Terceiro Texto

Paul Sweezy

Dezembro de 1970


Primeira Edição: Monthly Review, Vol 22 N.º. 7, Dezembro de 1970

Fonte: Portucalense Editora Porto, setembro 1971

Tradução: Alberto Saraiva

Transcrição: Graham Seaman

HTML: Fernando Araújo.


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Bettelheim convenceu-me de que o modo como utilizei o par «plano/mercado» nas minhas precedentes contribuições para a nossa discussão se prestava a confusões e devia ser abandonado. Eu não tinha em mente nenhum plano histórico particular e concreto mas sim o tipo de plano que caracterizaria uma sociedade já chegada ao socialismo. Mas, realmente, isto não é mais que uma petição de princípio e, entretanto, encontram-se de facto, nas diferentes partes do mundo, todos os géneros de planos, que, como justamente diz Bettelheim, tanto podem completar o mercado como substituí-lo.

O verdadeiro problema para o qual eu tentava chamar a atenção não pode, creio, ser compreendido em termos abstractos e teóricos mas apenas num quadro histórico específico. Todas as revoluções anticapitalistas que até hoje se verificaram — isto é, revoluções que verdadeiramente arrancaram o poder à antiga burguesia dirigente — tiveram que enfrentar o problema urgente de pôr em marcha a economia. Por razões provavelmente assaz evidentes, esta tarefa não podia ser confiada às forças automáticas do mercado (a «mão invisível» em Adam Smith, a «lei do valor» em Marx), mas devia ser tomada a cargo pelo Estado. Um sistema de mercado viável pressupõe um conjunto de relações económicas e sociais, compreendendo um modelo de direito de propriedade, de distribuição dos rendimentos, de disponibilidade e de repartição dos recursos produtivos, e mais ainda. Só nesta base poderá ser estabelecido um sistema de preços mais ou menos coerente e poderão as forças do mercado funcionar e ajustar-se gradualmente às modificações, reproduzindo e reforçando ao mesmo tempo a distribuição existente da riqueza e do poder. Uma revolução autêntica dá-se normalmente no momento em que toda a estrutura sócio-económica está em desintegração, e as medidas tomadas pela revolução para se reforçar e enfraquecer os seus inimigos tendem a completar a derrota da ordem antiga.

Dadas estas circunstâncias, seria impossível confiar num sistema de mercado, mesmo que o novo governo quisesse apelar para os indispensáveis peritos técnicos e de direcção que, aliás, e evidentemente, não tem à sua disposição. A destruição da ordem antiga, a subida ao poder de novas classes e de novas camadas impõem novas prioridades sociais e a revisão draconiana de todo o sistema económico. Isto não significa a eliminação ou o desaparecimento dos mercados e menos ainda das relações monetárias. Os salários devem ser pagos em dinheiro e as mercadorias distribuídas aos consumidores pelos circuitos existentes e da maneira a que as pessoas estão habituadas. E nos sectores de fabrico dos produtos de base — que, num país agrícola como era a Rússia, são, de longe, os mais importantes — os mercados continuam a funcionar da forma tradicional, não sem interrupções e destruições. Mas estes sectores, seja qual for a sua importância, são essencialmente passivos. Os sectores dinâmicos – indústria, transportes, comunicações, comércio externo, bancos, serviços públicos, etc. — são necessariamente controlados pelo novo governo, que não pode de forma alguma iludir a responsabilidade do seu funcionamento. As políticas adoptadas com este fim podem ser constantemente improvisadas e modificadas; contudo, na medida em que são inteiramente coordenadas pelo corpo central de direcção, constituem, pelo menos, o embrião de um plano. E a experiência mostrou, em sucessivos casos, a começar pelo da União Soviética nos anos vinte, que estes embriões se desenvolveram em planos consistentes e cuidadosamente formulados, que pretendiam dirigir e controlar o funcionamento do sistema económico global. Os preços, a moeda e mesmo os mercados privados mantêm-se, mas estas relações moeda-mercadorias são progressivamente adaptadas e submetidas aos planos concebidos para atingir os principais objectivos dos novos dirigentes.

O ponto decisivo parece-me ser este: que é que assegura que o processo, de que a elaboração destes planos é uma parte importante, conduz ao socialismo e não ao restabelecimento de uma sociedade de classes mais uma vez dominada por uma classe de Estado? (Aqui estou pronto a aceitar, pelo menos a título de uma primeira aproximação útil, a definição que Bettelheim dá do socialismo: uma sociedade em que os produtores controlam as condições e os resultados da sua actividade de produção, ainda que reconheça, penso que como ele, que isto levanta vários problemas difíceis).

Se bem o compreendo, Bettelheim responde que se trata de saber se o proletariado está no poder. Se está, então o movimento efetuar-se-á no sentido do socialismo. Se não — aqui, Bettelheim não parece muito claro acerca das alternativas existentes no alvorecer da revolução — as antigas relações de exploração subsistirão e ficará livre o caminho para o acesso ao poder de uma nova burguesia de Estado. Em tudo isto ele não parece atribuir um papel específico ou importante ao desenvolvimento dos elementos do mercado no conjunto económico.

Este esquema não parece falso, mas simplesmente pouco útil. Tanto quanto posso avaliar, Bettelheim, para saber se o proletariado está ou não no poder, não oferece outro critério além do das políticas prosseguidas pelo governo e pelo partido.

Não será essencial para que a teoria tenha um valor explicativo que ela forneça um método independente que permita estabelecer a identidade da classe no poder? Ou ainda, quais as modalidades e as etapas de crescimento da nova burguesia de Estado? E, o que talvez seja o mais importante, em que condições se pode esperar uma vitória do proletariado e em que condições se pode esperar uma vitória da nova burguesia de Estado? Posso enganar-me, mas, pelo menos neste estádio da discussão, o método de Bettelheim não me parece permitir esperar respostas esclarecedoras a estas perguntas bem como a outras de crucial importância.

A razão disto toma-se clara quando se tenta precisar melhor o que se entende por «proletariado» no tipo de países subdesenvolvidos em que se verificou a maior parte das revoluções anticapitalistas do século XX. Na teoria marxista clássica (a de Marx, Engels e da maior parte dos seus sucessores no período anterior à Revolução Russa), o conceito de proletariado era perfeitamente claro e específico: designava os operários assalariados empregados na grande indústria capitalista e que, nos países capitalistas avançados, constituíam a maioria da classe trabalhadora e uma proporção muito substancial da população total. Estes operários teriam adquirido, durante e por causa do processo de acumulação capitalista, certas atitudes e valores especificamente proletários (e anti-burgueses): solidariedade, espírito de cooperação, igualitarismo, etc. Historicamente falando, via-se o proletário como um «homem novo» engendrado pelo capitalismo, desejoso e capaz de derrubar o sistema e de abrir caminho à construção de uma nova sociedade socialista.(1) O partido revolucionário era constituído pelos elementos mais avançados e mais conscientes, numa palavra, mais proletários, da classe: por isso ele constituía, pela sua própria natureza, uma vanguarda cuja função era conduzir e guiar o processo revolucionário. Politicamente, as tarefas do proletariado no poder consistiam, por um lado, em reprimir as manobras dos contra-revolucionários (os membros da antiga classe dirigente e os seus lacaios nas outras classes), por outro lado, em elevar ao nível proletário (pela educação e também por outros meios) as outras camadas oprimidas da população (camponeses, pequena burguesia, lumpemproletariado). Economicamente, as suas tarefas consistiam em aumentar a produtividade, eliminar o esbanjamento e a irracionalidade e passar o mais rapidamente possível de uma produção mercantil para um sistema económico meramente planificado. À medida que estas tarefas políticas e económicas fossem sendo realizadas, haveria um movimento geral que conduziria a sociedade do capitalismo ao comunismo passando pelo socialismo, sendo o comunismo caracterizado por uma distribuição segundo as necessidades, por uma eliminação das diferenças entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais bem como entre a cidade e o campo, pelo completo desaparecimento das relações mercantis e pelo deperecimento do Estado.

Pode objetar-se que nunca houve um proletariado conforme a este esquema e/ou que jamais um tal proletariado teve ocasião de se desenvolver nos países em que as revoluções anticapitalistas se verificaram. Não aceito nenhum destes argumentos. Na minha opinião, o proletariado russo, tal como se desenvolveu durante o quarto de século que precedeu a Primeira Guerra Mundial, correspondia perfeitamente à concepção marxista clássica. Era, sem dúvida, pouco numeroso em relação à população total, mas ocupava um lugar importante nas grandes cidades; e, como 1917 o provou, era capaz, nas condições confusas da época, de se apoderar do poder de Estado. Se o período seguinte tivesse sido, pelo menos em parte, mais pacífico, não vejo por que é que o proletariado russo não teria podido estabelecer-se a si próprio como classe dirigente, governando através do seu partido de vanguarda (ou, talvez, dos seus partidos) e iniciando a transição para o socialismo de modo mais ou menos conforme ao que a teoria tinha previsto. Dado o seu estatuto minoritário, o proletariado russo não teria tido a tarefa facilitada e deve admitir-se que poderia ter falhado. Mas, pelo menos, teria tido uma possibilidade.

O que comprometeu esta possibilidade foram os anos de guerra civil e de invasão estrangeira que se seguiram à Revolução de Outubro. No fim destas lutas terríveis e sangrentas, em 1921, o proletariado russo estava em grande parte destruído e disperso. «O velho movimento dos trabalhadores, autónomo e de posse de uma consciência de classe», escreve Isaac Deutscher, «com as suas numerosas instituições, as suas organizações, os seus sindicatos, as suas cooperativas e os seus clubes educativos, em que era costume ecoarem ruidosos e apaixonados debates, e que fervia de actividade política — esse movimento não era mais que uma casca vazia».(2) O Partido Bolchevique, outrora real vanguarda proletária, achava-se então desprovido de uma verdadeira base de classe, e isto com a responsabilidade de governar um país composto por uma esmagadora maioria de camponeses e de pequenos-burgueses. Nestas circunstâncias, não é nada surpreendente que não se tenham encontrado as condições necessárias para uma transição para o socialismo. O partido estabeleceu uma ditadura que realizou as façanhas épicas da industrialização e preparou o país para o inevitável assalto das potências imperialistas, mas o seu preço foi a proliferação das burocracias política e económica, que reprimiram mais do que representaram a nova classe operária soviética e que progressivamente se instalaram no poder como uma nova classe dirigente.

Por razões históricas, que é inútil expor aqui com pormenor, nenhuma revolução depois da Revolução Russa de 1917 se aproximou de perto do modelo marxista clássico. Na maior parte dos casos, o proletariado, para começar, pouco numeroso e fraco, foi esmagado pela repressão e pela guerra; e todos os novos partidos dirigentes foram fortemente influenciados, senão todos pelas mesmas razões, pelas formas e pelos métodos soviéticos. Por isso não faz qualquer sentido dizer-se que o proletariado estava ou teria podido estar no poder. O que de facto surgiu, provavelmente de forma inevitável, foi uma ditadura que se proclamou proletária e socialista, mas que, na realidade, era proveniente de várias classes, e que lutava pela resolução dos problemas económicos vitais bem como pela sua própria conservação no poder.

A questão decisiva, tal como a vejo, consiste em saber o que faz com que uma ditadura deste género se dirija para o socialismo ou para a restauração de um poder de classe. O único factor evidente é a força, a experiência e a dedicação ao socialismo dos dirigentes. Mas, evidentemente, isto não basta. Os dirigentes não actuam no vazio, e as populações de cada país não podem ser orientadas para o socialismo da mesma maneira. Cada povo tem, por assim dizer, um carácter historicamente formado que pode ser mais ou menos compatível com os objectivos socialistas (a este respeito, por exemplo, o povo dos Estados Unidos, com as suas origens puramente burguesas, a sua ideologia e a sua prática racistas, o seu imperialismo desenfreado, está carregado de «handicaps» particularmente esmagadores). Mas mais importante ainda, parece-me, é a existência ou a não-existência na população de um elemento capaz de desempenhar o papel que, na teoria marxista clássica, compete ao proletariado — um grupo que partilhe das atitudes e dos valores essencialmente proletários, mesmo que não seja o produto de uma experiência especificamente proletária. A história destes últimos decénios sugere que a via mais provável para que surja um tal «proletariado de substituição» passa pela guerra revolucionária prolongada, que arrasta as massas. Então, homens e mulheres de classes e camadas diferentes mergulham juntos em condições que contrastam fortemente com os seus habituais modos de vida. Eles aprendem qual o valor — mais: a necessidade — para sobreviver, da disciplina, da organização, da solidariedade, da cooperação, da luta. Culturalmente, politicamente e mesmo tecnicamente, elevam-se a um novo e mais alto nível. Numa palavra, transformam-se numa força revolucionária com uma enorme importância não só para o derrubamento do antigo sistema mas também para a construção do novo.

Uma ditadura revolucionária que chega ao poder num país subdesenvolvido com o apoio de um poderoso «proletariado de substituição» não pode evitar os problemas que os Bolcheviques tiveram que enfrentar nos anos 20 e, ao tentar resolvê-los, abre inevitavelmente caminho, da mesma maneira, às maciças burocracias económicas e políticas que tendem a evoluir como, antes delas, as suas homólogas soviéticas. Mas agora existe em potência um contrapeso efectivo que pode fornecer uma base para uma autêntica luta de massa contra a degenerescência burocrática. Se a direcção sabe para onde vai e está resolvida a evitar a repetição da experiência soviética, pode mobilizar os seus verdadeiros partidários experimentados, atingir os jovens que ainda não foram corrompidos pelas tentações dos privilégios e derrubar as estruturas burocráticas. Desta maneira, os obstáculos que entravam a marcha para o socialismo podem ser afastados e as políticas proletárias, no sentido marxista clássico, podem ser adoptadas e conduzidas a bom termo. Foi em grande parte o que aconteceu muito recentemente na China, e particularmente durante o período da Grande Revolução Cultural Proletária.

Na minha opinião, é no contexto de uma luta entre a degenerescência burocrática e o processo socialista que o problema do mercado na sociedade de transição deveria ser analisado. Como o explicava na minha anterior resposta a Bettelheim (Monthly Review, Março de 1969), nunca sustentei que fosse provável ou desejável uma primeira eliminação das relações mercantis, e constato que agora estamos de acordo sobre este ponto. O que eu queria sublinhar era que, quando a economia burocraticamente administrada encontra dificuldades (e não pode deixar de encontrar), há duas maneiras politicamente opostas de procurar uma solução. Uma consiste em enfraquecer a burocracia, politizar as massas e confiar cada vez mais iniciativas e responsabilidades aos próprios operários. É o caminho que leva às relações socialistas de produção. A outra via consiste em confiar cada vez mais no mercado, não a título de retirada temporária (como foi o caso da N.E.P. com Lenine), mas como um meio para pretensamente atingir uma economia «socialista» mais eficaz. Isto equivale a fazer do lucro o motor principal do processo económico e a dizer aos operários que se ocupem dos seus assuntos, isto é, que trabalhem duramente para poderem consumir mais. É recriar as condições em que prospera o fetichismo da mercadoria, com a falsa consciência alienada que lhe corresponde. É, receio-o, o regresso à dominação de classe e» finalmente, à restauração do capitalismo.

Gostaria de concluir sublinhando o meu total acordo com Bettelheim quando ele diz:

«É essencialmente verdade que a existência de relações mercantis é um obstáculo à dominação dos produtores sobre os seus produtos e que o pleno desenvolvimento destas relações leva à dominação da burguesia sobre os produtores imediatos e, portanto, à não-dominação dos produtores sobre as suas condições de existência. Por conseguinte, é essencialmente verdade que a eliminação das relações mercantis figura entre as tarefas históricas que o proletariado tem que realizar durante a edificação do socialismo».

Acrescentaria apenas que dizer de uma tarefa que ela é «histórica» não significa que ela alguma vez possa ser negligenciada sem perigo.

Monthly Review, Dezembro de 1970.


Notas de rodapé:

(1) O documento mais importante do marxismo clássico que expõe este processo é a Critica do Programa de Gotha, de Marx. (retornar ao texto)

(2) O profeta desarmadoTrotsky: 1921-1929, Nova Iorque, 1959, p. 6. Um dos maiores méritos de Deutscher é ter visto claramente a natureza e o significado desta alteração no proletariado russo entre 1917 e 1921. (retornar ao texto)

Inclusão: 24/06/2020