a filosofia imperante do Estado. Mas, contrastando com a maioria das revoluções, estes três artigos de fé estão sendo cada vez mais e não menos honrados à proporção que o tempo passa. Em Moscou, onde a primeira Assembléia Nacional tinha sido dissolvida, o direito de voto universal e secreto foi conferido ao povo vinte anos depois. Uma vez a guerra ganha, a vitória sobre a Alemanha e a aliança com as potências ocidentais, é de esperar que diminua a tensão a um tal ponto que o cidadão individualmente poderá chegar a gozar da liberdade que a Constituição lhe garante.


Notas:

(1) Ver "O Poder Soviético", Rev. Hewlett Johnson, Deão de Canterbury, edição brasileira. (N. dos E.). (retornar ao texto)

Inclusão 14/05/2011
Última alteração 30/04/2014